terça-feira, 31 de março de 2020

Chomsky: Não podemos deixar a Covid-19 nos levar ao autoritarismo

À medida que a pandemia da Covid-19 revira a ordem política e econômica global, dois futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro, enfrentamos a ameaça de uma recaída no autoritarismo. No outro extremo, temos a possibilidade de aprender com esse desastre (outra colossal falha de mercado aprimorada por um ataque neoliberal e agora pela bola de demolição de Trump): a crise atual oferece um poderoso argumento em favor da assistência universal à saúde e de reavaliarmos os problemas mais profundos de nossas sociedades.

Danilo Verpa/Folhapress.


* Publicado originalmente em ‘Truth Out‘. A tradução é de César Locatelli, para a Carta Maior.

Enquanto a pandemia da Covid-19 revira a ordem política e econômica global, dois futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro, as sociedades que enfrentam o tributo imposto pelo vírus podem entrar em colapso no autoritarismo. Mas no outro extremo do espectro, temos a possibilidade de aprender as lições com esse desastre – outra colossal falha de mercado aprimorada por um ataque neoliberal e agora pela bola de demolição de Trump.

A crise atual oferece um argumento poderoso em favor da assistência universal à saúde e da reavaliação dos problemas mais profundos de nossas sociedades. O resultado que prevalecerá depende da força da opinião pública despertada, conforme descrito nos exemplos a seguir, que são adaptados, para este artigo para a Truthout, do meu livro Internationalism or Extinction [Internacionalismo ou extinção].

Se me permitem, gostaria de começar com uma breve reminiscência de um período que é estranhamente semelhante a hoje em muitos aspectos desagradáveis. Estou pensando em 80 anos atrás. Por acaso, foi o momento do primeiro artigo que me lembro de ter escrito sobre questões políticas. Fácil de datar: foi logo após a queda de Barcelona, em fevereiro de 1939.

O artigo era sobre o que parecia ser a disseminação inexorável do fascismo pelo mundo. Em 1938, a Áustria havia sido anexada pela Alemanha nazista. Alguns meses depois, a Tchecoslováquia foi traída, colocada nas mãos dos nazistas na Conferência de Munique.

Na Espanha, uma cidade após a outra estava caindo nas forças de Franco. Em fevereiro de 1939, Barcelona caiu. Esse foi o fim da República Espanhola. A notável revolução popular, revolução anarquista, de 1936, 1937, 1938, já havia sido esmagada pela força. Parecia que o fascismo se espalharia sem ter fim.

Não é exatamente o que está acontecendo hoje, mas, se pudermos emprestar a famosa frase de Mark Twain, “A história não se repete, mas às vezes rima” – muitas semelhanças para se ignorar. Quando Barcelona caiu, houve uma enorme inundação de refugiados da Espanha.

A maioria foi para o México, cerca de 40.000. Alguns foram para a cidade de Nova York, estabeleceram escritórios anarquistas na Union Square, sebos na 4th Avenue. Foi aí que recebi minha educação política inicial, perambulando por essa área. Isso foi há 80 anos. Agora é hoje.

Não sabíamos na época, mas o governo dos EUA também estava começando a pensar que na virtual impossibilidade de conter a disseminação do fascismo. Eles não o viam com o mesmo alarme que eu quando tinha 10 anos de idade. Agora sabemos que a atitude do Departamento de Estado era bastante dúbia em relação ao significado do movimento nazista.

Na verdade, havia um cônsul em Berlim, o cônsul dos EUA em Berlim, que estava enviando comentários bastante inconsistentes sobre os nazistas, sugerindo que talvez eles não fossem tão ruins quanto todo mundo dizia. Ele ficou lá até o dia do ataque de Pearl Harbor, quando foi exonerado – o famoso diplomata chamado George Kennan. Não é uma má indicação da atitude dúbia em relação a esses desenvolvimentos. Acontece que, não poderia saber na época, mas logo depois disso, em 1939, o Departamento de Estado e o Conselho de Relações Exteriores começaram a planejar o mundo pós-guerra, como seria o mundo pós-guerra.

E nos primeiros anos, exatamente naquela época, nos anos seguintes, eles assumiram que o mundo do pós-guerra seria dividido entre um mundo controlado pelos alemães, um mundo controlado pelos nazistas, a maior parte da Eurásia, e um mundo controlado pelos EUA, que incluiria o Hemisfério Ocidental, o antigo Império Britânico – que os EUA assumiriam partes do Extremo Oriente. E esse seria o formato do mundo pós-guerra. Agora, sabemos que essas opiniões foram mantidas até que os russos mudassem a maré.

Stalingrado, 1942–1943, a enorme batalha de tanques em Kursk, pouco depois, deixou bem claro que os russos derrotariam os nazistas. O planejamento mudou. A imagem do mundo pós-guerra mudou e passou para o que vimos no último período desde aquela época. Bem, isso foi há 80 anos.

Hoje não estamos enfrentando a ascensão de algo como o nazismo, mas estamos enfrentando a expansão do que às vezes é chamado de internacional reacionária ultranacionalista. A aliança no Oriente Médio consiste dos estados reacionários extremistas da região – Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, sob a ditadura mais brutal de sua história, Israel no centro – confrontando o Irã.

Existem ameaças graves que estamos enfrentando na América Latina. A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil colocou no poder o ultranacionalismo de direita mais extremo, mais ultrajante que agora assola o hemisfério. Lenín Moreno, do Equador, deu um grande passo em direção à união da extrema-direita expulsando Julian Assange da embaixada . Ele foi rapidamente preso pelo Reino Unido e enfrenta um futuro muito perigoso, a menos que haja um significativo protesto popular. O México é uma das raras exceções na América Latina a esses desenvolvimentos. Na Europa Ocidental, os partidos de direita estão crescendo, alguns deles de caráter muito assustador.

Há também contradesenvolvimentos. Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, um indivíduo muito significativo e importante, junto com Bernie Sanders, pediu a formação de uma Internacional Progressista para combater a internacional de direita que está se desenvolvendo. No nível dos estados, o equilíbrio parece esmagadoramente na direção errada.

Mas os estados não são as únicas entidades. No nível das pessoas, é bem diferente. E isso pode fazer a diferença. Isso significa a necessidade de proteger as democracias em funcionamento, de aprimorá-las, de aproveitar as oportunidades que elas oferecem, para os tipos de ativismo que levaram a progressos significativos no passado e que poderão nos salvar no futuro.

Quero fazer algumas observações abaixo sobre a grave dificuldade de manter e instituir a democracia, as forças poderosas que sempre se opuseram a ela, as façanhas de por algum modo forma salvá-la e melhorá-la, e a significância disso para o futuro.

Mas primeiro, algumas palavras sobre os desafios que enfrentamos, sobre os quais você já ouviu falar o suficiente e todos sabem. Não preciso entrar neles em detalhes.

Descrever esses desafios como “extremamente graves” seria um erro. A frase não captura a enormidade dos tipos de desafios que temos pela frente. E qualquer discussão séria sobre o futuro da humanidade deve começar por reconhecer um fato crítico, que a espécie humana agora enfrenta uma questão que nunca havia surgido na história da humanidade, uma pergunta que precisa ser respondida rapidamente: a sociedade humana sobreviverá por muito tempo?

Bem, como todos sabem, há 70 anos vivemos sob a sombra da guerra nuclear. Aqueles que analisaram os registros só podem se surpreender com o fato de termos sobrevivido até agora. Vez após outra, o desastre terminal tem ficado extremamente próximo, a alguns minutos de distância. É um milagre que tenhamos sobrevivido. Milagres não duram para sempre.

Isso tem que ser interrompido e rapidamente. A recente Revisão da Postura Nuclear [Nuclear Posture Review] do governo Trump aumenta drasticamente a ameaça de conflagração, que seria de fato terminal para a espécie. Podemos lembrar que esta Revisão da Postura Nuclear foi patrocinada por Jim Mattis, que era considerado civilizado demais para ser mantido no governo.

Havia três tratados principais de armas: o Tratado ABM, Tratado de Mísseis Antibalísticos; o Tratado INF, Forças Nucleares Intermediárias; o novo tratado START.

Os EUA se retiraram do Tratado ABM em 2002. E qualquer um que acredite que mísseis antibalísticos são armas defensivas esta iludido com a natureza desses sistemas. Os EUA acabaram de sair do Tratado INF, estabelecido por Gorbachev e Reagan em 1987, que reduziu drasticamente a ameaça de guerra na Europa, que se espalharia muito rapidamente.

Manifestações públicas maciças foram o pano de fundo para levar a um tratado que fez uma diferença muito significativa. Vale lembrar desse e de muitos outros casos em que o ativismo popular significativo fez uma enorme diferença. As lições são óbvias demais para enumerar. O governo Trump retirou-se do Tratado INF. Os russos se retiraram logo depois.

Se você der uma olhada mais de perto, verá que cada um dos lados tem uma argumentação credível, dizendo que o oponente não cumpriu o tratado. Para aqueles que querem uma imagem de como os russos podem olhar para a situação, o Bulletin of Atomic Scientists, o principal periódico sobre questões de controle de armas, publicou recentemente um artigo de Theodore Postol, destacando o quão perigosas são as instalações americanas de mísseis antibalísticos na fronteira com a Rússia – quão perigosos eles são e podem ser percebidos pelos russos. Observem, na fronteira com a Rússia. As tensões estão aumentando.

Ambos os lados estão realizando ações provocativas. Em um mundo racional, o que aconteceria seriam negociações entre os dois lados, com especialistas independentes para avaliar as acusações que cada um está fazendo contra o outro, para levar a uma resolução dessas acusações, para restaurar o tratado. Isso seria num mundo racional. Infelizmente, porém, não é o mundo em que vivemos. Nenhum esforço foi feito nesse sentido. E não será, a menos que haja pressão significativa.

Bem, resta o novo tratado START. O novo tratado START já foi designado pela figura responsável (que se descreveu modestamente como o maior presidente da história americana) como o pior tratado que já aconteceu na história da humanidade, a designação usual para qualquer coisa que tenha sido feita por seus antecessores.

Trump acrescentou que precisamos nos livrar dele. Na verdade, o tratado entra em renovação logo após a próxima eleição, muito estará em jogo. Muito estará em jogo na questão da renovação desse tratado. Ele conseguiu reduzir significativamente o número de armas nucleares, muito acima do que deveriam ser, mas muito abaixo do que eram antes. E poderia continuar.

Enquanto isso, o aquecimento global prossegue em seu curso inexorável. Durante este milênio, cada ano, com uma exceção, foi mais quente do que o anterior. Existem trabalhos científicos recentes, de James Hansen e outros, que indicam que o ritmo do aquecimento global, que vem aumentando desde 1980, pode estar aumentando acentuadamente e pode passar de um crescimento linear para um crescimento exponencial, o que significa dobrar a cada duas décadas.

Já estamos nos aproximando das condições de 125.000 anos atrás, quando o nível do mar era cerca de 10 metros mais alto do que é hoje. Com o derretimento, o derretimento rápido, dos enormes campos de gelo da Antártica, esse ponto pode ser alcançado. As consequências disso são quase inimagináveis. Quer dizer, nem vou tentar descrevê-las, mas vocês podem descobrir rapidamente o que isso significa.

Enquanto isso acontece, você lê regularmente relatos eufóricos da imprensa sobre como os Estados Unidos estão avançando na produção de combustíveis fósseis. Agora ultrapassamos a Arábia Saudita. Estamos na liderança da produção de combustíveis fósseis. Os grandes bancos, JPMorgan Chase e outros, estão despejando dinheiro em novos investimentos em combustíveis fósseis, incluindo os mais perigosos, como as areias betuminosas do Canadá. E tudo isso é apresentado com grande euforia, com excitação. Agora estamos alcançando a “independência energética”. Podemos controlar o mundo, determinar o uso de combustíveis fósseis no mundo.

Apenas uma palavra sobre qual é o significado disso, o que é bastante óbvio. Não é que os repórteres, comentaristas não saibam disso, que os CEOs dos bancos não saibam disso. Claro que eles sabem. Mas essas são pressões institucionais das quais é extremamente difícil se livrar. Tente colocar-se na posição de, digamos, o CEO do JPMorgan Chase, o maior banco, que está direcionando grandes somas para investimentos em combustíveis fósseis. Ele certamente sabe tudo o que todos sabem sobre o aquecimento global. Não é segredo.

Mas quais são suas escolhas? Basicamente, ele tem duas opções. Uma opção é fazer exatamente o que ele está fazendo. A outra opção é renunciar e ser substituído por outra pessoa que fará exatamente o que está fazendo. Não é um problema individual. É um problema institucional que pode ser resolvido, mas apenas sob tremenda pressão pública.

E vimos recentemente, de maneira muito dramática, como a solução pode ser alcançada. Um grupo de jovens, o Movimento Sunrise, organizado, chegou ao ponto de se sentar nos escritórios do Congresso e despertou algum interesse das novas figuras progressistas que conseguiram chegar ao Congresso. Sob muita pressão popular, a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, acompanhada pelo senador Ed Markey, colocou o Green New Deal na agenda.

Essa é uma conquista notável. É claro que o plano recebeu ataques hostis de todos os lados: isso não importa. Alguns anos atrás, era inimaginável que fosse discutido. Como resultado do ativismo desse grupo de jovens, ele está agora no centro da agenda. Ele precisa ser implementado de uma forma ou de outra. É essencial para a sobrevivência, talvez não exatamente dessa forma, mas com algumas modificações.

Enquanto isso, o Relógio do Juízo Final do Boletim de Cientistas Atômicos, em janeiro passado, estava marcado para dois minutos para meia-noite. É o ponto mais próximo do desastre terminal desde 1947. O anúncio desse horário – desse cenário – mencionou as duas principais ameaças conhecidas: a ameaça da guerra nuclear, que está aumentando, e a ameaça do aquecimento global, que está aumentando ainda mais. E acrescentou uma terceira ameaça pela primeira vez: o enfraquecimento da democracia. Essa é a terceira ameaça, junto com o aquecimento global e a guerra nuclear.

E isso foi bastante apropriado, porque o funcionamento da democracia oferece a única esperança de superar essas ameaças. Eles não serão tratados pelas principais instituições, estatais ou privadas, agindo sem pressão pública maciça, o que significa que os meios de funcionamento democrático devem ser mantidos vivos, usados da maneira que o Movimento Sunrise fez, da maneira como a grande massa demonstração no início dos anos 80, e da maneira como continuamos hoje.

O novo coronavírus está causando uma calamidade hedionda – que estava prevista e poderia ter sido evitada. Análises credíveis, de cenários extremos possíveis, avaliam que milhões podem morrer, e como sempre, com os pobres e mais vulneráveis sofrendo mais no mundo inteiro. Houve outras catástrofes de saúde na história humana. A “Peste Negra” matou pelo menos um terço da população da Europa, que se recuperou. Também haverá recuperação neste caso, a um custo humano terrível.

Também enfrentamos outras ameaças, que são incomparavelmente mais graves, mesmo que não sejam tão perturbadoras para a vida cotidiana – hoje. Uma é a ameaça de destruição praticamente total pela guerra nuclear, que é ameaçadora e crescente. Outra é a ameaça de uma catástrofe ambiental, que é iminente e devastadora.

Não haverá recuperação. E não há tempo a perder ao tratar decisivamente com as ameaças.

Diante da imensa tragédia da Covid-19, pode parecer cruel colocar a calamidade em perspectiva, e também instar uma busca por suas raízes. Mas o realismo é, no entanto, imperativo, pelo menos se esperamos evitar mais desastres.

Na raiz estão colossais falhas de mercado e malignidades mais profundas da ordem socioeconômica, elevadas da crise ao desastre pelo capitalismo brutal da era neoliberal. Questões que valem a pena considerar, particularmente no país mais poderoso da história mundial, que enfrenta a decisão de permitir ou não que o aríete continue a ser brandido com força devastadora total.

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Noam Chomsky é analista político e professor de Linguística no Massachussetts Institute of Technology (MIT). Além do trabalho na área de Linguística, Chomsky é reconhecido internacionalmente como um dos maiores intelectuais vivos da esquerda, tendo publicado centenas de artigos e livros que abordam temas como mídia, movimentos sociais, política e economia global. Foi traduzido para centenas de idiomas e publicado, no Brasil, por diversas editoras, como a Bertrand Brasil, Hedra, WMF Martins Fontes, Editora UNESP, dentre outras.

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