sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Família, mercado, liberdade de expressão e ressentimento nas ruínas do neoliberalismo, por Marina Basso Lacerda

Artigo discute três aspectos: a relação entre família e neoliberalismo; o uso conservador da liberdade de expressão; e o ressentimento. Esses elementos têm interface extraordinária com o Brasil.

         Por Jornal GGN
Supparat Thepparat

Família, mercado, liberdade de expressão e ressentimento nas ruínas do neoliberalismo

por Marina Basso Lacerda

Introdução

Para Wendy Brown, em Nas Ruínas do Neoliberalismo (Politeia, 2019), o momento que dá título ao livro é o da segunda década do século XXI em diante, depois de trinta ou quarenta anos desse conjunto de princípios, políticas, práticas e formas de governar. As ruínas do neoliberalismo abrigam um movimento, representado nos Estados Unidos hoje por Trump, que ataca as políticas sociais que modestamente corrigem os extremos de classe e que desafiam a reprodução de hierarquias de gênero e raça.

O livro teoriza a formação atual como relativamente nova, mas resgata as características cruciais da revolução neoliberal Thatcher-Reagan, expressando o projeto do neoliberalismo hayekiano: um programa político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais e o mercado, negando a própria ideia do social (o que é discutido no Capítulo 1), restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático (tema do Capítulo 2) e expandindo o alcance da moralidade tradicional (Capítulos 3 e 4), com doses importantes de niilismo e ressentimento (Capítulo 5).

Discutirei aqui três aspectos da obra: a relação entre família e neoliberalismo; o uso conservador da liberdade de expressão; e o ressentimento. Esses elementos têm interface extraordinária com o Brasil.

Expansão do alcance da moralidade tradicional para além da esfera privada da família, abrangendo a vida pública e comercial

Já existia na política brasileira, antes da eleição de Bolsonaro, um projeto aliando a moralidade religiosa com o neoliberalismo – a fotografia é a da candidatura do Pastor Everaldo pelo PSC em 2014, que disse que iria privatizar a Petrobrás, quando até mesmo o candidato do PSDB negava que iria fazê-lo. A campanha vitoriosa do atual presidente, por sua vez, também se apoiou fortemente nos dois elementos.

Wendy Brown – sem tratar em qualquer momento do caso brasileiro – explora, do ponto de vista teórico, as explicações para os compromissos da direita, ao mesmo tempo, com o neoliberalismo e com valores morais tradicionais. Ela organiza as explicações em teorias. Destaco algumas.

Uma delas seria a teoria da ressonância (1) entre o cristianismo evangélico contemporâneo e a cultura capitalista. Uma literatura ampla trata da afinidade notadamente do pentecostalismo e do neopentecostalismo com os valores de mercado, o que hoje se expressa com nitidez na adoção da Teologia da Prosperidade entre as diversas denominações.

Outra teoria seria a da exploração mútua (2). De um lado, evangélicos precisam do Estado para promoção dos seus valores; de outro, a campanha de Trump percebeu desde cedo a importância do voto evangélico branco. No Brasil, cada vez mais os evangélicos se tornam uma força eleitoral relevante pelo seu próprio crescimento na sociedade, e pela promoção organizada de candidaturas nas igrejas. Bolsonaro, quando apresentou sua pré-candidatura, batizou-se no Rio Jordão.

A teoria da convergência (3) aponta que, entre o neoliberalismo e a defesa da família tradicional, há aproximação porque a família atua no lugar de políticas sociais. A família, e não o Estado, seria a principal responsável por prover educação, saúde, cuidado com as crianças. Confirmando esse argumento, no Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos brasileiro vem estimulando políticas públicas para fortalecer a família (no singular, e não na pluralidade de arranjos) e “mães empreendedoras”, enquanto, apesar de exceções pontuais, o Executivo, mesmo durante a pandemia, segue uma firme agenda de austeridade.

A teoria híbrida-genealógica (4), defendida por Brown no artigo American Nightmare, de 2006, trata o neoliberalismo e neoconservadorismo nos Estados Unidos como duas racionalidades políticas distintas, mas unidas para produzir forças de desdemocratização, dando lugar a uma figura de Estado abertamente parcial, não tendo a igualdade como um valor e que, de um lado, defende determinadas concepções morais e religiosas, de outro, vê as políticas redistributivas como um erro.
Todas essas teorias tratam a racionalidade do mercado e a racionalidade da família como caminhos distintos que se aproximam. Na posição atual de Wendy, nenhum deles apreende o lugar da moralidade tradicional dentro da razão neoliberal formulada por Hayek, segundo o qual os mercados e a moral estão enraizados em uma ontologia comum (5).

As quatro primeiras teorias são complementares, sustentadas por uma série de autores e não são incompatíveis com a formulação de Nancy Fraser (2017). Para a autora, o neoliberalismo tanto pode se apresentar em sua fórmula reacionária, expressa no Partido Republicano nos EUA (e por Bolsonaro no Brasil), quanto em sua fórmula progressista, adotada pela tendência hegemônica do Partido Democrata nos EUA (no nosso caso representada, por exemplo, pelo Novo ou pela Rede Globo), com a defesa da austeridade e da desregulamentação combinada com acenos ao feminismo, à diversidade de gênero e à igualdade racial.

De qualquer maneira, para Wendy Brown – e isso é compatível com qualquer das teorias – a razão neoliberal (associada ou ontologicamente comum à moralidade tradicional) comporta duas ordens de privatização: a econômica, que gera desigualdade; e a privatização pela familialização e cristianização alcançada pela extensão desses valores para fora da esfera pessoal.

O argumento é parecido com o de Petchesky (1981): a reação contra o Estado de bem-estar e a reação antifeminista são, para ela, as duas faces do neoconservadorismo – como era chamado na década de 1980 o processo de ascensão do Reagan –, e o elemento de ligação entre eles seria a ideologia privatista do livre mercado e do patriarcado.

Liberdade de expressão como instrumento de poder

Na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, Bolsonaro, defensor da Ditadura Militar de 1964-1985, disse: “estou armando o povo porque não quero uma ditadura, não dá para segurar mais. Quem não aceitar as minhas bandeiras, família, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado, quem não aceita isso está no governo errado”.

Wendy Brown – repito, sem abordar o caso brasileiro – desvenda essa relação família/arma/neoliberalismo e liberdade de expressão. A liberdade de expressão, para a autora, se tornou um senso comum e tem sido a chave para a consagração da brancura, da masculinidade, da nacionalidade e do poder de classe.

A liberdade, quando descolada da justiça social (entendida pela autora, sintética e brilhantemente, como a modulação dos poderes do capitalismo, do colonialismo, da raça e do gênero), se torna antidemocrática e um puro instrumento de poder, desprovido de preocupação com os outros, com o mundo ou com o futuro.

Ela aponta três exemplos. Um, de um gerente da Google, James Damore, que escreveu um e-mail machista. Ele foi condenado por isso, mas tornou-se o ícone da liberdade em um léxico que pretende, na verdade, suprimir a liberdade.

O segundo, de uma decisão da Suprema Corte norte-americana no caso da Confeitaria Masterpiece, cujo confeiteiro se recusou a fazer um bolo para um casamento gay. E o terceiro, em que a Suprema Corte declarou inconstitucional lei da Califórnia que previa que serviços religiosos contra o abortamento (legal naquele país) deveriam apresentar a informação de que não constituem instalações médicas.

O fundamento de ambos os julgamentos foi a liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda à Constituição daquele país. Para Brown, o dispositivo, que foi um escudo contra a censura ou repressão estatal, social e corporativa, para proteção de expressões de minorias vulneráveis e dissidentes políticos, tem sido interpretado pela jurisprudência neoliberal em nome de uma ampla desregulamentação, impedido normas sociais de incidirem nos casos, em particular para interesses corporativos e da direita cristã.

Para a autora, a liberdade de expressão (sem justiça social) tem permitido que o cristianismo conservador extrapole a esfera privada para se tornar uma força na esfera comercial e pública. Isso permite a (re)cristianização da esfera pública, minando as determinações democráticas de igualdade e justiça. A aliança entre liberdade e cristianismo foram, nos casos, aliados e preservados, opondo-se juntos ao estatismo e à justiça social: é o hayekianismo realizado.

E daí? Niilismo e ressentimento

Como explicar a zombaria rotineira em sites de direita, nas sessões de comentários, em postagens de cidadãos anônimos e de políticos conhecidos? Como explicar o I dont´t care de Melania Trump, que tanto se assemelha ao “E daí?” de Bolsonaro?

Para Wendy Brown, a legitimação neoliberal da indiferença, somada ao enfraquecimento da consciência que o niilismo provoca e à liberdade (sem justiça social, como visto acima), resulta em uma miséria ética, frequentemente revestida de retidão religiosa ou melancolia conservadora com um passado hipotético.

Para ela, a equação niilismo/neoliberalismo/liberdade deprime a importância da conduta e da verdade: não é mais necessário ser moral, mas apenas gritar sobre isso. Os valores tradicionais implicitamente licenciam aqueles que os declaram, conforme proíbem explicitamente. O niilismo se relaciona, também, ao ressentimento. A direita hoje expressaria o ressentimento do homem branco, da masculinidade ferida. A validade de seu argumento teórico, baseado no imenso ódio que a direita tem do feminismo, do movimento LGBT e de movimentos por ações afirmativas, no Brasil já vem sendo demonstrada por pesquisas antropológicas.

De acordo com Brown, em Nietzsche a moralidade judaico-cristã nasceu como a vingança dos fracos: a valorização da mansidão, da humildade, da abnegação e do ascetismo, mas também da igualdade e democracia, emana da ferida da fraqueza. A grande diferença é que, hoje, o que ela chama de populismo de direita emerge não dos fracos, mas do ressentimento dos historicamente dominantes, pois eles sentem que o domínio – da brancura, da masculinidade – estaria diminuindo.

O que acontece, pergunta a autora, quando o ressentimento nasce do destronamento, do direito perdido, e não da fraqueza?

O rancor e a raiva não se transformam em valores morais refinados como na autoabnegação cristã e no amor ao próximo; em vez disso, permanecem como rancor e raiva. Levam a uma política permanente de vingança, de atacar aqueles acusados ​​de destronar a masculinidade branca: feministas, multiculturalistas, globalistas, ambientalistas. A terra e suas espécies, os direitos e proteções dos vulneráveis, a saúde dos americanos garantida por meio do Obamacare: nada importa, diz Brown. Pensemos em Ernesto Araújo, Damares Alves e Ricardo Sales. Pensemos em Trump e Bolsonaro em meio à pandemia.

Isso se comunica com a pergunta: qual o projeto de Bolsonaro? Uma das leituras vem do ensaio de João Moreira Salles: Bolsonaro, ainda que reúna setores e projetos diferentes, em si não tem qualquer projeto, a não ser o da destruição. Sua proposta é uma arma em punho.

A supremacia branca masculina foi ferida sem ser destruída, argumenta Wendy Brown. De fato. Seu sujeito detesta a democracia que considera responsável por seu machucado: se os homens brancos não podem ser donos da democracia, não haverá democracia. Se os homens brancos não podem governar o planeta, não haverá planeta.

E a adesão de grupos oprimidos pelo projeto em curso?

Mas o que explicaria a adesão de pessoas pobres, de mulheres, a esse projeto? Wendy Brown oferece alguns insights. Como ela sustenta, baseada em David Goodhart, aqueles que se sentem “deixados para trás” na onda crescente de cosmopolitas e beneficiários das políticas de identidade, as pessoas enraizadas em um lugar, geralmente em um espaço suburbano, com educação limitada, tendem a abrigar visões sociais conservadoras. Especialmente para essas pessoas os valores tradicionais forneciam proteção contra os deslocamentos e perdas que quarenta anos de neoliberalismo renderam para as classes trabalhadoras e médias.

Esse argumento teórico de Wendy Brown também vem sendo confirmado no Brasil.

E, pela sua penetração nas classes populares, ocorre o que Brown chama de uso da moralidade como arma política: no sentido de revestir a miséria ética, e no sentido mais estratégico, porque foi o instrumento para que a adesão ao neoliberalismo chegasse nas classes populares.

Por que agora, pergunta Wendy? A estratificação de não é nova, mas o neoliberalismo tornou a desigualdade mais legítima, intensa e disseminada, mais do que em qualquer momento desde o feudalismo.

De acordo com ela, os evangélicos se identificam profundamente com Trump por causa de sua experiência compartilhada de serem desprezados pelas elites culturais e atacados por forças mundanas, particularmente por aquelas vindas da academia. É um argumento que associa o evangelismo ao ressentimento e ao anti-intelectualismo e que pode explicar, na ONU, Bolsonaro ter mencionado a cristofobia – sendo que no Brasil as religiões mais agredidas são aquelas de matriz africana.


Marina Basso Lacerda é Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ e pesquisadora de Pós-Doutorado em Ciência Política na USP. Autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk).

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