segunda-feira, 5 de junho de 2017

EUA e Europa, cada vez mais perdidos





O Afeganistão é representativo. Trump autorizou o Pentágono a testar nesse país sua bomba convencional mais poderosa, a Massive Ordnance Air Blast (Munição de Explosão Aérea Massiva) ou MOAB, popularizada como Mother of All Bombs (Mãe de Todas as Bombas). Esse evento de 13 de abril despertou o mesmo ufanismo militarista do inconsequente bombardeio de uma base síria com mísseis Tomahawk, seis dias antes. Infográficos detalhados explicaram o modo de lançamento e os efeitos supostamente arrasadores no raio de uma milha (1.600 metros) com uma enganosa aparência de precisão. Alguns jornais de grande circulação, como The Independent e USA Today, cometeram o erro grosseiro de explicar e desenhar que a explosão seria quase tão poderosa quanto a de Hiroshima, que foi na verdade 1,3 mil vezes maior.

Talvez mais enganosa ainda tenha sido a exatidão do próprio Pentágono, ao afirmar que a bomba, supostamente lançada sobre uma base subterrânea do Estado Islâmico formada por túneis e cavernas, teria matado exatamente 94 fundamentalistas, quase 20% dos efetivos estimados da organização em todo o Afeganistão. O próprio Estado Islâmico afirma não ter sofrido nenhuma baixa e, francamente, não há mais razão para acreditar em um lado do que no outro.

Duas semanas depois, um correspondente da BBC, levado ao local, viu bombardeios intensos, como se o EI não tivesse sido seriamente afetado. “Essa bomba não é tão poderosa quanto você pensa. Ainda há árvores verdes a cem metros do local do impacto”, comentou um oficial afegão. Os militares não o deixaram inspecionar a área, ainda sob bombardeio, mas o correspondente o confirmou: “Era possível ver árvores queimadas e alguns locais afundados. Não havia uma grande cratera. Não longe, havia casas e árvores verdes”.

Esse exemplo é emblemático da ingenuidade arrogante e cruel de quem se imagina capaz de resolver com bombas os conflitos do mundo, sem enfrentar suas causas sociais e políticas. Mas a prova maior da futilidade dessa abordagem está na escalada da guerra nas semanas seguintes. Em 21 de abril, um ataque de seis a dez insurgentes do Taleban, ajudados por cúmplices no exército, matou 160 soldados afegãos em uma base de Mazar-e-Sharif. Na quarta-feira 3, um atentado suicida, reivindicado pelo EI, atingiu um comboio militar da Otan em frente à embaixada dos EUA em Cabul e matou pelo menos oito civis.

Desde fevereiro, o comandante dos 9 mil soldados dos Estados Unidos no país, general John Nicholson, dizia precisar de mais 5 mil para romper o impasse, embora os mais de 100 mil estadunidenses que chegaram a combater no Afeganistão em 2011 tampouco tenham posto fim à luta. O secretário de Defesa, James Mattis, foi vê-lo no dia 24 e admitiu que essa guerra não terminará tão cedo. Aos 16 anos é a mais longa da história dos EUA e, não custa lembrar, é travada contra os herdeiros dos fundamentalistas apoiados por Ronald Reagan e George Bush pai contra o regime afegão laico e pró-soviético dos anos 1980.

Moscou, certamente, não esqueceu e deve achar divertido Washington agora acusá-la de fornecer armas e financiamento ao Taleban. Provavelmente, não é verdade, mas o Kremlin de fato corteja líderes afegãos, fartos de se desmoralizar aos olhos de seu próprio povo pela associação com estadunidenses insensíveis às vítimas civis de seus drones e de sua arrogância.


O chanceler russo, Sergey Lavrov, parece apostar suas fichas no ex-presidente afegão Hamid Karzai, crítico das ações do Pentágono, com o qual se reuniu em Moscou, em 26 de abril, e patrocinou reuniões com vistas a um acordo de paz com o Taleban, das quais os EUA se recusaram a participar, com a presença da China e do Paquistão.

Como hoje é notório, Barack Obama e Hillary Clinton cometeram na Síria (e também na Líbia) o mesmo erro de Reagan e Bush no Afeganistão, e hoje não há mais como distinguir entre os rebeldes laicos e supostamente moderados e os fundamentalistas da Al-Qaeda e similares que acabaram por dominar a luta contra o regime laico, pró-russo e pró-iraniano, de Bashar al-Assad. Também aí os russos podem rir por último.

Ao contrário do que acontece no Afeganistão, na Síria e no Iraque o Estado Islâmico está em retração. Em relação ao seu auge em 2014 e 2015, perdeu 57% do território e está perto de ser totalmente expulso de Mossul, a maior cidade que chegou a controlar, numa batalha talvez mais catastrófica para os civis do que a de Alepo, embora neste caso a mídia não esteja presente nem tenha interesse em enfatizar o seu sofrimento.

Partes dessas áreas, principalmente após a intervenção russa em setembro de 2015, foram retomadas pelos governos sírio e iraquiano e alguma coisa pelo exército turco em nome dos rebeldes sírios, mas os maiores responsáveis por esse recuo foram os guerrilheiros curdos do Iraque e da Síria, que organizaram governos autônomos nas regiões por eles controladas.

Alarmada, a Turquia, que chegou a dar apoio tácito ao EI com a esperança de livrar-se de Assad e da insurreição curda que ameaça seu próprio território, redobrou os ataques aos curdos da Síria e cogita invadir e anexar seus territórios. Estes, que já recebiam armas dos EUA, apesar de uma aliança tática com Assad, buscaram apoio da Rússia e o conseguiram. Embora o governo turco tenha se reaproximado de Moscou após ser alvo de um golpe fracassado, os russos não estão satisfeitos com sua falta de cooperação na Síria e ante as contradições dos EUA e da Europa, eles são cada vez mais os árbitros da situação. 

Na terça-feira 2, Vladimir Putin tomou a iniciativa de ligar a Trump e propor um acordo de paz, com separação física dos combatentes e suspensão dos voos da Força Aérea síria. O presidente dos EUA, ansioso para se livrar do problema, deu-lhe atenção e prometeu enviar um representante às negociações em Astana, no Cazaquistão. A própria Turquia, cujas relações com o Ocidente são cada vez mais tensas, precisa chegar a termos com o Kremlin para não se isolar. Uma ruptura do governo de Recep Tayyip Erdogan com a Otan e a União Europeia pode vir a ser uma das consequências dos erros de Washington na Síria. 

Os mesmos erros se repetem no Iêmen. Também em nome da obsessão por conter a influência do Irã e contentar Israel e as monarquias árabes aliadas, Washington associou-se à Arábia Saudita e aos Emirados na tentativa de esmagar a rebelião dos xiitas houthi e restaurar o regime de Abd Rabbuh Mansur Hadi em todo o país.

Com isso também luta, na prática, ao lado da Al-Qaeda, embora continue a bombardear suas lideranças de tempos em tempos. E a guerra está prestes a se complicar seriamente. Embora não aceite o domínio xiita, a população sunita de Áden e de todo o sul do Iêmen, sob controle dos sauditas e aliados, está rebelada contra o regime de Hadi e dos sauditas. Uma proclamação de independência nos próximos dias pode abrir mais uma frente de guerra.

Também se espera para breve um ataque saudita, apoiado pelos EUA, ao porto rebelde de Hodeida, por onde passa a maior parte dos alimentos para as massas famintas do interior, inclusive 7 milhões de dependentes de ajuda humanitária. Com a tomada ou destruição do porto, 19 milhões de iemenitas estarão ameaçados de morte pela fome e o país diante de uma catástrofe humanitária pior do que a da Síria. Entretanto, não é realista apostar nem na rendição dos houthis nem em uma retirada saudita. A monarquia investiu demais do seu prestígio político e militar nessa guerra e seu fracasso ou derrota abalaria sua legitimidade.


A instabilidade também aumenta no Egito. A ditadura militar do marechal Abdul al-Sisi é cada vez mais repressiva e, recentemente, libertou o ex-ditador Hosni Mubarak e tomou medidas para nomear juízes diretamente e reduzir ainda mais a autonomia de um Judiciário já dócil, mas que em janeiro frustrou sua tentativa de entregar à Arábia Saudita as ilhas Sanafir e Tiran, em troca do apoio político e financeiro recebido no golpe de 2013.

Mesmo assim, não conseguiu evitar os ataques a igrejas cristãs coptas no Domingo de Ramos (9 de abril), atribuídos ao EI, nem impedir a ampliação de suas ações no norte do Sinai. No dia 18, foi atacado o famoso Mosteiro de Santa Catarina, ao pé do próprio Monte Sinai. Por falta de segurança na região, Israel fechou a fronteira a seus turistas desde o dia 10.

O EI declarou a região sua “província” e começou a impor em algumas áreas em torno de El-Arish, capital regional, sua versão da lei islâmica: confiscam cigarros, drogas, DVDs e antenas de satélite, expulsam famílias cristãs, ameaçam mulheres com chibatadas ou ataques com ácido se não usarem niqab e andarem acompanhadas, e destroem monumentos e santuários.

Como em outros lugares, os fundamentalistas recebem apoio de civis marginalizados e a política de bombardeios e terra arrasada não favorece a popularidade do governo. A desestabilização do Egito, coração do mundo árabe e sua nação mais populosa, é uma ameaça diante da qual os demais conflitos da região pareceriam perigos menores e o recente e precário acordo entre as facções em guerra civil na Líbia se tornaria irrelevante.

Nenhum comentário:

Postar um comentário