quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O ESCÂNDALO BANESTADO


TER, 03/11/2015
Por Henrique Beirangê
Da CartaCapital


O juiz Sergio Moro arbitra uma operação que investiga um extenso esquema de corrupção e evasão de divisas intermediadas por doleiros que atuam especialmente no Paraná. Uma força-tarefa é montada e procuradores da República propõem ações penais contra 631 acusados. Surgem provas contra grandes construtoras e grupos empresariais, além de políticos.

Delações premiadas e acordos de cooperação internacional são celebrados em série. Lava Jato? Não! Trata-se do escândalo do Banestado, um esquema de evasão de divisas descoberto no fim dos anos 90 e enterrado de forma acintosa na transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Lula.

Ao contrário de agora, os malfeitos no banco paranaense não resultaram em longas prisões preventivas. Muitos envolvidos beneficiaram-se das prescrições e apenas personagens menores chegaram a cumprir pena.

Essas constatações tornam-se mais assustadoras quando se relembram as cifras envolvidas. As remessas ilegais para o exterior via Banestado aproximaram-se dos 134 bilhões de dólares. Ou mais de meio trilhão de reais em valor presente. Para ser exato, 520 bilhões.

De acordo com os peritos que analisaram as provas, 90% dessas remessas foram ilegais e parte tinha origem em ações criminosas. A cifra astronômica foi mapeada graças ao incansável e inicialmente solitário trabalho do procurador Celso Três, posteriormente aprofundado pelo delegado federal José Castilho. Alguém se lembra deles? Tornaram-se heróis do noticiário?

Empreiteiras, executivos, políticos e doleiros que há muito frequentam o noticiário poderiam ter sido punidos de forma exemplar há quase 20 anos. Não foram. Os indiciamentos rarearam, boa parte beneficiou-se da morosidade da Justiça e a maioria acabou impune.

Quanto à mídia, não se via o mesmo entusiasmo “investigativo” dos tempos atuais. Alberto Youssef, Marcos Valério, Toninho da Barcelona e Nelma Kodama, a doleira do dinheiro na calcinha, entre outros, tiveram seus nomes vinculados ao esquema.

Salvo raras exceções, CartaCapital entre elas, a mídia ignorou o caso. Há um motivo. Os investigadores descobriram a existência de contas CC5 em nome de meios de comunicação. Essa modalidade de conta foi criada em 1969 pelo banco para permitir a estrangeiros não residentes a movimentar dinheiro no País.

Era o caminho natural para multinacionais remeterem lucros e dividendos ou internar recursos para o financiamento de suas operações. Como dispensava autorização prévia do BC, as CC5 viraram um canal privilegiado para a evasão de divisas, sonegação de imposto e lavagem de dinheiro.

Em seu relatório, o procurador Celso Três deixa claro que possuir uma conta CC5, em tese, não configuraria crime, mas que mais de 50% dos detentores não “resistiriam a uma devassa”. Nunca, porém, essa devassa aconteceu. A operação abafa para desmobilizar o trabalho de investigação começou em 2001. Antes, precisamos, porém, retroceder quatro anos a partir daquela data.

A identificação de operações suspeitas por meio das CC5 deu-se por acaso, durante a CPI dos Precatórios, em 1997, que apurava fraudes com títulos públicos em estados e municípios. Entre as instituições usadas para movimentar o dinheiro do esquema apareciam agências do Banestado na paranaense Foz do Iguaçu, localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina e famosa no passado por ser uma região de lavagem de dinheiro.

Das agências, os recursos ilegais seguiam para a filial do Banestado em Nova York. Informado das transações, o Ministério Público Federal recorreu ao Banco Central, à época presidido por Gustavo Loyola. Os procuradores comunicaram em detalhes ao BC as movimentações suspeitas.


Em vez de auxiliar o trabalho do Ministério Público, o Banco Central de Loyola preferiu criar dificuldades para o acesso dos procuradores às contas suspeitas. Segundo Celso Três, as informações eram encaminhadas de forma confusa, propositadamente, diz, com o intuito de atrasar as investigações. Diante dos entraves causados pelo BC, a Justiça Federal tomou uma decisão sem precedentes. Determinou a quebra de todas as contas CC5 do País.

Uma dúvida surgiu de imediato: se havia formas regulares, via Banco Central, de enviar dinheiro ao exterior, qual a razão de os correntistas optarem por essas contas especiais que não exigiam autorização prévia nem estavam sujeitas à fiscalização da autoridade monetária?

Pior: antes do alerta da CPI dos Precatórios, o BC parece nunca ter suspeitado da intensa movimentação financeira por agências de um banco estatal paranaense, secundário na estrutura do sistema financeiro. Até então, nenhum alerta foi dado pelo órgão responsável pela fiscalização dos bancos. Vamos repetir o valor movimentado: 134 bilhões de dólares.

Editada em 1992, uma carta-circular do Banco Central determinava que movimentações acima de 10 mil reais nas contas CC5 deveriam ser identificadas e fiscalizadas. Jamais, nesse período, as autoridades de investigação foram comunicadas pelo BC de qualquer transação incomum.


Com a quebra de sigilo em massa determinada pela Justiça, milhares de inquéritos foram abertos em todo o País, mas nunca houve a condenação definitiva de um político importante ou de representantes de grandes grupos econômicos. Empresas citadas conseguiram negociar com a Receita Federal o pagamento dos impostos devidos e assim encerrar os processos contra elas.

O Ministério Público chegou a estranhar mudanças repentinas em dados enviados pelo governo FHC. Em um primeiro relatório encaminhado para os investigadores, as remessas da TV Globo somavam o equivalente a 1,6 bilhão de reais.

Mas um novo documento, corrigido pelo Banco Central, chamou a atenção dos procuradores: o montante passou a ser de 85 milhões, uma redução de 95%. A RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul e atualmente envolvida no escândalo da Zelotes, também foi beneficiada pela “correção” do BC: a remessa caiu de 181 milhões para 102 milhões de reais.

A quebra do sigilo demonstrou que o Grupo Abril, dono da revista Veja, fez uso frequente das contas CC5. A Editora Abril, a TVA e a Abril Vídeos da Amazônia, entre outras, movimentaram um total de 60 milhões no período. O SBT, de Silvio Santos, enviou 37,8 milhões.

As mesmas construtoras acusadas de participar do esquema na Petrobras investigado pela Lava Jato estrelavam as remessas via Banestado. A Odebrecht movimentou 658 milhões de reais. A Andrade Gutierrez, 108 milhões. A OAS, 51,7 milhões. Pelas contas da Queiroz Galvão passaram 27 milhões. Camargo Corrêa, outros 161 milhões.

O sistema financeiro não escapa. O Banco Araucária, de propriedade da família Bornhausen, cujo patriarca, Jorge, era eminente figura da aliança que sustentava o governo Fernando Henrique Cardoso, teria enviado 2,3 bilhões de maneira irregular ao exterior.


Nunca foi possível saber quais dessas contas eram e quais não eram regulares. Para tanto, teria sido necessário aprofundar as investigações, o que nunca aconteceu. Ao contrário. O BC não foi o único entrave. No fim de 2001, o delegado Castilho foi aos Estados Unidos tentar quebrar as contas dos doleiros brasileiros na filial do Banestado.

O então diretor da Polícia Federal, Agílio Monteiro, determinou, porém, que Castilho voltasse ao Brasil. Apegou-se aos “altos custos das diárias” para interromper o trabalho de investigação. Valor da diária: 200 dólares.

Os agentes da equipe de Castilho perceberam o clima contra a operação e a maioria pediu para ser desligada do caso. A apuração seguiu em banho-maria até o começo de 2003, no início do governo Lula, período em que Castilho voltou a Nova York.

Naquele momento, as novas quebras de sigilo permitiram localizar um novo personagem, Anibal Contreras, guatemalteco nacionalizado norte-americano, titular da famosa conta Beacon Hill. Descobriu-se uma estrutura complexa: a Beacon Hill era uma conta-ônibus, recheada por várias subcontas cujo objetivo é esconder os verdadeiros donos do dinheiro. Sob o guarda-chuva da Beacon Hill emergiu uma subconta de nome sugestivo, a Tucano.

Em anotações feitas por doleiros e algumas siglas foram identificadas transações que sugeriam a participação do senador José Serra e do ex-diretor do Banco do Brasil, tesoureiro do PSDB e um dos artífices das privatizações no governo Fernando Henrique, Ricardo Sérgio de Oliveira. Só novas quebras de sigilo permitiriam, no entanto, comprovar as suspeitas. Adivinhe? Elas nunca aconteceram.

Castilho conseguiu acessar o que se poderia chamar de quarta camada das contas. Antes de descobrir os beneficiários finais do dinheiro, os reais titulares, o delegado acabou definitivamente afastado da investigação pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Anos mais tarde, o inquérito seria arquivado.

A CPI do Banestado teve o mesmo destino melancólico. Até hoje, é a única comissão parlamentar a encerrar seus trabalhos sem um relatório final. O PT e o PSDB disputaram para ver quem enterrava primeiro e melhor os trabalhos. O petista José Mentor, relator da CPI, foi acusado de receber dinheiro de um doleiro para excluí-lo do texto final. Mentor nega.

O tucano Antero Paes de Barros, presidente, tentou proteger os próceres do partido e aliados citados na investigação. Uma conveniente briga entre Mentor e Barros marcou o encerramento da apuração no Congresso em dezembro de 2004. No ano seguinte, um novo escândalo, o “mensalão”, sepultaria de vez o interesse pelas contas ilegais no exterior.

Desde então, mudanças na legislação penal e a ampliação de acordos de cooperação internacional passaram a dificultar as tentativas de abafar esses casos. Foram criadas e aperfeiçoadas nos últimos anos as unidades de recuperação de ativos no Ministério da Justiça e no Ministério Público Federal.

Por conta dos ataques às Torres Gêmeas de Nova York em 11 de setembro de 2001, os paraísos fiscais foram pressionados a repassar informações sobre contas suspeitas. Os bancos suíços, notórios por sua permissividade, criaram mecanismos de autofiscalização para a identificação de dinheiro com origem suspeita, algo impensável há 20 anos. 

No Brasil, a lei do crime organizado de 2013 foi aprimorada e a lei de lavagem de dinheiro, alterada em 2012, ampliou o cerco contra os sonegadores. Diante dessas mudanças, as investigações não finalizadas do Banestado poderiam ser exumadas? Para investigadores que atuaram no caso, a resposta é sim.

As movimentações finais no exterior dessas contas podem ter ficado ativas após a instituição dessas novas leis, o que daria vida a novos inquéritos. Dependeria da vontade do Ministério Público e da Polícia Federal.

As duas instituições têm sido, no entanto, reiteradamente conduzidas a fazer uma seleção bem específica de seus focos de interesse. Sem o apoio da mídia e setores da Justiça e do poder econômico, mexer em certos vespeiros só produz ferroadas em quem se mete a revirá-los.

O MP e a PF tentaram, a partir da apuração do Banestado, avançar nas investigações por outros caminhos. Daquele esforço derivaram operações como a Farol da Colina, Chacal, Castelo de Areia e Satiagraha.

Em todas elas, o destino foi idêntico. Em alguma instância da Justiça, os processos foram anulados. Bastaram, em geral, argumentos frágeis. A Castelo de Areia, que investigou a partir de 2009 o pagamento de propina de empreiteiras a políticos, acabou interrompida no Superior Tribunal de Justiça por supostamente basear-se em “denúncia anônima”, embora o Ministério Público tenha provado que a investigação se valeu de outros elementos.

O episódio mais notório continua a ser, no entanto, a Satiagraha. Até um falso grampo no gabinete do ministro Gilmar Mendes serviu de pretexto para melar a operação contra o banqueiro Daniel Dantas, que, aliás, operava uma das contas-ônibus no escândalo do Banestado.

Pressionado, o juiz Fausto De Sanctis viu-se obrigado a aceitar a promoção para a segunda instância. Hoje cuida de processos previdenciários. O delegado e ex-deputado Protógenes Queiroz foi perseguido e tratado como vilão. Em agosto, acabou exonerado da Polícia Federal.

Não foi muito diferente com Celso Três e José Castilho. O procurador despacha atualmente em Porto Alegre. O delegado foi transferido para Joinville, em Santa Catarina, e nunca mais chefiou uma operação.

Nenhum deles foi elevado ao pedestal como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa e o juiz Sergio Moro, que agora colhe as glórias negadas durante o caso Banestado. Teria o magistrado refletido sobre as diferenças entre uma e outra investigação?


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           Publicado por Diario do Centro do Mundo

Moro, FHC, Richa: personagens de uma história mal contada

Por Renan Antunes de Oliveira

Se alguém suspeita de parcialidade da Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário na caça aos corruptos deve comparar a Lava Jato com o quase esquecido Escândalo Banestado para tirar sua conclusão.

Foi o escândalo da hora na Era FHC, entre 1996 e 2003, também nas mãos do juiz Sérgio Moro, mas sem a pirotecnia do Petrolão.

Um retrato da época mostra que nem todo delegado federal é um caçador de petistas.

Que nem todo procurador do MPF investiga corruptos em nome de Deus.

E que o juiz premiado não teve o mesmo apetite justiceiro diante dos poderosos do tucanato.

O Escândalo do Banestado serviu de modelo para as grandes operações midiáticas Mensalão e Petrolão da Era Lula-Dilma e é o melhor exemplo do pior das três instituições, cinco se incluídos Legislativo e Imprensa.

Nele, apurou-se que 124 bilhões de dólares foram levados e lavados no exterior.

Nele, estavam envolvidos grandes empresas (Globo) e políticos expressivos.

Mas estranhamente a CPI do caso deu em nada.

E o Judiciário, no primeiro grande caso nas mãos de Moro, jogou pesado com laranjas, prendendo apenas chinelões.

O procurador Celso Três e o delegado José Castilho levantaram a tampa do esgoto e se deram mal – suas carreiras acabaram quando denunciaram tucanos e seus aliados.

Castilho e Três viraram críticos das instituições em que trabalham. A experiência pioneira deles foi desprezada pela cúpula.

Hoje seus nomes ainda são respeitados entre a maioria dos colegas. Mas seus exemplos de seriedade, honestidade e competência não empolgaram as novas gerações. Muitos viram que agir como eles é ruim para a carreira.

Ninguém duvida: suas carreiras estagnaram por apontar culpados com longa folha de serviços prestados à elite que domina o país há séculos, o verdadeiro centro do poder.

Esta é a história deles.

              Castilho

Delegado Castilho: “Lava Jato vai pegar Renan, Jucá, Cunha e Temer”

“Tenho convicção que a Lava Jato pegará Renan (Calheiros, presidente do Senado), Jucá (Romero, senador), Cunha (presidente afastado da Câmara) e até o Temer (Michel, presidente da República)”, disse o delegado federal José Castilho Neto, 56, em entrevista ao DCM.
Castilho é referência dentro da PF. Tem fama de competente e incorruptível.

Está na geladeira desde que conduziu o inquérito do Escândalo do Banestado, no governo tucano de FHC – rombo de 124 bilhões de dólares que bota Mensalão e Petrolão no chinelo.

Castilho diz que “a Lava Jato não está só atrás de petistas, como parece. Ela busca atingir a corrupção no núcleo do poder da República, agora é a vez de ir atrás dos outros”.

Acredita nisso “porque é a PF e o MPF que estão comandando a luta contra a corrupção, o juiz Sérgio Moro só se manifesta com base nas ações e pedidos destas duas instituições”.

Castilho está na geladeira da PF desde 2003, quando esteve no auge, na transição de FHC para Lula. O posto dele em Joinville é considerado menor: “É o meu exílio profissional”.

Ele acredita que foi posto lá porque “denunciei na TV o envolvimento de gente da cúpula do governo FHC no caso Banestado”. Castilho afirma que “a linha divisória entre a impunidade da classe dominante e período de vigência da lei foi o caso Banestado”.

Ele é considerado precursor no uso das técnicas de investigação adotadas pelas equipes da PF. Castilho já tinha trabalhado com o juiz Moro no Banestado, onde rastreou contas internacionais de empresários e políticos. Foi o primeiro a prender o doleiro Alberto Youssef, o delator zero do Petrolão.

Castilho revela mágoas por ter sido afastado na transição do governo FHC para Lula “pela panelinha que comanda a PF”, mas acha que a vida é assim, “é a dinâmica do poder”.

Ele atribui sua queda e exílio em Joinville (depois de outros postos menores ainda) porque “fiz a denúncia pública dos nomes de gente poderosa cujas contas no exterior foram reveladas, entre eles Jorge Bornhausen, José Serra, Sérgio Motta e do operador de FHC, Ricardo Oliveira”.

Castilho lembra que estava em Nova York trabalhando no rastreamento quando foi chamado de volta e afastado da operação. Foi quando ele procurou a mídia para fazer as denúncias.

Encontrou um paredão, porque entre as empresas que usaram o recurso ilegal de enviar dólares para o exterior estavam Rede Globo, Editora Abril, RBS e Correio Braziliense.

Seu momento de glória foi fazer a denúncia na Record, num programa nas altas horas, audiência quase zero – digite o nome do delegado e veja no You Tube. Em 2003, o caso Banestado rendeu uma CPI que deu em pizza.

Castilho foi a estrela dela, levando um livrão verde com a lista dos nomes de 3 mil pessoas com contas em dólar no esquema, entre mandantes e laranjas. Ele brandiu o livro no ar no plenário da Câmara, sem sucesso: “Havia gente poderosa envolvida, tinha gente lá de dentro, é claro que iriam abafar e foi o que fizeram”.

Ele diz que no início do governo Lula foi trazido de volta ao lado bom da carreira por iniciativa de José Dirceu. “Mal eu comecei a mexer, fui outra vez afastado, definitivamente”. Castilho sorri quando explica sua versão: “Acharam que eu era petista, mas não sou nada. Sou contra a corrupção. Acho que o pessoal do PT aprendeu como se fazia no Banestado e preferiu não mexer no esquema”.

O Banestado sumiu da mídia quando começou o Mensalão. E o Petrolão substituiu o Mensalão.
Castilho diz acreditar que “o pessoal (da PF) que hoje atua na Lava Jato é movido não por sua preferência política, como muitos acreditam, porque cada um tem a sua, mas sim por uma imensa vaidade. É a mídia, é querer aparecer, estar na vanguarda, tudo pura vaidade”.

Para Castilho o episódio em que Moro jogou no ar a gravação do tchau querida “foi um erro”. Aí, pensou um pouco e elaborou uma frase mais light: “Muito antes de eventuais desvios (do juiz) há um mar de descumprimentos legais”.

Castilho disse que a PF foi modernizada na Era Lula e cresceu muito. “Ganhamos verbas, carros, tudo, mas o foco eram prefeitinhos e pequenos casos regionais”, lamentou.

Ele acredita que “por muito tempo a maior operação da PF foi a ‘cortina de fumaça’, qualquer coisa que não chegasse ao núcleo do poder”.

Castilho acha que “no governo FHC não havia interesse em ir fundo, porque era um governo corrupto. Depois, a PF modernizada foi atrás dos prefeitinhos. Só agora é que o foco está em derrubar o núcleo no poder, seja de que partido for”.

Ele admite que “mesmo assim o que se vê é uma mira certeira em partidos de esquerda e outros que deram sustentação a um governo de centro-esquerda”.

Castilho se sente orgulhoso de ter contribuído no combate contra a corrupção. Ensina às novas gerações de delegados que “dinheiro não some, alguém fica com ele” e que o caminho “é sempre seguir a trilha dele”.

O delegado disse que fez sua parte “deixando uma longa lista de criminosos de colarinho branco que continua em ação, mas que já foram identificados. Está tudo num arquivo digital na Divisão de Ações contra Ilícitos Financeiros, que deixei lá”. Segundo ele “ali está o mapa da corrupção, estranhamente abandonado”.

Com sua experiência, sabe que seria mais útil se pudesse voltar ao núcleo de elite da PF.
Aceita, no entanto, o destino: “Minha rotina é perigosa, mas é a mesma de muitos policiais. Acordo cedo, boto uma pistola na cintura e saio com minha equipe para caçar traficantes. Alguém tem que fazer este trabalho.”


   Três

Procurador Celso Três: “Conspiração da Justiça derrubou Dilma”

O procurador federal Celso Antônio Três (55), membro do grupo anticorrupção do MPF, é um crítico da Lava Jato: “Janot (Rodrigo, procurador geral) e Sérgio Moro fizeram uma conspiração da Justiça contra a política para dar o golpe que derrubou a presidente Dilma”.

Ele fala com a autoridade de ter sido o primeiro procurador federal a seguir a trilha de volumosa quantia de dinheiro desviado do Brasil para o exterior – o Escândalo Banestado em 2003. Um trabalho de investigação monumental, sem os recursos que o MPF tem hoje.

Em entrevista ao DCM o procurador afirmou que “é inconcebível essa intromissão da Justiça na política. É evidente que o que vai ficar na história não é essa coisa ridícula da pedalada fiscal, mas sim a existência de uma conspiração. A divulgação da gravação da conversa Dilma-Lula foi uma ilegalidade, e isto é inaceitável vindo de um juiz”.

Celso critica, também, a prisão do senador Delcídio Amaral. “A Constituição é clara quando diz que um senador só pode ser preso em flagrante delito e por crime inafiançável.”

Para o procurador “se houve alguma transgressão foi da própria Justiça, que cometeu ‘um crime de hermenêutica’ ” (de interpretação da lei) – esta é a palavra usada de forma irônica dos juristas para criticar o sistema: “Eles foram torcendo a lei até achar um jeito de enquadrá-lo e forçar a delação”.

Assinalou que “outra coisa grave é querer condenar políticos por receber doações legais. Se está na lei, não é vantagem indevida. Esta história de que um parlamentar pode ser condenado se o dinheiro veio de um desvio (no caso, da Petrobras) é bobagem, porque precisa se provar que ele tenha participado da origem do desvio”.

Celso Três fala com a experiência de ter sido entre 1996 e 2003 o nome mais importante do MPF, por sua atuação firme e corajosa no Caso Banestado.

Com base na atuação dele o MPF passou a criar grupos especializados em crimes financeiros . O Judiciário também criou varas idênticas, sendo a primeira delas a do juiz Sérgio Moro. Banestado, Mensalão e Petrolão se ligam porque muitos dos procuradores e o juiz Moro trabalharam em todos eles.

Três vê na Lava Jato “uma excrescência jurídica e com claros atropelos da Constituição”. Ele trabalhou com alguns dos integrantes do MPF que hoje estão na força-tarefa da Lava Jato e acredita que “existe uma natural exacerbação que parece de boa fé, mas inaceitável. É ridículo um procurador invocar Deus” (referindo-se, sem citar, ao chefe da equipe de procuradores, Deltan Dallagnol).

O procurador disse ainda que “mais atropelos vêm aí, como aquele pacote de 10 medidas anticorrupção enviado ao Congresso. Não é tarefa do MPF, e além do mais tem erros grosseiros no item das nulidades, só vai piorar as coisas se for aprovado”. Três disse também que “a Justiça tem efeito indevido na política, mas o Brasil é movido por tsunamis”.

Três comandou o inquérito das contas CC5 do Caso Banestado. O modelo de investigação quebrou o sigilo de milhares de pessoas e empresas, flagrando as irregularidades.

Ele ainda hoje mantém cópia dos volumes do inquérito em seu gabinete. Gosta de exibi-los aos interessados. “Nunca se pôde fazer justiça porque o governo FHC tinha altos membros envolvidos. Parte do dinheiro serviu para compra de votos para a reeleição dele, outro escândalo da época”, lembra, manuseando os documentos.

“Nós do MPF tivemos que desmembrar cada ação por domicílio fiscal dos suspeitos, o que se tornou um pesadelo. O Banco Central e a PF nunca colaboraram efetivamente, até atrapalhavam as investigações, visivelmente por ordem do Executivo. Por causa disso os principais mandantes nunca foram presos”.

Celso diz que “os efeitos do caso Banestado até hoje são sentidos. O atual governador do Paraná, Beto Richa, tinha despachado para o exterior 1 milhão de dólares, sem comprovar a origem do dinheiro”.

Ele exibe documentos e mostra que o Banco Araucária (do ex-senador e governador biônico catarinense Jorge Bornhausen) enviou para o exterior 2,4 bilhões de dólares.

“Nossa experiência de combate à corrupção serviu como modelo para a Lava Jato. Não pudemos avançar porque a CPI deu em pizza. E um dos entraves foi quando flagramos a Rede Globo e a RBS mandando dinheiro para fora”.

A carreira de Três declinou depois que ele fez as denúncias da mídia para a mídia – nunca foi indicado para nenhum prêmio. Pior: só recebeu ameaças de morte. Foi movido para outras comarcas.

Lotado em Santa Catarina no ano 2000, iniciou um processo que o botou na geladeira de vez: tentou quebrar o monopólio da RBS (repetidora da Globo) no estado. Ele sustenta que a empresa “monopolizou a imprensa em SC, controla rádio, jornais e TVs, ferindo a Constituição”.

O caso ainda está pendente de decisão do TRF4, em Porto Alegre. Celso Três é procurador em Novo Hamburgo, no interior do Rio Grande do Sul.

ENTENDA O ESCÂNDALO DO BANESTADO

O que é: maior caso de evasão de divisas do Brasil.

Quanto: 128 bilhões de dólares. Quase 420 bilhões de reais ao câmbio atual.

Quando: 1996 a 2003.

Onde: epicentro em Foz do Iguaçu (PR), com raio de ação em todo Brasil, Nova Iorque e Bahamas.

Origem do nome: o caso foi descoberto na agência do Banestado, em Foz do Iguaçu.

Investigados: 3 mil pessoas, empreiteiras, mídia, bancos e casas de câmbio.

Condenados: 26 laranjas, nenhum político ou empresário poderoso.

Legado: o modelo de investigação internacional reinventou o papel do Ministério Público Federal, criou as bases da moderna Polícia Federal para investigar crimes financeiros, obrigou o Judiciário a criar varas especializadas como aquela que Sérgio Moro comanda, forçou o Executivo a reequipar a PF e o MPF, e serviu de modelo para a Lava Jato.

Personagens: Procurador do MPF Celso Três e delegado da PF José Castilho Neto.

COMO FOI

Mídia envia dinheiro ao exterior e boicota escândalo

Políticos e empresários usaram doleiros e laranjas para remeter dinheiro para paraísos fiscais entre 1996 e 2003, burlando o sistema legal de remessa pelas contas internacionais conhecidas como CC5 (por isso também conhecido como Escândalo das CC5). O MPF em Foz do Iguaçu descobriu a fraude porque a agência local do Banestado enviou para a agência de Nova York cerca de 30 bilhões de dólares – o total com outros bancos chegou aos 124 bilhões.

A movimentação era demais naquele final dos anos 90 e levou o até então desconhecido procurador Celso Três a começar a investigação. Como o MPF não tinha técnicos e supercomputadores, quem deu início ao rastreamento de contas pela internet foi um motorista do órgão. Apaixonado por computadores, ele usou um PC apreendido de contrabandistas para descobrir a fraude.

O procurador formou dupla com o delegado federal José Castilho Neto para levar a investigação aos Estados Unidos, seguindo a trilha do dinheiro enviado para o exterior. A investigação identificou dezenas de doleiros, entre eles o mesmo Alberto Youssef delator da Operação Lava Jato, e cerca de 3 mil laranjas (pessoas comuns, usadas por políticos e empresários para enviar dinheiro em seus nomes).

Foram flagrados com remessas ilegais os políticos Jorge Bornhausen, José Serra, Sérgio Motta (já falecido), Ricardo Oliveira (operador nas campanhas de FHC e José Serra) e até o jovem Carlos Alberto Richa (Beto Richa), hoje governador do Paraná, que remeteu 1 milhão de dólares. Quase todos eram da cúpula do governo FHC. O doleiro Youssef foi preso e tornou-se delator pela primeira vez. O trabalho do procurador e do delegado deu base para a abertura de uma CPI, em 2003.

A mídia promoveu boicote depois que foram apresentados documentos de remessa ilegal de dinheiro pela Rede Globo, Editora Abril, RBS e Correio Braziliense. No front político, a investigação do Banestado morreu na CPI. No front jurídico, o MPF e a PF foram esvaziados, perdendo poderes. Ainda em 2003, quase no final, um novo juiz assumiu o caso: Sérgio Moro. Mas as investigações não avançaram.

O procurador e o delegado foram afastados. A investigação foi desmembrada, numa decisão que depois se mostrou equivocada ou, quem sabe, muito bem calculada para chegar aonde chegou: a nada. Cada laranja deveria enfrentar processo em seu domicílio fiscal, em dezenas de comarcas pelo Brasil. Houve 91 prisões de ”peixes miúdos”, do quais só 26 foram efetivamente fisgados. Muitas das ações ainda estão dormindo nos tribunais. Parece que a Justiça se desinteressou depois que o Mensalão (2004) pintou na mídia. É um pesadelo logístico saber quantas ações do caso Banestado já caducaram.


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O Caso Banestado, a Petrobras e o feitiço do tempo

A Lava Jato tem ligação com o Caso Banestado mais do que se possa imaginar. Caso se tivesse ido até as últimas consequências, a situação poderia ser outra.

Por Iriny Lopes 
19/11/2014 00:00

                                                         Créditos da foto: Arquivo

“Foi o maior roubo de dinheiro público que eu já vi”. A declaração do deputado federal oposicionista Fernando Francischini, do PSDB, não é sobre a Petrobras, ou o que a mídia convencionou chamar de Mensalão, mas sobre o Escândalo do Banestado (Banco do Estado do Paraná). O Banestado, por meio de contas CC5, facilitou a evasão de divisas do Brasil para paraísos fiscais, entre 1996 e 2002, na ordem de R$ 150 bilhões. O caso se transformou em na CPMI do Banestado, em 2003, da qual fui integrante em meu primeiro mandato.

Foi uma longa investigação que resultou no relatório final com pedidos de indiciamento de 91 pessoas pelo envio irregular de dinheiro a paraísos fiscais, dentre eles o ex-presidente do Banco Central do governo FHC, Gustavo Franco, o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, Ricardo Sérgio de Oliveira, que foi arrecadador de fundos para campanhas de FHC e José Serra, funcionários do Banestado, doleiros e empresários.

Na época da CPMI, o presidente da comissão, o então senador tucano Antero Paes de Barros, encerrou os trabalhos da CPMI antes que o relatório fosse apresentado. O motivo principal era poupar seus pares, sobretudo Gustavo Franco e Ricardo Sérgio de Oliveira. A ação do PSDB para soterrar o relatório tinha como objetivo impedir que a sociedade tomasse conhecimento de um amplo esquema de desvios de recursos públicos, sobretudo vindos das privatizações do período FHC, para contas em paraísos fiscais. A história que não saiu na mídia está contada no livro “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Jr., lançado em 2011.

O desfecho das investigações levadas adiante pela Polícia Federal e mesmo de parte do Ministério Público Federal morreu na praia. Algumas pessoas, é verdade, foram condenadas, mas só laranjas, gente muito pequena perto do enorme esquema de corrupção.

O enredo do Banestado parece semelhante ao caso Petrobras, mas tem uma diferença: neste momento há uma determinação da presidenta Dilma em não deixar “pedra sobre pedra” sobre o caso da petrolífera, algo que não aconteceu no governo FHC - o Procurador da República na gestão tucana, Geraldo Brindeiro, mesmo sabendo dos malfeitos desde 1998, só decidiu pela abertura de processo quando estava de saída, no apagar das luzes da gestão tucana e pressionado pela abertura de uma CPMI.

A importância de o governo federal demonstrar empenho para que tudo fique esclarecido é determinante para se erradicar um mecanismo perverso de desvios de dinheiro público, de relações entre a iniciativa privada e o universo político e que determina, inclusive o perfil dos eleitos, principalmente no Congresso Nacional.

A Operação Lava Jato tem ligação com o Caso Banestado mais do que se possa imaginar. Se no caso Banestado se tivesse ido até as últimas consequências, provavelmente estaríamos hoje em outro patamar. As condenações necessárias a políticos, grandes empresários e doleiros, teria evitado a dilapidação de recursos públicos em todas as instâncias. A impunidade amplia os limites de corruptos e corruptores. Basta lembrar do esquema de licitação fraudulenta dos metrôs e trens de São Paulo, que atravessou mais de uma década de governos do PSDB, e a ausência de investigação e punição para entender do que estamos falando.

Os personagens do enredo da Lava Jato remetem, não por acaso, a muitos do Banestado, inclusive Alberto Youssef, que conseguiu não responder pelos crimes de corrupção ativa e de participação em gestão fraudulenta de instituição financeira (Banestado), por acordo, com MPF de delação premiada, em 2004.

Youssef entregou o que quis e continuou sua vida criminal sem ser incomodado até este ano, quando o juiz federal Sérgio Fernando Moro, responsável pelas prisões da Operação Lava Jato – este também outro personagem coincidente com Banestado, resolveu que o doleiro cumpriria quatro anos e quatro meses de cadeia, por uma sentença transitada em julgado.

“Após a quebra do acordo de delação premiada, este Juízo decretou, a pedido do MPF, a prisão preventiva de Alberto Youssef em decisão de 23/05/2014 no processo 2009.7000019131-5 (decisão de 23/05/2014 naqueles autos, cópia no evento 1, auto2)”, diz o despacho de Sergio Moro, datado de 17 de setembro deste ano. (ver mais em http://jornalggn.com.br/sites/default/files/documentos/acao_penal_no_5035707_sentenca_youssef.pdf).

Além de Youssef, do juiz Sérgio Moro, as operações de investigação do Banestado e da Lava Jato tem como lugar comum o Paraná. Apesar do Banestado ter sido privatizado, Youssef e outros encontraram caminhos que drenaram recursos públicos para paraísos fiscais a partir de lá.

Se no caso Banestado foram remetidos R$ 150 bilhões de recursos públicos adquiridos nas privatizações da era FHC para contas fantasmas em paraísos fiscais, na Petrobrás a estimativa da Polícia Federal até o momento é que tenham sido desviados R$ 10 bilhões.

Importante ressaltar que pouco importa os valores. A verdade é que estamos pagando uma conta do passado, em que parte das instituições fez corpo mole e deixou crimes dessa natureza prescreverem. Essa omissão (deliberada ou não) nos trouxe até aqui. Não por acaso, Alberto Youssef está de novo em cena. Sua punição no caso Banestado foi extinta em 2004 e quando revogada, neste ano, foi apenas para que MPF e Judiciário não passassem recibo de seus erros anteriores. Deram um benefício a alguém que mentiu e continuou sua trajetória criminosa.

Por isso tudo é admirável a disposição da presidenta Dilma, em encarar um esquema que mistura grandes empresários multinacionais, políticos e criminosos de porte. Afinal, que ninguém se iluda: numa dessas pontas tem o narcotráfico, o tráfico internacional de armas e toda ordem de ilícitos que se alimenta e retroalimenta a lavagem de dinheiro.

Dito isso, acho importante destacar o que é fundamental ser feito a partir da Operação Lava Jato:

1- Apoiar todas as ações que visam investigar, julgar e condenar corruptos e corruptores;

2- Constatar que as investigações comprovam que o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, supostamente baseado em doações de empresas privadas, na verdade está apoiada, ao menos parcialmente, em desvio de recursos públicos;

3- Que portanto, para além de atos criminosos, estamos diante de um mecanismo sistêmico que corrompe cotidianamente as liberdades democráticas, pois no lugar do voto cidadão o financiamento privado reintroduz de fato o voto censitário;

4- Que este é mais um motivo para apoiarmos a reforma política, especialmente a proibição de todo e qualquer financiamento empresarial;

5- Por fim, conclamar os funcionários das empresas corruptoras a virem a público contar o que sabem, para que se possa colaborar com a Justiça. E vigiar para que as instituições envolvidas não se deixem manipular, no processo de investigação e julgamento, pelos mesmos interesses políticos e empresariais que se faz necessário punir.

Todo o Brasil sabe, afinal, que a corrupção institucionalizada esteve presente na história do Brasil, nos períodos democráticos e especialmente nos períodos ditatoriais. O desafio proposto pela presidenta Dilma, de não deixar “pedra sobre pedra” é imenso e depende das instituições cumprirem o seu dever.

O que Dilma quer, o que eu quero e toda a sociedade brasileira deseja é não ver a repetição dessa história e seus velhos personagens livres para reprisar o mesmo roteiro policial. Concordo com a frase do deputado oposicionista Francischini, que o Banestado foi o maior escândalo de corrupção de que se teve notícia no país.

Portanto, tenhamos memória e que ela não seja seletiva e nem refém do feitiço do tempo.

(*) Deputada federal (PT/ES)

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Banestado e Youssef: como o juiz Sergio Moro agiu para não perder a Lava Jato. Por Joaquim de Carvalho

Publicado por Joaquim de Carvalho


Moro e os primeiros passos na construção de um ídolo

Esta reportagem fez parte do nosso projeto de crowdfunding sobre a Lava Jato: das origens à perseguição a Lula

A primeira reportagem desta série contou como o juiz Sérgio Moro emparedou o ministro Teori Zavascki, em maio de 2014, e impediu que uma antiga investigação sobre lavagem de dinheiro fosse para o Supremo Tribunal Federal (STF).

De lá o processo seguiria para os fóruns adequados — os chamados juízos naturais –, definidos por critérios previstos em lei. O primeiro deles é o local onde ocorreram os crimes. No caso de acusados por foro por prerrogativa de função – deputado, por exemplo –, a investigação ficaria com o próprio Supremo Tribunal Federal.

Enfim, a Lava Jato seguiria seu curso natural, atendendo ao princípio da impessoalidade da Justiça – não é à toa que seu símbolo é uma mulher com os olhos vendados. Vamos tratar agora de outros fatos, forjados para manter em Curitiba a operação que, enquanto se manteve exclusivamente nas mãos de Sérgio Moro, atingiu apenas o PT e seus aliados.

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O doleiro Alberto Youssef tinha negócios e residência em Londrina, no Paraná, quando foi preso na operação Banestado – a lavanderia funcionou principalmente nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Fez acordo de colaboração – quando não havia ainda a lei da delação premiada – e, em 2004, deixou a cadeia, com o compromisso de que não mais praticaria crime.

Só que a Polícia Federal continuou a monitorá-lo. Não só ele, mas também de pessoas ligadas ao seu principal cliente, o deputado José Janene, do PP. Por alguma razão ainda não clara no inquérito que deu origem à Lava-Jato, que é de 2006, interceptou ligação telefônica de um assessor de Janene, Roberto Brasiliano, e de seu advogado, Adolfo Gois.

Foi aí que o delegado Igor Romário de Paula, da Polícia Federal, descobriu que Beto, uma das formas como Janene e seus amigos chamavam Youssef – a outra era Primo –, continuava no crime. O advogado conta para Brasiliano:

— Ontem mesmo tava o Beto lá, e começaram a falar o nome das empresas que depositaram na conta da outra lá, sabe? – diz o advogado, segundo a transcrição que foi para o juiz Sérgio Moro, como fundamentação para abertura de inquérito.

Na conversa, já se sabe que o cliente do Beto é Janene, então deputado federal, e isso obrigaria o juiz a remeter o processo para o Supremo Tribunal Federal.

Também se sabe que a investigação está relacionada a um desdobramento do inquérito do mensalão, em Brasília, para investigar a lavagem de dinheiro de Marcos Valério.

Mas Sérgio Moro, num despacho de próprio punho, com sua letra miúda, manda abrir inquérito e se considera seu juiz natural, por dependência ao processo em que Youssef tinha obtido benefícios como colaborador.

Sérgio Moro considerou que Youssef, por ter feito o acordo de colaboração com ele em outro caso, o do Banestado, dois anos antes, estivesse vinculado a ele. Por essa lógica, seria um vínculo eterno e faria de Moro dono de Youssef.

Também chama a atenção o fato de Moro fazer o seu despacho à mão, o que indica que ele tinha pressa em abrir o inquérito.

E parece que tinha mesmo.

No dia seguinte à sua decisão, que abriu o inquérito que dará origem, oito anos depois, à Lava Jato, o Tribunal Regional Federal determinou que metade dos inquéritos até então tramitando sob a jurisdição de Moro deveria ser encaminhada a outra vara.

No seu despacho manuscrito, Moro vinculou este inquérito ao processo da colaboração de Youssef e, assim, criou uma dependência do inquérito à sua jurisdição.

Outros inquéritos poderiam seguir para um colega de Curitiba. Mas este não.

Youssef era dele.
Manuscrito indica que Moro tinha pressa em decidir: estava às vésperas de perder o que viria a ser a Lava Jato

“Uma das mais salientes garantias do cidadão no atual Estado Democrático de Direito apoia-se no princípio do juiz natural”, diz o criminalista Luiz Flávio Gomes, em um estudo sobre a impessoalidade da Justiça.

Mais uma vez, esta regra estava sendo desrespeitada na Vara de Moro.

Mas viria mais.

Em 2014, como desdobramento do inquérito que Moro segurou para si, o Ministério Público Federal presta informação falsa em uma representação a Moro.

Dá como endereço de Youssef uma residência em Londrina, mas, desde 2009, a Polícia Federal, o próprio Ministério Público e juiz Sérgio Moro, sabiam que o doleiro já morava e tinha escritório em São Paulo.

Por que o endereço em Londrina?

A resposta óbvia é que o Ministério Público tentava forçar o vínculo com Sérgio Moro.

No caso da Lava Jato, os fatos mostram que a maior parte das ações descritas como crime ocorreu muito longe do Estado do Paraná, mas, com a informação falsa de que Youssef residia em Londrina, se criava a ilusão de que o local para investigar e julgar os atos da Lava Jato era Curitiba.

Por que tanto interesse em segurar uma investigação?

É uma resposta que pode esclarecer muita coisa.

Mas o que está claro é que a Lava Jato só atingiu alvos fora do PT – Michel Temer e PSDB principalmente –, depois que Moro perdeu o controle sobre ela.

O que teria acontecido se, lá atrás, a Justiça tivesse agido com impessoalidade?


Dallagnol e o colega Lima
MPF presta informação falsa: Youssef já não morava em Londrina

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A história esquecida do Banestado onde o juiz Moro liberou todos os culpado tucanos


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