quarta-feira, 2 de maio de 2018

O jornalismo brasileiro se realinha temendo a história



É muito suspeito um incêndio cinematográfico no Primeiro de Maio mais anunciado da história, com a pauta Lula Livre e Free Lula estalando o sentido no Brasil e no mundo. A tragédia imediatamente vira produto e se alastra pelas mídias todas. É o salvo conduto noticioso mais seguro para golpistas que querem esmagar a realidade factual da prisão política de Lula. Incêndio na madrugada do Primeiro de Maio?

Como o avião de Eduardo Campos, o avião de Teori Zavascki, a execução de Marielle Franco, a tragédia do Largo do Paissandu é mais um capítulo das tragédias humanas que servem a interesses muito claros: estancar um processo noticioso que avança em todas as mídias de maneira irresistível.

Percebam comigo: a imprensa tradicional está em um momento de realinhamento. Isso é fato. O discurso do impeachment e do anti-petismo não “agrega” mais. Prova disto é a Folha elogiando o SUS e publicando fotos do Lula no meio do povo (o que não fazia antes da prisão dele).

A imprensa já entendeu que, se quiser sobreviver a este processo do qual foi protagonista, terá que reorganizar sua maneira de conceber a realidade e de fazer jornalismo. Essa inflexão, no entanto, melindra e assusta o segmento golpista que opera no submundo da política. Para esses, não há necessidade de realinhamento nenhum: se algo os está prejudicando, a ordem é agir da boa e velha maneira mafiosa, com factóides, fakenews, boatos e achaques.

Ocorre que o colapso da cena social e política foi tão drástico com a prisão de Lula que essa estratégia não está mais dando certo. A propagação de fakenews atingiu um ponto de basta. Aceite-se ou não, a “vacina” para as fakenews já está correndo no sangue dos usuários de rede e da sociedade brasileira. É natural. Um parasita corrói e se alastra por um organismo e, caso esse organismo não morra de uma vez, os anticorpos começam a agir. Não é preciso fazer muito esforço para chegar a essa conclusão.

Destaque-se que MBL e seguidores de Bolsonaro já foram punidos pelo Facebook por propagarem fakenews. O bloqueio de contas do MBL e de simpatizantes de Bolsonaro foi outro ponto de inflexão importante da cena política nacional que passou ao largo da percepção das mídias, justamente porque a notícia Lula tomava – e toma – conta das pautas.

Mas, essa notícia também sofreu um impacto interno com a prisão de Lula. Lula preso muda toda a dinâmica da produção de notícia no país, embora os céticos entendam que não (para os céticos, tudo continua do mesmo jeito sempre; a mudança conjuntural é uma ameaça aos seus castelos de areia estática e desesperançada).

O que mudou com Lula preso? A popularidade dele aumentou, a intenção de voto nele aumentou, a rejeição ao golpe aumentou e o mundo passou a olhar para o Brasil com mais atenção e indignação. Preso, Lula é uma bandeira muito forte. Todos sabíamos disso, golpistas e progressistas. Os golpistas, no entanto, na cegueira de seu ódio, esforçaram-se para não enxergar esse óbvio prognóstico, dado como certo em todas as mídias digitais e pesquisas de opinião.

A movimentação do discurso da imprensa, portanto, tomou de assalto os próprios atores golpistas. Eles se assustaram com uma Folha de S. Paulo publicando fotos e matérias que resgatam sutilmente o legado de Lula e dos governos do PT.

Essa percepção ainda demanda atenção muito técnica e detida, uma vez que a impressão geral e intuitiva é a de que a imprensa continua a operar como mantenedora do golpe. Mas, advirto que a mudança está em curso.

A parte mais sensível a essa mudança, obviamente, é o próprio consórcio do golpe. Como em toda a história do jornalismo mundial, as editorias compram uma ideia, fazem dela seu ganha-pão publicitário, estimulam tudo o que for preciso em termos de emoções atávicas dos leitores-consumidores, e surfam em uma onda favorável de ruptura institucional que gera uma pletora de notícias diárias, fazendo vender jornal e mantendo tudo e a todos em rédea ideológica curta (agentes financeiros e políticos comem a ração discursiva na mão dos operadores da mídia corporativa).

Mas, como tudo nesse mundo, os processos saturam e encontram seu ocaso. Não há como controlar isso. Nós vivemos agora este exato momento de inflexão. A imprensa e suas editorias perceberam isso e começam a abandonar um barco que não tem mais condições de flutuar. Fazem isso delicadamente para não chamar a atenção, mas esquecem que há especialistas de olho no seu realinhamento prático e técnico. 

Em suma, a imprensa quer fazer novamente e de maneira acelerada – uma vez que o tempo histórico não é mais a ‘lentidão’ do século 20 – sua “desadesão” de um crime de traição da soberania nacional: ela apoiou o golpe de 64 (e todos os outros) e quando viu que não dava mais para “segurar” a onda, mergulhou na campanha das diretas, em 1984. Posou de heroína e realmente ficou, durante muito tempo, consagrada como uma instituição que combateu a ditadura. Hoje, até isso ela perdeu – o que não é pouco.

Esse momento retorna com a prisão de Lula. A imprensa – Folha de S. Paulo à frente - se sentiu “liberada” da dicção vingativa que tomou suas páginas desde 2005, quando a ficção do processo do mensalão pautou suas operações diárias de maneira monotemática e obsessiva. Como não há mais clamor pela prisão – ela já aconteceu, isso é impossível de negar – e esse clamor era o motor principal de ação simbólica de todo o jornalismo, é preciso “trocar” o gatilho discursivo para girar a moenda da produção de notícia.

A Folha de S. Paulo, como de costume, sente antes os grandes deslocamentos de sentido que operam no cenário conjuntural. Foi assim nas diretas: ela foi o primeiro veículo que aderiu abertamente a redemocratização.

Há um dado incontornável nessa disrupção que tende a “corrigir” artificialismos históricos: a classe intelectual digna do nome, mais cedo ou mais tarde, manifesta-se com muita assertividade pela retomada democrática do curso da história. O arbítrio institucional, por mais forte que seja em um dado momento, é incompatível com a arte e com a produção de conhecimento (a academia e a pesquisa). É por isso que quase todos os artistas do país neste momento pedem Lula Livre, até aqueles que se mantiveram recentemente em posição discreta. Repito: a prisão de Lula realinhou as percepções e os enunciados. 

Mas há um detalhe ainda mais sutil e ao mesmo tempo sofisticado: da mesma maneira que arte e a ciência não podem se contrapor à democracia, a própria produção de notícia, a rigor, também não pode. Ela pode se dar ao luxo de se “desalinhar” estrategicamente durante um determinado tempo, mas não para todo o sempre.

É esse sentido de retomada do gesto jornalístico que começa a querer reocupar as redações brasileiras, saturadas e esgarçadas depois de tanta editoria encomendada e deliberadamente paga. Traduzindo: quer-se voltar a fazer jornalismo, mesmo que esse gesto seja arriscado (para eles) e exija alguma humildade conceitual.

A imprensa corporativa brasileira se sentiu tremendamente diminuída com as pautas recentes da imprensa internacional a respeito da cobertura na prisão de Lula. Além de não seguir a imprensa brasileira em nenhuma situação jornalística, a imprensa internacional ainda a taxou de “golpista” e “parte do problema” em vários momentos. Isso é humilhante.

Colunistas, empiricamente tão à deriva quanto suas funções em futuro próximo, perguntavam-se: “por quê?”. Por que o The New York Times vai confiar mais nas mídias alternativas brasileiras para fazer o seu editorial do que nas nossas matérias e percepções? Por que o Le Monde, o The Washington Post, o Libération, o Der Spiegel chamam Lula de preso político?

Isso apenas mostra que a concentração da mídia brasileira é um escândalo internacional e tanto melhor seria se esse assunto – da concentração – fosse logo esquecido. Mas como fazer isso com a internet a todo o vapor? Difícil.

É por isso que a imprensa corporativa começa a entender que sua sobrevivência corre sério risco. Não há nada de novo nisso, como dito acima: a história se repete e não é nem como farsa: é como protocolo. Embora pareça, a imprensa é como a ‘alegria libidinal’ dos bêbados: não tem dono. Pelo menos, não no sentido de um “dono” com nome, sobrenome e RG. O dono da imprensa é o mercado. E o mercado é muito instável, sabemos. Ele pode acordar com uma imensa culpa e recomeçar um processo de “crise existencial”. Não há por que subestimar as fragilidades do mercado nem da imprensa.

Outro fator importante que pode ter mexido com a adesão irrestrita do jornalismo institucional ao golpe é a absoluta incompetência dos agentes golpistas. A imprensa percebeu que eles são tecnocratas desconectados com toda e qualquer realidade empírica da economia. Acreditem: a imprensa precisa do mercado tanto quanto nós. A falência da economia prejudica a todos, de A a Z.

Isso talvez explique a função diversionista que uma notícia como o desabamento do prédio no centro de São Paulo pode apresentar. Ela emerge como uma força de contenção que visa estancar o caminho de volta ao jornalismo e às pautas legítimas de cobertura noticiosa que são a razão de ser da profissão de jornalista.

Um jornalista de vocação, por mais que ame o seu salário e faça loas a práticas de submissão e subserviência, um dia vai querer produzir aquilo para o qual foi “treinado”: a informação. Viver “espancado” pelo mundo da ciência, da arte e dos segmentos progressistas, não parece ser lá muito agradável.

A retomada do jornalismo brasileiro não será fácil nem indolor. O Brasil é um país rico e complexo até nisso: nós temos “história jornalística”. Barões da mídia nasceram e morreram, correspondentes fizeram história com grandes relatos, escritores, cronistas, cartunistas, adesistas de momento ou não, têm à disposição uma rica memória narrativa, de muita resistência.

O jornalismo é múltiplo dentro da sua própria bolha empresarial e política. Não fosse isso, não teríamos tido um Henfil, um Ziraldo, um Vladimir Herzog, um Pasquim, um Janio de Freitas que até hoje se esforça para produzir um texto independente e consequente.

Muita gente vai ficar para trás nesse processo de realinhamento do jornalismo pós prisão de Lula. É a hora do “vamos ver”, a hora “da onça beber água”. Esse fenômeno é incontornável – porque ele é espontâneo e não tem um patrocinador em especial; o patrocinador é a própria linguagem e a história. E ele avança a passos largos e a cada dia que Lula fica preso ele se intensifica mais.

A linguagem não é apenas constituída de palavras e sentidos. A linguagem é constituída de tons e acelerações. O tom da imprensa, chamado tecnicamente de ethos, sofreu um solavanco com a prisão de Lula. É a chance de ela, inclusive, reordenar-se para garantir a sua sobrevivência no mundo cada vez mais competitivo da informação. Até isso, Lula foi generoso: ele dá a chance, com sua prisão em gesto de sacrifício, para o jornalismo brasileiro se reinventar e permanecer vivo.

É também por isso que temos que abrir muito bem os nossos olhos. A parte mais truculenta do segmento golpista não irá aceitar esse realinhamento de sua antiga sócia e irá usar de todas as formas e trapaças para continuar no jogo.

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