por Luiz Régis Prado*,especial para o Viomundo
O “Pacote Anticrime” proposto pelo recém-empossado ministro da Justiça, ex-juiz Sergio Moro, viola a sistemática do Código de Processo Penal e a Lei de Execuções Penais ao criar a chamada execução “provisória” da pena a partir da condenação em 2ª Instância.
Enquanto juiz, ele defendia ardentemente a via judicial como apta para a imposição da citada modalidade de execução da pena.
Diante dessa desastrada opção – por meio da jurisprudência – com flagrante violação da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito, repensou e agora, como ministro, propõe texto legal ordinário dando poderes ao tribunal de estabelecer a execução da pena após condenação em 2º grau com a inserção própria no Código de Processo Penal o art. 617-A.
Não se pode negar que a sugestão pela via legislativa representa um avanço em relação à primeira opção.
Mas, pergunta-se, seria o bastante a lei ordinária para conseguir tal desiderato?
É preciso manter a sintonia com o texto constitucional de 1988 em seu artigo 5º, inciso LVII, que prescreve como cláusula pétrea: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Eventual alteração dessa matéria depende de Emenda Constitucional, segundo importante corrente do pensamento jurídico brasileiro.
Pode alguém ser considerado culpado em primeiro grau, após a apelação. Mas há norma processual penal constitucional da qual depende esse reconhecimento pelo poder estatal: a do trânsito em julgado, ainda que parcial (defesa não recorre de uma condenação e a acusação faz pleito de aumento de pena).
A mudança proposta recentemente com a inovação legislativa não tem o condão por si só de alterar a verdadeira regra processual constitucional inserida legitimamente.
Aliás, por se tratar de uma regra constitucional ela se aplica com base no sistema conhecido como “tudo ou nada” não havendo espaço para mesquinharia interpretativa constitucional, e, então, nem o próprio Supremo Tribunal Federal poderia fazê-lo como fez (HC 126.292).
Em geral, cite-se a norma fundamental que serve de base para a maioria das legislações, constitucionais ou não, do Ocidente. Refere-se tão simplesmente ao clássico texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, art.9:
“Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
Nessa mesma linha, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, menciona a culpabilidade legalmente estabelecida: art.11,1ª parte: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume–se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas (…)”.
É interessante frisar que os artigos acima citados não fazem nenhuma menção ao “trânsito em julgado” da condenação.
A grande maioria da legislação estrangeira, nas suas pegadas, também não o faz. Não há fórmula internacionalmente aceita. Podemos concluir com isso que a responsabilidade penal depende de cada sistema processual.
No sistema brasileiro, a Constituição Federal de 1988 condiciona tal reconhecimento da presunção de inocência ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Embora possa ser em princípio defensável a prisão em segunda instância com base na legislação comparada, devemos considerar que sistema processual penal brasileiro tem, por criação constitucional, “quatro” instâncias possíveis enquanto outros têm em geral tão somente duas ou três.
Faz-se mister nesse âmbito não descurar da relevante garantia do duplo grau de jurisdição, formal e materialmente.
Isso independente de previsão de eventual recurso especial. Daí porque tem aparência de legítimo o argumento (nem sempre verdadeiro) de que em vários países a pena é executada após a condenação em segunda instância . Nestes países, estabelece-se o trânsito em julgado com a decisão em segunda instância: às vezes, por não haver interesse recursal, não existe previsão legal ou órgãos para os quais recorrer, entre outros casos.
Ademais, os sistemas estrangeiros não podem ser comparados ao sistema brasileiro dada a óbvia impossibilidade de tal exercício. A importação acrítica de institutos jurídicos gera, na verdade, “invencionices” ou “engenhocas” quase sempre perigosas, que, aliás, costumam tornar o sistema jurídico incoerente e inseguro. Isso não significa pura e simples aperfeiçoamento.
Nesse cenário, há de ser descartada a mudança via “lei ordinária”, e se optar coerentemente pela alteração via “Emenda Constitucional”.
Isso demanda superar ad argumentandum e racionalmente o Poder Constituinte Originário, e a perenidade que dispõe o art. 60, §4º, inc. IV, da Constituição Federal que trata da garantia dos direitos.
A criação de um conceito de “trânsito em julgado” novidadeiro também esbarra em óbices teóricos e práticos densos. Ao se criá-lo na lei se pretende que a Lei Fundamental se curve à lei ordinária. O que pode gerar um retrocesso de direitos fundamentais.
A pura modificação de dispositivo processual penal como destacado sem alterar a Constituição Federal, como a proposta feita, tão somente promove inversão: ao modo que o Supremo Tribunal (seguido pelo todo Judiciário) fez quando interpretou a Constituição à luz da jurisprudência, sempre contingente e casuística.
As mudanças suscitadas pelo Ministério da Justiça acabam por pretender interpretar a Constituição à luz da lei infraconstitucional. É o bastante!
*Luís Régis Prado é professor titular de Direito Penal da Universidade Estadual do Paraná (UEM) e do programa de pós-graduação da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP).
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