Tecnologia do golpe na América Latina
Por Luiz Cláudio Machado dos Santos
Em meio à crise sem paralelo que vive o Brasil é impossível não refletir sobre o caráter espacial e temporal da onda autoritária que novamente bate à nossa porta.
A agudização da crise do capital, exposta em suas vísceras a partir de 2008, demandou um reordenamento nas condições de exploração centro-periferia, buscando uma nova etapa de superexploração neocolonial, o que, por sua vez, obrigou a uma ofensiva em grande escala contra países que, de alguma forma, mantivessem instrumentos de Estado capazes de certo grau de reação à desordem impulsionada pelo comando sistêmico.
Exemplos dessa ofensiva, a “Primavera Árabe” e as “Revoluções do Leste Europeu”, apontaram claramente como resultante, ao fim e ao cabo, a fragilização extrema dos instrumentos de Estado que restaram, quando restaram, e um alinhamento pragmático e subserviente com o Ocidente. O produto dessas operações, saudadas pela imprensa do “mundo livre e democrático” como a aurora da liberdade, resultou em Estados falidos, como a Líbia, no avanço do fascismo, como na Polônia, no nacionalismo xenófobo, como na Ucrânia, no fortalecimento de ditaduras sangrentas, como no Egito, no incentivo ao fundamentalismo militante, como no Estado Islâmico, na guerra civil, como na Síria...
Contudo, apesar dessa ampla movimentação no cenário internacional, muitos, na América Latina, foram incapazes de perceber que o processo de relativa autonomização e liberdade, vivido na última década encontrava-se sob sério risco. As análises da grande mídia, em geral, saudavam o fato de que as administrações norte-americanas não manifestavam o menor interesse pela América ao sul do Rio Grande. Ora, as ações encobertas, covertactions, reveladas por inúmeros vazamentos e brilhantemente analisadas pelo Professor Moniz Bandeira, foram inicialmente direcionadas para as regiões mais caras e sensíveis ao controle sistêmico: Mediterrâneo, Leste Europeu e Oriente Médio. Se não fosse trágico, seria risível, imaginar que Washington havia desistido de seu diktatsobre seu antigo e tão lucrativo quintal.
Logo, as ações desencadeadas a partir do Norte atingiriam, de forma diferenciada, modulando a intervenção ao objeto em questão, a Venezuela, o Paraguai, o Equador, o Chile, a Argentina e, a joia da coroa, o Brasil.
O capitalismo, ápice da ação homogeneizadora e hegemonizadora, por sua natureza e destino, avança sobre toda a geografia existente e submete Estados e nações à lógica geopolítica da acumulação sem fim. Em outras palavras, não existe espaço a salvo do capitalismo e de seus longos braços de desejo e poder.
Se a espacialidade, latitude e longitude, é transformada em um dos ativos mercantis do capitalismo triunfante, também as temporalidades são atravessadas, em todos os ângulos e sentidos, por forças vetoriais impulsionadas por estímulos brutais, que reivindicam o reconhecimento de sua presença, fincada num tempo dilatado, como garante sistêmico e, portanto, major player, no jogo de poder e fortuna que se desenrola, como não poderia deixar de ser, aqui também em Nuestra América. Como para qualquer produto ou marca, a permanência no tempo é um precioso ativo, mercadoria valiosíssima. Dessa forma, para o poder imperial, a ancestralidade do trono infunde medo e apatia entre os vassalos, constituindo essa memória poderoso elemento desorganizador das resistências possíveis de modo a rebaixar o custo da dominação e constituir ativo essencial à produção e reprodução do capital na periferia sistêmica.
"Se espaço e tempo, na era do capitalismo se constituem, como tudo, de resto, em mercadorias e se o jogo das trocas exige apurado savoirfaire, é essencial que compreendamos como se fundamenta a 'tecnologia do golpe na América Latina' e as várias faces que assume no curso da história. Ora, a eficiência de uma tecnologia garante valor de mercado na medida de sua aplicabilidade ao maior número possível de objetos" |
Se espaço e tempo, na era do capitalismo se constituem, como tudo, de resto, em mercadorias e se o jogo das trocas exige apurado savoirfaire, é essencial que compreendamos como se fundamenta a “tecnologia do golpe na América Latina” e as várias faces que assume no curso da história. Ora, a eficiência de uma tecnologia garante valor de mercado na medida de sua aplicabilidade ao maior número possível de objetos. Também aqui, em nosso hemisfério, a tecnologia do golpe se adaptou a todos os terrenos, climas e demografias: um sucesso na arte de dar cor local ao desiderato apátrida da submissão excludente.
Avaliando dialeticamente, toda tecnologia é uma amálgama do velho e do novo, de permanências e rupturas. Logo, lançando o olhar sobre a nossa vizinhança e nossa história comum, destino atávico e inescapável, encontramos, para surpresa de muitos, uma manifestação golpista que revela parcela de uma certa tecnologia que reconhecemos no processo de deposição da presidente Dilma Rousseff: o golpe que instituiu a última ditadura uruguaia nos anos setenta do século passado.
As semelhanças entre os dois processos são impressionantes e, ao mesmo tempo, propõem profunda reflexão. Essa tecnologia de ampla intervenção social é composta por um elemento permanente e outro cambiante. O permanente diz respeito à defesa da acumulação capitalista e o cambiante, à adaptação dos objetivos fulcrais da ação face as necessidades conjunturais que revelam a especificidade de cada país e seu tempo imediato. Portanto, se a defesa das necessidades do capital mantém seu caráter de racionalidade essencial na interrupção das experiências democráticas em nossa região, analisemos aquilo que pode ser comparado na roteirização da ação direta e escalonadalevada a efeito tanto no golpe uruguaio (1968-1973), quanto no brasileiro (2016-?).
Inicialmente, a consagrada definição do golpe uruguaio nos faz cogitar, de imediato, sobre uma das características essenciais do processo brasileiro: o uso do tempo dilatado como laboratório para uma multiforme inoculação do germe do autoritarismo no tecido social. No nosso vizinho, o processo organizado de erosão da democracia se inicia com a presidência de Jorge Pacheco Areco, em dezembro de 1967, até o desfecho golpista propriamente dito, já no governo de Juan Maria Bordaberry, em junho de 1973. Deve-se ressaltar que, em ambos os casos, mudanças estruturais na economia internacional e profundas fendas nos arranjos políticos e sociais, constituíram cenários movediços que agudizaram a crise de hegemonia vivenciada no estamento dos donos do poder.
Para o sucesso do empreendimento, lá como aqui, se impôs a necessidade de operar um longo período de ataque à experiência democrática recentemente vivida (conceito e forma), desgaste das instituições e personalidades políticas, crescimento contínuo da arbitrariedade e da opressão, campanha midiática de crítica incessante e repetitiva, além de sublinhar, seletivamente, as manifestações de autoridades militares e judiciárias coonestando ameaçadoramente as seguidas rupturas com a legalidade. Daí ter recebido, no país platino. os nomes de “Golpe Longo”, “Golpe em Câmera Lenta”, “Ditadura Constitucional”, o que também se aplica à perfeição ao Brasil, onde a narrativa da direita se organiza, como sistema de meios e finalidades, a partir do assim chamado “Mensalão”, em 2005.
Em Montevidéu, as primeiras ações do governo Pacheco Areco (1967-1972), início do “Golpe em Câmera Lenta”, refletem a subordinação aos interesses financeiros e econômicos locais e internacionais e operam, através de medidas de exceção, no sentido da restrição dos direitos dos trabalhadores, do arrocho salarial, do ataque aberto aos movimentos populares, o que, dada a anomia geral, não encontrando resistência eficaz, são mantidas e depois aprofundadas quando da fase ditatorial, stricto sensu, do consórcio civil-militar.
Dadas as distancias históricas (especificidades nacionais, ambiente regional, Guerra Fria, etc), o assalto às conquistas dos trabalhadores e as práticas de violação dos direitos humanos nessa fase do golpe no Brasil, são adotadas através de legislação aprovada no parlamento e de meticuloso e estudado processo de desmonte, asfixia e desorganização do aparelho de Estado, com o intuito de desconstituir os instrumentos de fiscalização e defesa dos seguimentos mais desprotegidos da sociedade brasileira. A legislação relativa à definição de trabalho escravo e a reforma trabalhista são exemplos incontestáveis dessa formulação. É de se notar que, apesar do ambiente tumultuado da condução governista, os passos são lógicos e racionais, questionando a ideia, seguidamente veiculada, de que o grupo que chega ao poder pelo golpe não sabia o que fazer.
A tecnologia adotada constituiu um roteiro de ruptura institucional que previa a necessidade do estabelecimento de uma razão central, verdadeira ideia-força repetida ad nauseam, que fosse absolutamente clara e sistematicamente ressignificada durante todo o Golpe Longo, para que o processo pudesse ingressar em sua fase mais violenta e crua com o menor nível de resistência possível. No Uruguai, das décadas de 60 e 70, a ação dos Tupamaros, no caso do Brasil, a “corrupção e o caos político, econômico e social”. Em ambos os casos, essa surrada argumentação nos faz viajar no tempo, na medida em que trata-se de uma voz muitas vezes ouvida, a voz rouca e seca da entidade seguidamente reencarnada na América Ibérica: o velho Partido da Ordem, o verdadeiro e atemporal partido das elites latino-americanas a lembrar quem manda, o lugar da obediência ajuizada e o destino inglório dos desajuizados.
Efetivamente, o que se procurava combater, quando do desfecho militar do Golpe Longo no Uruguai, não eram mais os Tupamaros, já então derrotados, mas sim, o que estava em jogo, era o crescimento político-eleitoral da Frente Ampla (reunião de partidos e organizações de esquerda). Também no Brasil, o Golpe Longo, na impossibilidade de retirar Luís Inácio Lula da Silva da disputa e, no caso de eventual vitória do líder petista, trabalhará pela crise, para, no limite, apelar, se necessário, à intervenção militar que já está colocada no quadro de opções do Alto Comando do Exército como cristalinamente exposto pelo General Mourão. A candidatura e a eventual presidência de Lula, na conjuntura acima desenhada, só pode ser salva do desfecho anunciado do Golpe Longo, aprofundando o caráter popular e democrático de suas bases, colocando as massas populares em movimento imediato, pois o imobilismo ou a crença, quase metafísica, em um novo período de consenso e conciliação representaria o tempo-espaço essencial para a organização da sua derrubada violenta. Nesse sentido, o elemento catalisador para assegurar a presença das massas nas ruas, em defesa de seus direitos e conquistas, seria a Assembleia Nacional Constituinte como espaço privilegiado da refundação republicana. Qualquer hesitação pode levar a um golpe de proporções infinitamente mais traumáticas que o levado a efeito contra o mandato da presidenta Dilma.
Ora, se o mais raso dos raciocínios reconhece que o golpe que vivemos só se conclui com a inelegibilidade de Lula, o que nos faz supor que no caso de eventuais candidatura e vitória eleitoral da esquerda, as forças do autoritarismo se curvariam à decisão das urnas? Urnas, aquelas mesmas, desrespeitadas sem nenhum pudor em 2016.
Quanto ao apoio internacional, ele viria, rápido e consistente, de quem verdadeiramente interessa: os Estados Unidos da América. Afinal, estamos em tempos de Trump e o Brasil é grande demais para ser marginalizado na cena internacional. Uma solução de compromisso formal acenando para democracia como objetivo do golpe e o poder de veto dos EUA fariam o resto do serviço. Enfim, é justo reconhecer que na América Latina Washington não costuma faltar aos seus.
Se a história é a mestra da vida, urge que aprendamos com nossos erros, com nossas derrotas, com a vitória de nossos adversários. Já sabemos, pela tecnologia aplicada na interrupção da democracia, ontem e hoje, o que nos reserva se inertes ficarmos. A candidatura Luiz Inácio Lula da Silva sequer se estabelecerá se não contrapuser à força do “Golpe Longo”, as razões e a força do povo organizado em movimento.
A Constituição foi rasgada pelas forças do atraso e as ameaças à convivência civilizada se avolumam. É hora de caminhar o caminho dos excluídos, organizar uma nova Carta Magna onde a ampla maioria se reconheça como sujeito de direitos e forjadora do seu próprio destino.
Barbárie ou Civilização, eis a questão.
♦ Luiz Cláudio Machado dos Santos é doutor em História Social pela UnB, professor de História Moderna e Contemporânea da UFPA e coordenador-Geral da Educação de Jovens e Adultos SECADI/MEC na gestão Dilma Rousseff.
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