quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A internet já está destruída

 

O termo 'neutralidade da rede' parece estranho

Por Nick Pemberton - Sin Permiso

No final de 2014, Kim Kardashian lançou uma campanha onde pretendia “detonar a internet”. Fez algumas fotos nua e teve enorme sucesso, o que a fez ser o alvo de 1% de toda a atividade da rede. Agora, a preocupação é que esse tipo de expressão democrática nunca mais seja possível. Assim será (ou nunca mais será) quando o fim da neutralidade da rede for realidade.

O termo “neutralidade da rede” parece estranho. Definitivamente, ninguém reclamou de neutralidade na rede quando páginas web de esquerda entraram na lista negra da Google, ou quando Jeff Bezos, dono da Amazon, comprou o Washington Post. Sem mencionar que todo o conteúdo que recebemos provém de seis grandes companhias, as quais possuem praticamente todos os meios de comunicação que consumimos. É curioso ver gente que busca informação somente nos grandes meios corporativos lamentando a perda da neutralidade.
Mais inquietante que a perda de uma suposta liberdade na internet é perceber que muitos não sentirão que estão perdendo algo. Inclusive sob uma configuração neutra da rede, uma gigantesca parte das pessoas escolhe sempre os mesmos sítios web que agora, com a vantagem financeira que possuem, serão a única opção disponível para uma grande parte dos consumidores.

O objetivo das “fake news” é justamente o de evitar que vejamos a história completa. A ideia de que existe uma espécie de conspiração progressista disseminada por todos os noticiários da imprensa hegemônica é absurda. Essa gente posa de progressista para esconder os interesses corporativos, às vezes os dos próprios progressistas, mas na maioria das vezes estamos falando dos interesses de todos aqueles que odeiam os progressistas.

Uma estratégia mais efetiva que a mentira descarada é contar uma parte da verdade. Ou simplesmente fazer uma série de especulações sobre um assunto, e jamais apresentar uma evidência concreta que prove o que está sendo especulado – a suposta intervenção russa nas eleições estadunidenses é um modelo a seguir nesse sentido.

As distrações massivas que recebemos pela internet não são necessariamente falsas, são somente idiotices. Poses de selfie como resistência. Memes que funcionam como análises políticas. A trolagem irritante vista como debate.

Os Estados Unidos sempre foram bastante benevolentes com respeito à liberdade de expressão, e nós somos tão estúpidos que acreditamos em tudo o que escutamos. Não deixa de ser irônico que seja Trump o presidente que proíbe usar a palavra “feto” nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças, quando pensávamos que ele representava uma censurada maioria silenciosa que pelo reinado do politicamente correto. Pode ser que Trump seja um autoritário, mas Obama sem dúvida também foi. É coisa de ver como tratou as pessoas ousaram difundir a informação que os Estados Unidos tentaram esconder, sobre os programas de vigilância massiva: o que aconteceu com Manning, Snowden, Assange…

A ideia principal agora é que a neutralidade da rede tem um valor limitado se seguimos o roteiro dos nossos amos corporativos. Certamente, a neutralidade é um direito que merecemos e abandonar tal princípio é outro passo rumo ao autoritarismo. Nesse sentido, o fim da neutralidade pode ser mais problemático por suas implicações que pelos efeitos diretos que teria numa sociedade que por si já é dócil.

Além do mais, a internet que não é a primeiro espaço onde se vê o fim da neutralidade. Um país que está tão escandalizado pela propriedade privada da internet, que posição toma com respeito à propriedade privada da terra? Os colégios norte-americanos estão sendo privatizados. Também os parques, o solo, a água, o ar. A água da reserva Standing Rock é neutra? E o que dizer da contaminação do ar? Quem é o proprietário do ar quando certas pessoas se aproveitam de sua contaminação? As pessoas também seriam neutras? Analisemos isso na questão das relações de trabalho, ou da violência doméstica, ou no fato de como os pequenos comércios não podem competir contra os grandes. Num país onde 1% da população possui mais riqueza que os outros 99%, estamos preocupados com a neutralidade da rede.

A perda da neutralidade afetará todas essas coisas, mas pode ser que desta vez nós tomemos isso como uma oportunidade para perder menos tempo na internet e passar mais tempo juntos. E não me refiro somente a gostamos uns dos outros, mas sim de aprender uns dos outros. Se alguém quisesse ler somente as notícias “neutras”, poderia terminar o dia pensando que os tiroteios massivos acontecem todos os dias, ou que todo mundo se parece à Kim Kardashian, que os russos estão à espreita em cada esquina e que os ricos passam a vida doando dinheiro para fins benéficos. A internet sempre representou um mundo, de certa forma, distante da realidade.

As notícias na internet são as histórias contadas por seis pessoas muito ricas. O mundo tem muito mais gente e opiniões divergentes. A esperança seria que a perda nos levasse a abrir portas para outras formas de nos conectarmos com o nosso mundo, de entendê-lo melhor. Até agora, entretanto, o medo de perder a neutralidade encontra uma resposta engendrada pela própria internet: uma indignação instantânea, carente de reflexão. Um cyberanzol que ajuda a estropear ainda mais a internet, e não a melhorá-la. O fim da neutralidade em breve será esquecido, quando o próximo matrimônio real ou grande evento cumpra o seu papel de distração, e logo continuaremos consumindo a verdade que aquelas seis pessoas nos oferecem, enquanto elas desfrutam dos benefícios adquiridos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12