quinta-feira, 29 de junho de 2017

Mais poesia, por favor


Por Cynara Menezes

Quando o mundo está numa fase ruim, como agora, é enorme a tendência da gente se afogar em política. Lemos política, assistimos política, ouvimos política, escrevemos política, compartilhamos política, respiramos política. E então vem Jim Jarmusch nos salvar da política.

Confesso que fazia uns anos que eu raramente pensava em poesia. Música, sim. Mas poesia, poesia, não. Como todo mundo, escrevi poemas na adolescência (devo dizer “cometi” uns poemas?). E gostei muito de ler poesia durante longo tempo. A correnteza da vida me levou para longe dela, e eu até esqueci que gostava de poesia. Então veio Jim Jarmusch para me lembrar.
O filme Paterson, do diretor norte-americano que encantou minha geração com Daunbailó (“I scream, You Scream, We All Scream For Ice Cream!”) na década de 1980, é uma declaração de amor à poesia. Poesia uma hora dessas? Caramba, que alívio eu senti de estar naquela sala de cinema me deliciando com poemas escritos sobre a tela, enquanto lá fora a catástrofe continuava a seguir seu curso. Ufa.

O mais bacana em Paterson é que não fala da poesia como algo pedante, sofisticado, restrito a intelectuais refinados, não. Paterson, o protagonista, é um jovem motorista de ônibus que vive com sua encantadora mulher na “xará” cidade de Paterson, Nova Jersey, e gosta de escrever poesia.

Seu ídolo literário é William Carlos Williams, que um dia também escolheu a cidadezinha como “musa” de um poema épico em cinco volumes chamado... Paterson.

Como Williams, Paterson, o personagem, escreve poemas em prosa, a partir de pequenos acontecimentos do cotidiano, invisíveis a olhos não-poéticos. Ron Padgett, o verdadeiro autor dos versos que ele anota em sua caderneta, escreveu quatro poemas especialmente para o filme. Neles, e na vida do motorista de ônibus, vamos enxergando a beleza na rotina, repetida todos os dias, com mínimas variações, poucas surpresas, delicadeza, amor e humor. Lembrei de quando conheci Chacal e seu Drops de Abril, abrindo mundos novos para a menina do interior da Bahia. Um mundo colorido, sensual, livre, poético – e engraçado.

com deus mi deito com deus mi levanto 
comigo eu calo comigo eu canto
eu bato um papo eu bato um ponto 
eu tomo um drink eu fico tonto 

E Ana Cristina César, tão linda, moderna, profunda. Todo um modelo de mulher para mim.

Minha boca também
está seca 
deste ar seco do planalto 
bebemos litros d’água 
Brasília está tombada 
Iluminada 
como o mundo real

A capital do Brasil tem alguns bons poetas. Gosto de Nicolas Behr, da mesma “geração mimeógrafo” que sempre me divertiu.

Naquela noite
Suzana estava
mais w3
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2 
Suzana, 
vai ser superquadra assim 
lá na minha cama


Paterson me deixou cheia de contentamento, excitação, de palavras e de dúvidas na cabeça. Será que só lemos poesia quando somos jovens e depois esquecemos dela? Será que a poesia, assim como o punk rock, tem sua hora? Poxa, eu não deixei de curtir punk, mas abandonei a poesia... Lembrei de quando costumava decorar trechos inteiros de poemas, como “Dobrada À Moda do Porto”, de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.

Se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria? 
Não é prato que se possa comer frio, 
Mas trouxeram-mo frio. 
Não me queixei, mas estava frio, 
Nunca se pode comer frio, mas veio frio

O filme do Jarmusch me despertou a vontade de voltar a ler poemas, e de lê-los em voz alta, porque poemas são feitos para ser lidos em voz alta. (É declamar que se diz.) Senti saudades dos saraus a que nunca compareci.

Acho que as agruras da política possuem o péssimo defeito de fazer com que a gente se esqueça das outras coisas que importam, que talvez sejam as que mais importam, ainda que pareçam “amenas”. Literatura, por exemplo, iluminar a existência como operários das palavras, gente que passa os dias, como me disse uma vez Manoel de Barros, bolinando dicionários. Senti vontade de escarafunchar a obra de William Carlos Williams, de ler Uivo, de Allen Ginsberg, em português e no original. Ginsberg também morou em Paterson! De reler todo meu amado Manuel Bandeira. De descobrir novos autores brasileiros. Mudar de ares e inspirações... Estes tempos sinistros acabam fazendo com que a vida da gente fique embotada de notícias, notícias, notícias. Quem lê tanta notícia?

O que é necessário para manter a alma sempre alimentada, saciada, plena? Que tipo de ser pensante pode abdicar de fortalecer o espírito com leituras, com arte, em vez de tanta internet, tanta rede social? Onde afinal nós vamos chegar assim? Se a gente não fizer nada agora, sairemos mais pobres deste episódio, por dentro e por fora. Precisamos fazer alguma coisa para que isso não aconteça. Eu preciso.

E, ironia das ironias: num momento em que estamos perdidos, ferrados, desesperançados, desacorçoados e que nos faz falta tanta poesia, temos na presidência da República um poeta ruim.


♦ Cynara Menezes é jornalista e editora do blog Socialismo Morena (socialistamorena.com.br)

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