sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Darcy Ribeiro e a estrutura de classes no Brasil de hoje


Darcy Ribeiro e a estrutura de classes no Brasil de hoje

Por Roberto Bitencourt da Silva

Um dos mais expressivos e fecundos pensadores sociais brasileiros, que em muito contribuiu e, por meio dos seus inúmeros estudos, ainda contribui para a reflexão sobre a realidade do País, o cientista social Darcy Ribeiro nos deixou há 21 anos. Então exercendo a função de senador (PDT-RJ), Darcy faleceu em 17 de fevereiro de 1997, aos 74 anos de idade.

O seu legado é imensurável. Seja como estadista, agente da educação pública, antropólogo, ficcionista, seja como ator político dotado de engenho criativo e combatividade, cuja saliente veia nacionalista, anti-imperialista e socialista era notória e irritava as colonizadas mentes das elites econômicas, políticas e intelectuais tupiniquins. 

Como singelo resgate de memória e enquanto recurso de mobilização de fragmentos das ideias do grande pensador, o texto tem em vista explorar aspectos da análise feita por Darcy Ribeiro em torno da estrutura de classes do Brasil. Procuro, especialmente, chamar a atenção para o panorama das relações de força, desiguais e espoliativas, entre as classes sociais brasileiras, panorama descrito pelo autor, de sorte não apenas a salientar a argúcia da sua percepção política, como também ressaltar traços importantes para a compreensão do Brasil de hoje, a partir da escrita darcyniana.

Me baseio, sobretudo, na análise empreendida pelo “fazedor de escolas para o povão” em seu livro O dilema da América Latina (Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1978). Não gratuitamente, a obra é dedicada aos “jovens iracundos”. Darcy entendia que a estrutura de classes e de poder no Brasil envolvia quatro grandes aglomerados coletivos, com capacidades respectivas e profundamente assimétricas de exercício de participação política, de cidadania e (in)acesso a diferentes dimensões dos direitos humanos e à propriedade dos meios de produção e de bens de uso pessoal.

O topo seria formado pelas classes dominantes, divididas e articuladas em um patronato moderno e tradicional (grandes capitalistas domésticos, parasitários e produtivos, rurais e urbanos); no patriciado, que viveria de altas posições nas instituições do Estado (oligarquias patriarcais políticas, altos agentes do Judiciário etc.); e no estamento gerencial estrangeiro (corpos representativos das “empresas imperialistas”, notadamente técnico-burocráticos).

Logo abaixo viriam os setores intermediários – faixas altas e médias do funcionalismo público, civil ou militar, profissionais liberais, médios proprietários de negócios etc. Uma fonte de anteparo para os interesses dominantes, frente às classes de baixo, mas também formados por estratos com propensões políticas radicais, seja à direita, seja à esquerda.

Um terceiro universo da estratificação social comportaria as classes subalternas: a “aristocracia operária” empregada nas indústrias pertencentes a corporações multinacionais e demais assalariados portadores de vínculo empregatício, dotados ou não de filiação sindical.

Por último e compondo a mais dilatada fração da sociedade brasileira – em boa medida, também de outros povos latino-americanos – encontravam-se as classes oprimidas e marginalizadas. Todo um vasto e heterogêneo universo de gentes submetidas ao subemprego, ao desemprego crônico, ao desapossamento absoluto de direitos.

Estas últimas consistiriam no alvo preferencial do capitalismo dependente e subalterno, que as converteria em “carne a ser triturada” como “excedente demográfico”, para melhor regular para baixo os salários e os direitos coletivos, assim como para extrair riquezas a serem compartilhadas entre as alas distintas, mas conexas das classes dominantes. Note-se que não seriam “exército de reserva”. Mas, sim, espécies de “fantasmas” criados pelas classes dominantes, para incentivar os receios das classes intermediárias e subalternas contra o rebaixamento dos seus status sociais e estimular seus egoísmos. 

Do ponto de vista da participação política e da capacidade de incidir sobre o delineamento das leis, a composição e as escolhas de governos, da análise de Darcy não restaria dúvida que as classes dominantes exerceriam semidesenfreado poder. Denotando algum recurso de barganha e reclamo, os setores intermediários se fariam ouvir pelas estruturas de poder, assim como as vozes de segmentos das classes subalternas (sobretudo, sindicalizadas) teriam algum eco, nas instituições e na construção da opinião e da agenda pública. Entre as classes marginalizadas restaria somente o silêncio opressivo e a repressão aguda e incontrolável.

A análise a que faço referência foi desenvolvida há mais de 40 anos. Compreendo que, em linhas gerais, ainda conforma um razoável retrato da sociedade e das relações de força e poder no Brasil. Contudo, em virtude de significativas mudanças ocorridas no sistema produtivo e financeiro do País, de silenciosas e às vezes altissonantes reconfigurações no capitalismo dependente brasileiro, como também devido a expressivas mudanças no mundo do trabalho e do emprego, o intervalo de tempo requer revisões, parciais que sejam, no quadro pintado por Darcy. Precisamente por conta das implicações políticas em nossos dias. Senão, vejamos.

Em relação às classes dominantes se poderia dizer que o patriciado que parasita o Estado permanece firme e forte. Todavia, em função do acentuado processo de desnacionalização e de desindustrialização que atravessou as últimas décadas no Brasil, é plausível argumentar que o eixo das classes dominantes hoje encontra-se totalmente no estamento gerencial estrangeiro. Um fenômeno silencioso, que se desenrolou serena e folgadamente, em particular após os anos 1990.

Em nossos dias, o governo do golpista e vende pátria Michel Temer (PMDB) representa um verdadeiro processo de “atualização histórica” do País (nos termos dados por Darcy). Isto é, traduz a expressão política de poder dos conglomerados financeiros e produtivos internacionais, que avassalam as burguesias domésticas tíbias e subservientes, hoje convertidas em meras testas de ferro, gerentes e acionistas minoritários a serviço do real e efetivo poder gringo.

O projeto de venda e arrendamento semi-irrestrito de terras a estrangeiros, defendido pela própria Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), talvez consista no exemplar mais caro dessa subalternização aos interesses estrangeiros e à adoção do parasitismo como estilo de vida e prática política. O patriciado, político e judicial, é claro, tende a se orientar para essa realidade em que prevalece a intensificação do neocolonialismo. Nenhum compromisso com o País.

Nesse sentido, as relações de dominação e força a cada dia retiram relevância economicamente ativa de intermediários internos. Os imperativos forâneos se espraiaram mais do que na época do estudo feito por Darcy. Talvez seja possível especular sobre um potencial deslocamento contínuo dos grandes capitalistas domésticos em gerentes e oligarquias políticas a soldo das corporações multinacionais.

As classes intermediárias e subalternas, claro está, tendem a perder espaço, reduzido que possuía, em termos de vozes fragmentariamente ouvidas pelas instituições do poder. Possuem “direitos demais”, são “privilegiados” que precisam “se adequar aos novos tempos”, nos dizem os porta-vozes dominantes. Que tempos? De extração maior da mais valia, dos excedentes nacionais pelo capital internacional. Os capitalistas parasitários e entreguistas daqui, abandonando a produção direta, tendem a abocanhar mais ainda das classes de baixo, extraindo sua cota, já que parte maior dos excedentes, cada vez mais, são escoados para fora.

A cidadania e a participação política de intermediários e subalternos, forçosamente, tendem a ser mais restritas no sistema capitalista dependente em reconfiguração. Ademais, também por conta da desindustrialização e envolvendo, particularmente, segmentos das classes subalternas. Há 40 anos a indústria correspondia a cerca de 25% do PIB. Hoje mal chega a 10%. O número de empregos rebaixou dramaticamente, além de a indústria ter sido quase integralmente desnacionalizada. A “aristocracia operária”, em que nasceu Lula e o PT, perdeu e continuará perdendo força e espaço. Inclusive, voz.

Darcy estava certo e sua percepção identificou um processo que somente se fez acentuar. Refiro-me ao cenário flagrantemente marcado por relações de força e poder que contrapõe nos dois extremos o grande capital internacional às classes marginalizadas. São estas que pagam a fatura mais cara das crescentes remessas de lucros para o exterior, da importação tecnológica levada a cabo pelas multinacionais e pela parca e desnacionalizada indústria. São as classes marginalizadas que, com isso, ficam excluídas do mundo do emprego formal, sobretudo, técnica e profissionalmente mais adensado. A educação, um direito apenas superficial.

Tornam-se “população excedentária” (já sacava Darcy, há muito). Não gratuitamente, no Rio de Janeiro, encontram-se sob a mira das armas, dos constrangimentos, da humilhação e da violação de direitos elementares, a mando do títere-mor do capital internacional, Michel Temer. Cada tanque e arma voltada para essa parcela gigantesca do Povo Brasileiro é muito mais o sintoma da cavalar ordem neocolonial predominante do que qualquer mal alegada preocupação com a segurança pública e o combate ao tráfico de drogas. 

A saída desse quadro? Rápida, esquematicamente e com potenciais frutos somente para médio e longo prazo. Primeiro, trabalho político e pedagógico de organização e mobilização popular, escanteando débeis concepções eleitoreiras. Segundo, articulação entre amplas frações das classes intermediárias, subalternas e oprimidas/marginalizadas. Um poderoso bloco político-cultural que forje a (re)emergência do Povo Brasileiro contra as vendidas e transnacionais classes dominantes apátridas. Terceiro: recuperar a centralidade das atenções políticas e econômicas no papel desempenhado pelas corporações internacionais e observar as mutações ocorridas com a burguesia interna vende pátria.

Às esquerdas, não cabe, hoje, qualquer ilusão em relação a alianças com “burguesias nacionais e produtivas”. Elas, se já existiram sem muita força, não existem mais. Darcy pouco ou nada apostava nelas: “umas elites imprestáveis”, diria o grande mestre. E isso já faz bastante tempo.

Roberto Bitencourt da Silvahistoriador e cientista político.

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