O que mais espanta na tardia prisão de Paulo Maluf não é a justiça lerda e crepuscular, pois Judiciário sempre foi e continua falho: protege os ricos e corruptos e penaliza os pobres e indefesos. Também não espanta a reação da direita política, da qual Maluf foi um ícone e hoje é quase um aposentado, mas não a ponto de não defender Temer na Comissão de Constituição e Justiça, no último dia 17 de outubro. Também não espanta a leniência liberal-corrupta, sempre pronta a defender aqueles que praticam atos lesivos ao bem público, como fez Temer no vergonhoso indulto de Natal. O que mais espanta são as reações de alguns analistas e pessoas de esquerda, que se apiedaram do velho cacique civil da ditadura militar.
Os piedosos argumentos são os mais estapafúrdios e maniqueístas: não haveria sentido em prender Maluf quando se deixa Temer solto; a justiça tardia não é justiça; a prisão de Maluf seria uma mera demonstração de serviço do Judiciário desgastado; teriam prendido Maluf para justificar a futura prisão de Lula; Maluf hoje seria inútil e não estaria mais praticando a corrupção; não haveria nenhuma utilidade na prisão de Maluf, pois se trataria de um octogenário decrépito; a prisão de Maluf seria um ato moralista do Judiciário, e assim por diante. Estes argumentos são uma amostragem do quanto a desorientação política e moral do país contaminou parte da esquerda. O pragmatismo tosco e oportunista de alguns, que se diz crítico do principismo, vem estimulando uma esquerda sem princípios. Uma esquerda sem princípios já não é mais esquerda.
Independentemente das falhas da Justiça e do Estado brasileiro, Maluf merece ser castigado porque é um corrupto e criminoso contumaz, que causou donos irreparáveis ao bem público, proporcionando sofrimento e mortes a pessoas desassistidas pela ausência de recursos Estado, apropriados pela corrupção. Sentir piedade por Maluf é ser cruel e desumano com aqueles que não foram atendidos pelos hospitais públicos; com crianças que não tiveram creches; com as mães que não puderam trabalhar porque não tinham com quem deixar os filhos; com aqueles que sofreram diariamente os sacrifícios de um transporte moroso, caro e de má qualidade; com aqueles que tiveram habitação, saúde, educação, cultura e lazer sonegados; com aqueles que viveram uma vida sem dignidade nas periferias de São Paulo pela ausência de recursos públicos.
Por ser causador de toda essa injustiça e sofrimento, Maluf adquiriu o direito de ser punido, de ser privado de seus direitos, e o Estado e a sociedade adquiriram o dever de puni-lo. Maluf tem uma sentença transitada em julgado enquanto cerca de 200 mil presos provisórios, vários deles idosos, não deveriam estar na cadeia, mas estão lá porque são pobres. Outros milhares, com direito à progressão da pena, deveriam estar livres, mas estão lá porque são igualmente pobres.
Partindo da conquista histórica da humanidade, de que todos são iguais perante a lei, o Estado não pode abrir mão da sua pretensão punitiva e coativa contra aqueles que violam os direitos e a liberdade dos demais cidadãos. Maluf não violou apenas direitos particulares, mas violou direitos universais configurados nos bens públicos. Abrir mão dessas pretensões punitiva significaria o triunfo do mais forte, significaria a instauração do espetáculo da corrupção, da devassidão e da miséria humanas. O Estado brasileiro falha justamente porque exerce mal, de forma injusta e parcial, a execução de suas pretensões punitivas e coativas contra os celerados, principalmente os das classes abastadas e contra os privilégios de políticos, do alto funcionalismo e dos próprios juízes.
Alguns dos candidatos a Raskolnikov intelectuais da nossa esquerda argumentam que o sistema penal deve se orientar para prevenir e ressocializar, e não para apenar, e que não teria sentido prender Maluf porque ele não exige mais prevenção. Isto sim é espantoso. Ora, qualquer sistema penal digno precisa ter três dimensões: prevenção, punição e ressocialização. A punição é condição necessária da prevenção. A prevenção só é função da lei e do sistema penal se ela funcionar enquanto medo do castigo, induzindo o indivíduo a cogitar e raciocinar acerca das consequências desagradáveis de seus atos não justos. O Brasil é o país de corrupção institucionalizada e da criminalidade generalizada porque, em grande medida, não há punição, a não ser para os chamados crimes de baixo potencial ofensivo, crimes contra o patrimônio.
Aos políticos, com exceção dos políticos de esquerda, aos altos funcionários, aos juízes e aos criminosos de colarinho branco é concedido o estatuto de "homens superiores", com direito à corrupção, à sonegação e a uma série de outros crimes. O inimaginável é que, agora, algumas pessoas de esquerda estejam engajadas na concessão desse estatuto.
A piedade cruel
O Maluf preso, não haja dúvida sobre isto, é o mesmo Maluf que roubou, serviu a ditadura militar e serve o governo golpista de Temer. Ele e sua família continuam usufruindo das benesses dos 400 milhões de dólares desviados da prefeitura. O que retornou, até agora (45 milhões de dólares, podendo chegar a 100 milhões), vem de de bancos que contribuíram com a lavagem de dinheiro e que fizeram acordos com o Ministério Público e com a prefeitura, mas não o dinheiro embolsado pela família Maluf.
Dizer que o Maluf de hoje não deveria ser preso porque não é mais aquele antigo Maluf equivale passar a seguinte mensagem: "corruptos, sejais espertos. Roubai do povo e cuidem para não serem presos até a velhice. Ao se aposentarem da atividade de corruptos e criminosos, não mereceis mais serem presos porque estareis velhos e caquéticos". Um nazista e ou um criminoso de guerra, envelhecido e aposentado, não deve pagar pelos seus crimes, mesmo que tardiamente? Um corrupto que causa dor, sofrimento e mortes de forma indireta, não merece ser punido, mesmo que tardiamente? O ex-médico Abdelmassih não deve pagar pelas dezenas de estupros que praticou por ser um idoso? Enfim, agora surge essa nova teoria do direito à impunidade e da não imputação a criminosos velhos e aposentados.
Maluf mostrou-se falso e degenerado até mesmo no dia da sua prisão: saiu ereto e caminhando sozinho para entrar no carro em sua mansão para aparecer de bengala e apoiado em outras pessoas na frente do IML. Maluf não tem adequação moral para viver no convívio social, menos ainda para ser deputado. Os ardis jurídicos dos advogados pagos a peso de ouro terminarão por colocar Maluf em prisão domiciliar para que ele continue escarnecendo do povo pobre de São Paulo, usufruindo de uma vida de luxo com os recursos assaltados dos cofres da prefeitura. Apiedar-se de uma pessoa dessas e escrever em sua defesa não só é cruel, mas representa a perda do sentido do humanismo.
O humanismo não pode ser tido como um mi mi mi onde algozes é vítimas, estupradores e estupradas, corruptos e deserdados dos bens públicos se sentam na mesma mesa para festejar um Natal feliz e de paz. Para milhões de pobres, carentes, necessitados, e deserdados dos direitos, vítimas de tantos Malufs da vida, o Natal não é nem feliz e nem de paz. O humanismo não pode ser concebido como um arranjo delirante de flores e de celebrações de seres humanos angelicais. Enquanto o bem estar e a riqueza de poucos é fruto das misérias e da pobreza de muitos, não há humanismo. O humanismo está inarredavelmente vinculado à conquista prática da justiça, da igualdade e da liberdade. A tradução prática desses valores requer lutas, batalhas, guerras, sangue, punições e o castigo do apenamento de poderosos criminosos. Os piedosos que não têm essa consciência são cruéis e desumanos.
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