sexta-feira, 29 de maio de 2020

Copiar os EUA está levando o Brasil ao desastre na Covid, diz editor da revista Americas Quarterly


Para Brian Winter, diretor-chefe da revista Americas Quarterly, dedicada a temas de América Latina, afirma em editoral que a postura de Jair Bolsonaro de seguir a política de Donald Trump no enfrentamento ao coronavírus está levando o Brasil a um desastre


Por Brian Winter, diretor-chefe do Americas Quarterly, com tradução de Regina de Aquino e revisão de Carolina Ferreira - Foi uma visão desconcertante, mesmo para muitos brasileiros: o presidente Jair Bolsonaro participando de uma recente manifestação de rua enquanto três bandeiras se erguiam no ar: as do Brasil, de Israel e dos Estados Unidos.

Mas o simbolismo não foi acidental. Um amor por todas as coisas americanas e um desejo de imitar a política e a cultura dos EUA são muito mais profundos entre os conservadores brasileiros do que falar de Bolsonaro como um "Trump Tropical". Infelizmente, isso agora está levando o país a um desastre absoluto, já que o Brasil passou os Estados Unidos para se tornar o epicentro global da pandemia da Covid-19, com mais de 1.000 mortes por dia e a curva ainda está subindo.

Como analista americano que estuda o Brasil há quase duas décadas, foi estranho ver a bandeira do meu país se tornar um poderoso símbolo anti-establishment aqui. Mas os conservadores têm voado nos últimos anos para mostrar sua rejeição ao esquerdista Partido dos Trabalhadores, que governou de 2003 a 2016. Em suas cabeças, a esquerda levou o Brasil ao caminho da Venezuela socialista, causando numerosos escândalos de corrupção, uma onda de crimes nas ruas e a pior recessão em pelo menos um século. Os Estados Unidos defendem o oposto, eles assim acreditam, empresa privada, maior segurança por meio de maior posse de armas, governo limpo e um renascimento dos "valores da família".

Essa afinidade vai além da política. Foi reforçada por uma explosão no número de brasileiros viajando para os Estados Unidos, que quadruplicou nos últimos 15 anos para quase 2 milhões de visitantes por ano, e viram São Paulo em um certo ponto se tornar o consulado americano mais movimentado do mundo para a emissão de vistos. Marcas americanas como Starbucks e Applebee's tornaram-se símbolos de status para a crescente classe média. O Brasil também viu um aumento no cristianismo evangélico (com o qual a bandeira israelense acima mencionada também se comunica), com crescentes laços com mega-igrejas no coração dos EUA.

O conservadorismo brasileiro moderno não se tornou popular até a candidatura de Bolsonaro começar a decolar em 2017 - um período que coincidiu precisamente com o início do governo Trump.

Celebridades conservadoras dos EUA, como Stephen K. Bannon e Alex Jones, ofereceram, entusiasmadamente, conselhos a seus novatos companheiros brasileiros. O conselheiro mais importante do governo Bolsonaro, um ex-astrólogo brasileiro chamado Olavo de Carvalho, vive na floresta nos arredores de Richmond, Virgínia, ostenta uma grande coleção de rifles e se veste como um homem do Marlboro dos dias atuais. Quando visitei a Embaixada do Brasil em Washington, um ano atrás, um diplomata sênior tinha um pôster com dizeres "Make Unborn Babies Great Again" (Dar de novo lugar de importância aos embriões) pendurado com destaque em seu escritório.

Essa auto-descrita “revolução conservadora” contribuiu para algumas mudanças positivas desde a posse de Bolsonaro. Isso inclui uma maior abertura ao comércio, ceticismo da China e reformas que encolheram o estado inchado do Brasil e facilitaram a vida das pequenas empresas. A economia estava mostrando modestos sinais de vida antes da pandemia. Mas qualquer que seja o bem que enha sido feito em nome do Tio Sam fracassou terrivelmente este ano, especificamente desde a malfadada noite de 7 de março.

Foi essa a noite em que Bolsonaro jantou com o presidente Trump em seu resort em Mar-a-Lago, acompanhado por uma grande delegação brasileira. Na época, havia menos de 500 casos confirmados de covid-19 nos Estados Unidos, e Trump ainda estava dizendo que "não estava nem um pouco preocupado" com o surto.Fontes próximas ao governo de Bolsonaro me disseram que ele voltou da Flórida mais convencido do que nunca de que o coronavírus não representava uma ameaça séria. Mesmo quando vários de seus conselheiros mais próximos testaram positivo para o vírus, e o próprio Trump adotou uma abordagem mais cautelosa nas semanas seguintes, Bolsonaro continuou a menosprezar a doença como uma "pequena gripe" e atacou ativamente os governadores e prefeitos brasileiros que apoiavam medidas de distanciamento social.

Nos Estados Unidos, a retórica irresponsável de Trump tem sido moderada de alguma maneira por instituições como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e pela liderança de governadores e personalidades como Anthony S. Fauci. Mas no Brasil, Bolsonaro demitiu seu ministro da Saúde depois que ele continuou a soar o alarme sobre o vírus. Seu substituto de então se demitiu menos de um mês depois, após se recusar a apoiar a visão de Bolsonaro de que a cloroquina era um tratamento eficaz - um posicionamento fortemente influenciado pela defesa de Trump pela droga, me disseram.

Nas últimas semanas, mesmo quando a Organização Mundial da Saúde chamou a América do Sul de "novo epicentro" da Covid-19 e o número total de mortes no Brasil ultrapassou 20.000, os apoiadores de Bolsonaro estavam compartilhando memes do Twitter de protestos anti-sociais de distanciamento em lugares como Michigan e usando linguagem distintamente americana sobre "liberdades pessoais" para pedir um retorno à normalidade.

A mídia brasileira documentou como, cada vez que Bolsonaro subestima o vírus na TV, as taxas de distanciamento social caem ainda mais. Em um país que investe uma parcela muito menor de seu produto interno bruto em saúde do que nos Estados Unidos, e onde as pessoas vivem lado a lado espremidas em favelas, em lugares como o Rio de Janeiro, o efeito tem sido desastroso. E, talvez numa ironia final, Trump fechou a fronteira na terça-feira para a maioria dos viajantes do Brasil à medida que os casos disparam.

Não precisava ser assim. Países vizinhos, como Argentina e Colômbia, têm visto uma disciplina muito maior por parte de seus líderes - e um número menor de infecções. Até alguns conservadores brasileiros fervorosos se tornaram críticos de Bolsonaro, preocupados com o crescente número de vidas humanas perdidas e do risco de impedimento, à medida que seus índices de aprovação caem.

"Isso pode destruir nosso movimento pelos próximos 30 anos", disse um deles, falando em particular para evitar possíveis retaliações dos seguidores de Bolsonaro. Como outros, ele expressou esperanças de uma dramática mudança de rumo. De fato, pode haver coisas que vale a pena imitar dos Estados Unidos, mas nossa reação ao Covid-19 certamente não é uma delas.

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