Original publicado em 10 de janeiro de 2017 e explica a hipótese de Temer estar preparando a pax com o PCC como ponto central de sua estratégia
Os massacres em presídios são apenas o desfecho de um amplo processo nacional de convivência com o crime, de aceitação social, de parceria política e de negócios entre o país formal e a criminalidade.
O escravagismo e o bicho foram as primeiras organizações criminosas. Da estrutura do bicho nasceu o narcotráfico. Com seu conhecimento da arte de corromper autoridades públicas, o bicho saltou das delegacias municipais para as Secretarias de Segurança estaduais, e de lá para toda a máquina pública, para todos os poros da administração pública, entrando nas licitações municipais, estaduais, controlando o lixo, os transportes urbanos, da mesma maneira que a máfia na Itália, conforme revelou a CPMI de Carlinhos Cachoeira.
No mundo oficial, na base do Judiciário, há a generalização da prisão provisória de preso pobre. Para os tubarões, há a sucessão de recursos, a anulação de inquéritos por ninharias. Cada aumento das penalidades pega apenas os de baixo. Cada flexibilização nas penas, beneficia apenas os de cima.
Historicamente, política e crime – perdão, contravenção – sempre caminharam de mãos dadas. Na época da Proclamação da República, por exemplo, o jogo do bicho já dominava a Câmara Municipal do Rio de Janeiro (https://goo.gl/a3YqrK), através do Barão de Drummond.
Nenhum partido saiu imune dessas alianças, do PDT de Brizola ao PMDB de Quércia e Michel Temer, ao PT (clique aqui). Desde o momento em que o jogo internacional entrou na Caixa Econômica Federal, no governo Itamar Franco – vendendo sistemas para as loterias -, uma sucessão de escândalos abalou vários governos e abriu a primeira brecha no governo Lula com o caso Valdomiro – do qual se valeu a ala do Ministério Público Federal ligada a José Serra.
Vamos a um pequeno histórico das relações com a contravenção de dois personagens-símbolos do Brasil atual: o presidente Michel Temer e o Ministro da Justiça Alexandre de Morais.
Peça 1 - Michel Temer e a primeira pax paulista
As ligações de Temer com o jogo nasceram com sua própria carreira política. De advogado, tornou-se procurador. De procurador, Secretário de Segurança em São Paulo na gestão Franco Montoro. Assumiu com Montoro acossado, com manifestantes derrubando as grades do Palácio Bandeirantes, com a incumbência de montar a pax paulista. Empossado Secretário, sua primeira declaração foi pela legalização do jogo do bicho (Estadão02).
Quando saiu da Secretaria, estouraram denúncias de que sua campanha para deputado Constituinte foi bancada pelo jogo-de-bicho (clique aqui). O deputado estadual santista Del Bosco do Amaral (PMDB) acusou Temer de ter se apoiado nos “piores setores policiais, inclusive aqueles ligados ao jogo de bicho”. Acusava-o também de ter afrouxado a repressão ao jogo em troca da “corretagem zoológica” (clique aqui).
Houve uma CPI na Assembleia Legislativa, na qual o chefe de polícia de Temer, Álvaro Luz, afirmou ter sido orientado a reprimir apenas os bicheiros que atuassem de modo “ostensivo”. No caso, pequenos bicheiros que ousavam montar seus próprios negócios, competindo com Ivo Noal, Marechal, os donos do bicho em São Paulo.
As relações de Temer com o jogo não pararam aí.
O pacto do jogo com o governo do Estado durou até o caso Carandiru, no governo Fleury. Desde fins dos anos 80, o tráfico começava a invadir o estado, ameaçando o reinado dos bicheiros. Montou-se uma operação da Polícia Militar destinada a atingir alguns traficantes presos no Carandiru. Um acidente no caminho – um aparelho de TV arremessado na cabeça do comandante do efetivo, e o boato de que tinha morrido – resultou no estouro da boiada e no massacre de Carandiru.
Temer foi rapidamente convocado por Fleury a reassumir a Secretaria de Segurança. No período em que se manteve Secretário, o número de flagrantes contra o bicho caiu de 1.006 em 1990 (gestão anterior), para 746 em 1992 e 624 em 1993 (Folha17021997). Como sempre, as autuações eram em cima de pequenos bicheiros, que ousavam voos independentes. E já eram conhecidas as ligações dos bicheiros com o tráfico de cocaína (Angerami).
Um novo poder se sobrepunha ao bicho, o do PCC que rapidamente conseguiu a adesão das populações carcerárias, como efeito da profunda insegurança que se seguiu ao massacre caso Carandiru.
A ligação de Temer com o jogo era tão conhecida que, na CPI do Bingo, na Câmara Federal, incumbiu o senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), relator da Comissão, de mantê-lo informado sobre as pessoas que seriam convocadas ou investigadas (https://goo.gl/39aySf).
Recentemente, o presidente da Comissão de Turismo Herculano Passos (PSD-SP), informou que avançará na proposta de legalização do jogo, depois de ter conversado com Temer e “ele disse que pretende tocar para frente a proposta porque é bom para a economia e é bom para o país”.
Peça 2 - Alexandre de Morais e a segunda pax paulista
Do mesmo modo que Temer, a estreia de Morais no campo político-jurídico foi um livro sobre constitucionalismo. E seu princípio de vida talvez possa ser sintetizado no discurso que, como Ministro, fez a uma plateia lotada de estudantes: defendeu que os futuros advogados se preocupem em ganhar dinheiro, "porque não sou comunista nem socialista, muito pelo contrário" (https://goo.gl/eHu3MK).
Se a gestão Temer foi no auge do poder do bicho, a de Morais se deu no auge do poder do PCC. O embate maior foi em 2006, durante a campanha presidencial de Geraldo Alckmin. O PCC invadiu a cidade e executou diversos agentes públicos.
Celebrou-se um acordo (https://goo.gl/Nz8lzc), do qual Morais não participou.
Depois disso, a paz voltou a reinar – e o PCC ganhou espaço para crescer. Em troca da liberdade de ação, o PCC ajudou a reduzir os crimes violentos na periferia, um varejo que tinha o inconveniente de chamar a atenção da opinião pública, obrigando a polícia a intervir.
Dessa convivência pacífica se prevaleceu Alexandre de Morais. Quando Gilberto Kassab assumiu a prefeitura de São Paulo, levou Morais como seu homem forte, iludido por sua retórica de gestor.
Tornou-se um super-secretário acumulando as pastas de Transportes e de Serviços, presidindo o Serviço Funerário, a SPTrans e a Companhia de Engenharia de Tráfego.
No cargo, era o responsável pela negociação dos sistemas de transportes, incluindo as vans, sob o controle do PCC. Saiu depois de várias decisões intempestivas e desastrosas, culminando com o anúncio inesperado de que iria rever todos os contratos de ônibus e de vans da prefeitura (https://goo.gl/tH9bVC), sem ao menos consultar o prefeito.
A proposta desgostou muitos setores, não o PCC. Morais se tornou suficientemente confiável para, fora do cargo, ser contratado como advogado pelo PCC para sua cooperativa de vans, a Transcooper (https://goo.gl/kbxGnw)
Em 2012, a convite do colega Michel Temer se filiou ao PMDB. E, por conta dessa aliança, em 2015 assumiu o posto de Secretário de Segurança do Estado de São Paulo, mesmo posto que projetou seu mestre Temer. Saiu criando problemas no governo: não conseguiu implementar sequer a meninas dos olhos da Segurança, o sistema Detecta, de reconhecimento de atitudes suspeitas, que a Prodesp deixou pronto e acabado para ser implementado (https://goo.gl/qQ2WeS).
Peça 3 – a guerra contra o crime
A guerra contra o crime organizado se dá em quatro frentes centrais:
1. Na economia, na medida em que o desemprego e a falta de oportunidades são fatores de aliciamento dos jovens pelo crime.
2. Na periferia e na favela, onde o crime organizado fornece segurança à população.
3. Nos presídios, nos quais a ordem e a integridade são garantidas pelas organizações criminosas. Os massacres ocorrem quando há conflito entre elas.
4. No mundo empresarial e político, para identificação dos elos do crime com os sistemas formais de poder.
Não se trata de tarefa trivial.
Em países menos atrasados, é desafio para ações interministeriais, envolvendo educação, saúde, juventude, esportes, obras públicas etc. Exige também integração com Secretarias estaduais e metropolitanas, com a cooperação internacional, com a diplomacia. Exige capacidade de trabalhar com dados, estatísticas, geo-referenciamento.
De maneira solta, todos esses mecanismos existem. Mas sua coordenação exige uma capacidade superior de gestão.
Como é o gestor Alexandre de Morais?
Em 2005, como presidente da Febem, o constitucionalista Morais ordenou o maior processo de demissão em massa da história da instituição. Dois anos depois, o STF ordenou a readmissão de todos os demitidos. O Estado teve que arcar com uma conta de R$ 32 milhões, suficiente para construir 11 pequenas unidades, dentro do projeto de descentralização da Febem (https://goo.gl/JMzBv9).
Como super-secretário de Kassab, deixou a prefeitura com a fama de anunciar planos que nunca eram implementados e que, muitas vezes, nem planos eram: apenas ideias esparsas coladas com um tanto de retórica.
Depois, como Secretário de Segurança de Geraldo Alckmin não conseguiu sequer implementar a principal peça de campanha: um sistema de reconhecimento que já tinha sido desenvolvido pela Prodesp. Questionado pela imprensa sobre a demora, limitou-se a dizer, ao estilo Rolando-Lero que não concordava que as webcams ficassem na marginal, pois seriam identificadas facilmente pelos motociclistas. A Prodesp nunca foi informada dessa ressalva.
Peça 4 – o Plano Nacional de Segurança Pública
Das limitações gerenciais e profissionais de Alexandre de Morais nasceu o Plano Nacional de Segurança Pública.
As três metas traçadas já indicam sua limitação. O Plano define como prioridades o combate ao homicídio, à violência contra a mulher e ao trabalho diplomático com nações fronteiriças, visando conter o tráfico e uma vaga racionalização e modernização do sistema carcerário.
Homicídios soltos e violência contra a mulher nunca foram de responsabilidade do governo federal, e nem poderiam ser. Tratam-se de crimes locais, com motivação local e que exigem a atuação do poder local. Como irá controlar, de Brasília, as fantasiosas patrulhas Maria da Penha, com que pretende reduzir a violência contra a mulher? O que essas patrulhas fariam?
A atuação do governo federal é no combate às organizações criminosas, cujos tentáculos atingem vários estados e o exterior.
Mas esse desafio, Morais não quer encarar, pois significaria entrar no terreno cinza que permeia as relações entre a economia formal, a política e o crime.
Tome-se o caso do Comendador Arcanjo, que dominava o jogo no Mato Grosso. Algumas das grandes fortunas de soja foram construídas lavando dinheiro de Arcanjo. Sua influência vai de cassinos na fronteira até linhas de ônibus no ABC. Recentemente conseguiu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a liberação de todos seus bens.
Como era também a influência de Carlinhos Cachoeira, suas ligações com a Delta Engenharia, seus negócios com vários governadores de estado.
É do advogado do PCC que se espera um papel similar ao dos Intocáveis?
Ora, entre advogados e clientes não existe a história da Muralha Chinesa. Há sempre uma relação de total confiança e de abertura de todas as informações do cliente, para que possa ser bem defendido.
Um Ministro da Justiça que manteve relações de confiança de tal ordem com o PCC irá conduzir o trabalho de combate ao PCC e a outras organizações criminosas?
No fim, o Plano Nacional de Segurança não passará disso: Morais produzindo factoides e uma reunião de emergência para daqui a uma semana; Michel Temer indo comer os pães de queijo na casa da presidente do Supremo Carmen Lúcia; e a Ministra soltando uma frase de efeito de seu repertório mineiro.
As atividades do PCC são públicas e notórias: o próprio Alexandre de Morais tem, no seu escritório, a relação das empresas controladas pela quadrilha. Como eram notórias as atividades de Ivo Noal e Marechal, nos tempos em que Temer era Secretário de Segurança. O crime tem nome, endereço, razão social.
Mesmo assim, seguem intocáveis. E, quando presos, transformam os presídios em escritórios.
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