segunda-feira, 31 de julho de 2017

Para sermos a favor da greve, temos que questionar a atuação da Justiça do Trabalho

       Foto: Reprodução/Agência Brasil


Um exemplo paradigmático ocorreu nessa semana, quando o Tribunal Regional do Trabalho de SP limitou o direito de greve dos metroviários, praticamente esvaziando a capacidade de mobilização
Parte significativa do Poder Judiciário, incluindo-se aí a Justiça do Trabalho, deixou de lado a função de guardião da Constituição e assumiu, sem ressalvas, a proteção da coalizão política que está terraplanando os direitos sociais. A função de interpretação da legislação, significativamente complexa e sobre a qual não teremos oportunidade de abordar aqui, vem sendo antecipada e os conflitos sociais têm sido resolvidos da forma mais previsível possível, pela pena de ministros e desembargadores.

Nessa semana, por exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Regiãodeferiu liminar que impõe limites às paralisações nos serviços da Companhia de Trens Metropolitanos (CPTM) e da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) previstas para ocorrer a partir da 0h da próxima terça-feira (01), por 24 horas” . As liminares foram deferidas pelos desembargadores Carlos Roberto Husek, vice-presidente judicial do Tribunal, e Willy Santilli, respectivamente.
A decisão do Dr. Husek determina que os ferroviários da CPTM mantenham 80% do efetivo, em todos os serviços de operação de trens, especialmente “maquinistas, pessoal de estações, segurança, manutenção e operação nos horários compreendidos entre 4h e 10h e 16h e 21h. Para os demais períodos, o efetivo deverá ser de 60%” (ibidem). A liminar também proíbe a “liberação das catracas”.
Dias antes, o desembargador Santilli “determinou os mesmos percentuais de metroviários na ativa, em caso de greve, para os seguintes horários: das 6h às 9h e das 16h às 19h” (ibidem). Ao assumir essa postura, o Tribunal Regional do Trabalho, já conhecido por suas posições conservadoras na interpretação/aplicação do Direito do Trabalho, ignora a Constituição e assume o seu papel que garante dos mais reacionários interesses do governo paulista – que é fiador dos interesses do Governo Federal, ao menos quando o tema é a máxima redução dos direitos trabalhistas e previdenciários.


A Constituição é bastante clara ao dispor a respeito da greve: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (art. 9º). Ora, se a Constituição, texto que define o pacto jurídico e político de um povo; fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, ilimitada e responsável pela construção dos valores e objetivos da sociedade brasileira, diz que cabe “aos trabalhadores aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”, não há argumentação constitucionalmente legítima por parte do Tribunal para limitar – na prática vetar – o movimento reivindicatório dos metroviários e ferroviários.
A greve é um direito fundamental-social da categoria assegurado pelo núcleo de direitos imodificáveis da Constituição. Para que se compreenda a violação praticada, seria, mutatis mutandis, como se um Tribunal criasse uma exceção judiciária ao direito de propriedade (direito tão dileto às castas conservadoras); proibindo, por exemplo, determinado coletivo de pessoas de exercer o seu direito de propriedade. Como seria se, ao invés de proibir metroviários e ferroviários da greve, um Tribunal proibisse os proprietários e acionistas de empresas férreas e metroviárias de adquirir e exercer livremente o direito de propriedade? Pois a ilegalidade e injustiça de se proibir uma categoria de exercer o seu direito de greve possui o mesmo nível de arbitrariedade.
Que o senso comum não compreenda exatamente o que é uma greve é compreensível. A greve surge, em suas diversas modalidades, como o único instrumento de quem trabalha para vetar mudanças prejudiciais ou forçar uma negociação minimamente justa.
Sem os impactos da paralisação, não há argumento capaz de sensibilizar o lucro. Portanto, greve é sim para incomodar; causar transtorno, distúrbios, dificuldades. É o momento pelo qual o coletivo organizado traz para si a atenção social e coloca sob as luzes as dificuldades de vida e trabalho que são restritas a quem trabalha naquele setor. Daí ser especialmente grave que um Tribunal que deveria ser “do Trabalho” condene as reivindicações de metroviários e ferroviários – categorias das mais importantes em tempos de sociedade e transportes de massas – à escuridão; à margem; à periferia jurídica.
Sinaliza o Tribunal que a função do metroviário e do ferroviário – e logo mais esses precedentes serão replicados para quase todos os demais trabalhadores – é trabalhar sem reclamar; sem reivindicar; ignorar suas dificuldades, engolir os dissabores e ilegalidades e submeter-se a qualquer tipo de alteração prejudicial e ainda agradecer aos céus ao final do dia, pois poderia ser pior – poderia nem existir emprego. Esse discurso é extremamente sedutor em uma sociedade que sobra desemprego e desesperança.
Quem está há tempos desemprego talvez desejasse uma fonte de sustento, ainda que em condições precárias e vai se solidarizar com o censor de quem “reclama de barriga cheia”. Isso nos faz, todavia, caminhar firmemente para a banalização do mal, para o autoritarismo, o colapso dos direitos e da solidariedade. Mais do que vetar direitos, o Tribunal contribui para a quebra de valores sociais, para o fim da solidariedade e sinaliza que a justiça de São Paulo não é a justiça constitucional, mas a prevalência de uma falsa paz social, fruto de reivindicações e clamores ingurgitados e expectativas em desencanto.
Talvez quando nós acordarmos para o fato de que somos todos metroviários, ferroviários, padecentes de um corte vil nas garantias constitucionais, talvez não haja mais juízes ou tribunais.
Angelo CabralAngelo Antonio Cabral é Mestre pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP, 2014). Cursou Especialização em Direito do Trabalho pela mesma instituição (2009) e, pela Universidade de Coimbra cursou Especialização em Direitos Fundamentais (“Ius Gentium Conimbrigae” – IGC, 2013). Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Taubaté (2006). É pesquisador do núcleo de estudos e extensão «O trabalho além do direito do trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral», DTBS/USP. Autor, pela Juruá Editora, dos livros Direito Ambiental do Trabalho na Sociedade do Risco (2016) e Teoria da Constituição – Introdução ao Direito Constitucional Brasileiro (2015). É advogado, sócio de Crivelli Advogados Associados, e professor.

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