quinta-feira, 27 de julho de 2017

Democracia de extermínio?

Não é possível negar que o Brasil passa por um momento grave. Um dos aspectos que vai se tornando claro de nossa crise que se aprofunda é o incremento de violência social, e de Estado, sustentada por um espírito extremado que ganhou nova representação e estranha presença pública dita democrática nos últimos tempos


Na rua Mourato Coelho, na Vila Madalena, em São Paulo, integrantes da corporação são flagrados no local onde, minutos antes, o carroceiro e reciclador Ricardo Silva Nascimento foi morto por um policial militar. Foto: Reprodução / Facebook

Há poucos dias Ricardo Silva Nascimento, um carroceiro reciclador de lixo, negro, foi friamente assassinado pela polícia militar paulista, com um tiro no corpo e dois na cabeça, ao pedir comida em um restaurante do bairro de classe média de Pinheiros.

A mesma polícia que o matou alterou as provas materiais do local, na frente de todos, retirou o corpo ilegalmente e apagou a força celulares de quem filmou o crime. Quando a tragédia de incompetência e desumanidade aconteceu, uma mulher que estava no supermercado em frente à cena gritou: “Tem que matar mesmo”, legitimando como opinião o assassinato e revelando o nosso mal geral como um universo de problemas muito amplo.
Não é possível negar que o Brasil passa por um momento grave. Um dos aspectos que vai se tornando claro de nossa crise que se aprofunda é o incremento de violência social, e de Estado, sustentada por um espírito extremado que ganhou nova representação e estranha presença pública dita democrática nos últimos tempos.

O processo político e social brasileiro dos últimos três anos, que determinou a atual composição insólita do poder entre nós, tem vínculo com o grau de dissolução e de negação de princípios civilizatórios fundamentais, de fato básicos, de que nos aproximamos, e passamos a viver cotidianamente.

O modo com que se produziu no Brasil a tomada do poder executivo por um grupo muito duvidoso, sem o ato real de legitimidade das urnas, através da construção de um impeachment, que também pode ser lido como um golpe de novo tipo no processo institucional democrático, liberou e se utilizou de forças sociais arcaicas brasileiras, abertamente comprometidas com a violência como prática social aceitável, forças que se imaginava terem sido superadas na busca de consensos médios da sempre defeituosa democracia nacional.

Os processos da política pública e do incremento da violência social como política estão ligados. Na representação social dos interesses que chegaram ao poder em 2016, na construção da opinião pública anti-governo Dilma e na mobilização popular de grandes estratos da população brasileira no ano que antecedeu o impeachment foi possível observar um movimento político estratégico importante, que restaurou e usou posições políticas extremadas, simplesmente falsas e irracionais, da tradicional direita autoritária brasileira, trazendo-a à cena de um momento de contemporaneidade no qual, de fato, ela tem pouco a dizer, mas, de fato, bastante a atuar, como ação direta de violência social primitiva, sacrificial, tendente à exceção.

Tal movimento, falsamente democrático, de condescendência com o autoritarismo antissocial brasileiro, reintroduziu e se utilizou abertamente da força do ódio na política, que foi cinicamente tolerado como meio de interesse mais amplo, como todos pudemos claramente ver desde então.

A democracia que se viu abalada politicamente, com a falsa solução parcial anti-petista para a crise do sistema geral de corrupção da política brasileira, se viu abalada novamente na construção de um ataque forte a direitos firmados na constituição de 1988 a partir de um pacto de alinhamento pró capital, produzindo uma nova recusa dos direitos que determinavam o horizonte e os parâmetros civilizatórios a serem buscados pelos governos brasileiros, os parâmetros da lei simbólica coletiva, que diziam respeito ao que se deveria sonhar como sociedade.

E, em um movimento contínuo, a democracia também se vê abalada constantemente pela ampla emergência de violência social real de tipo tradicional e conservadora, cada vez maior, que atua diretamente no mundo da vida contra princípios de humanidade e de direito vigentes.

Ataques a espaços de direitos, como o direito de tradição iluminista da liberdade de cátedra ou o direito indígena, constituição de milícias autoritárias, ações cotidianas de constrangimento, afirmação de racismo, homofobia e demofobia, ataques policiais gratuitos ou forjados à manifestações democráticas de direito contra o estado do poder, tolerância com graves ilegalidades policiais, em geral antipopulares, se tornam práticas políticas presentes na vida brasileira de uma democracia que, vista daí, apenas se degrada.

Este tipo de vida política, que tende à ação sacrificial que retorna em momento de crise aguda, que marca a vítima para reintegrar a comunidade imaginária na afirmação do poder direto, tendente a exceção, é um dos subprodutos da saída às ruas de massas brasileiras à direita, para a derrubada do governo eleito em 2014.

De fato, nas manifestações pró impeachment vimos moralistas políticos, falsos moralistas seletivos, liberais verdadeiros, neo-liberais autoritários e tradicionais autoritários antissociais brasileiros caminharam de mãos dadas, espetacularmente, em nome de causa mais nobre do que as próprias diferenças.

O processo de força social à direita, que para muitos produziu uma real violência institucional, foi acompanhado desde sempre de modo grave da afirmação e da legitimação de práticas de violência real como alternativa à crise do sistema da política e da economia mundial que envolve o Brasil.

Não é estranho que agora, no momento de máxima descaracterização da legitimidade de um governo que, tomando o poder contra a corrupção da política – mesmo que em um jogo movido por homens sabidamente corruptos –, se revelou completamente enredado em corrupção como não poderia deixar de ser, há ainda um aumento da pressão social conservadora pelo direito à violência anti-cidadã e antipopular.

Tratou-se, em termos amplos, como fitas vazadas na televisão já disseram claramente, da produção de um espaço politico real orientado por aquilo que os psicanalistas chamam de lógica perversa, que diz que a lei que vale para o outro não vale para mim, no qual se manipula e se constitui poder por esta diferença. Esta é também a fonte de todo movimento contemporâneo da construção de pós-verdades, da real e satisfeita cultura política da mentira, que é igualmente ato radical de violência contra a ordem de sentidos acordados, em nome do desejo exclusivo do poder. Assim, do mesmo modo, no mesmo campo, é coerente que já se fale agora em alterar as regras do jogo institucional, duplicando e configurando o golpe antidemocrático em definitivo.

Desta perspectiva mais radical, a crise estabelecida pelas próprias elites brasileiras na gestão de um país destruído por elas próprias deve ser paga pelo sacrifício social dos pobres e dos excluídos, em uma espécie de solução para-fascista para a nossa real incompetência histórica.

Um sacrifício que se dá tanto na exclusão da produção de direitos, na qual os pobres não se representam, quanto na exclusão real no mundo da vida, onde violências ilegais, de Estado ou não, acontecem mesmo com liberdade.

Não podemos nos esquecer nunca do tradicional e não regatado fundo de cisões sociais e do direito ao sadismo antipopular de nossa formação de quatrocentos anos de espaço social escravocrata, colonial e nacional, que, como fantasia política de fundo, ainda modula o desejo de extermínio, tortura e suspensão dos fundamentos da democracia próprio de nossos autoritários, ressuscitados hoje pelo que há de pior no Brasil, que também estão no poder.

Os atos de violência de Estado, covardia e incompetência técnica e social, como a morte banal de Ricardo Nascimento, ou a água fria jogada em miseráveis em um dia gelado em São Paulo, realizados por agentes públicos e a serviço do público, representam a tomada do poder e a guinada do Estado para a visão bárbara, ilegal e abertamente contra os direitos humanos universais firmados pelo país, de setores da nova velha direita nacional. É também o mesmo movimento de mentalidade que multiplica de fato as ameaças aos direitos democráticos com o sonho, pesadelo, da eleição de um ex-militar de extrema direita, defensor declarado de ditadura, de tortura, de armamento da população e de assassinato de adversários políticos.

Assim faz sentido que ao final do ato de reação democrática e cidadã contra a violência de Estado, quando da missa de sétimo dia do carroceiro Ricardo na Catedral da Sé, que estava cheia, na qual os bispos auxiliares do Cardeal de São Paulo denunciaram a real política de execução do brasileiro pobre que acontece hoje no Brasil, durante as manifestações dos vários grupos de direitos humanos que lá estiveram em conjunto com o povo da rua que acorreu à cerimonia tenha surgido um grito popular espontâneo, de chamada à responsabilidade e de nomeação de algum responsável pelo que de fato está ocorrendo entre nós em relação aos direitos fundamentais à vida. A população ali presente gritou, para quem quisesse ouvir: “Geraldo assassino”, sinalizando com clareza o nível de barbárie com que a política social brasileira está se confundindo.

Não haverá pós-verdade que possa apagar o sentido dos atos de crueldade que a tomada do poder pelo vínculo de neoliberalismo e autoritarismo brasileiro estão produzindo no País hoje, na degradação real da democracia em um campo de liberdade para a força direta e para o mal, regressivo e incapaz de dar conta verdadeiramente da vida contemporânea.

* Tales Ab´Sáber, psicanalista, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo, autor de, entre outros Dilma Roussef e o ódio político (editora Hedra, 2015) 

MAIS
- Leia também o depoimento da jornalista e documentarista Paula Sacchetta sobre o episódio do extermínio do reciclador Ricardo Silva Nascimento. 
- Dia após a morte de Ricardo, Gilvan Artur Leal, amigo do carroceiro morto pela PM paulistana, que testemunhou o crime, também veio a falecer em decorrência de um AVC. Barbicha, cão de estimação de Piauí, como Gilvan era conhecido, está a espera de uma adoção e pode encontrar um novo dono por meio do e-mail: adoteobarbicha@gmail.com
- Tales Ab’Sáber foi capa de nossa edição 105, em entrevista à repórter-especial Luiza Villaméa. 

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