segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Francisco: um papa que não tem medo de expor sua opinião

Pontífice levanta temas que não são usualmente discutidos na Igreja Católica e propõe à sociedade um retorno às fontes humanistas do mundo ocidental

          Por GABRIEL RODRIGUES
Foto: Vicenzo Pinto

Em seu novo livro, “Vamos Sonhar Juntos”, que será lançado mundialmente amanhã, terça-feira, e a que O TEMPO teve acesso, o papa Francisco propõe saídas para a crise da Covid-19, elogia o movimento pelos direitos das mulheres #MeToo e os protestos do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e se posiciona firmemente contra governos populistas e políticos que desacreditaram da gravidade da pandemia.

Homem, branco, com quase 84 anos e representante de uma instituição milenar, em princípio o perfil do papa Francisco é distante de alas progressistas contemporâneas. Contudo, algumas de suas declarações o posicionam como símbolo de progresso, mesmo que, na prática, ele ainda não tenha revolucionado a Igreja. 

O novo volume, escrito com o biógrafo britânico Austen Ivereigh, propõe alternativas para um capitalismo responsável e resume a filosofia de estímulo ao diálogo que Francisco defende em seus sete anos de papado, por vezes confundida com uma mudança nos dogmas da Igreja. Atraindo críticas de setores mais tradicionais, ele já acenou a cristãos divorciados e LGBT e condenou os casos de abuso sexual cometidos por padres, inclusive baixando uma nova regra, que ordena que os episódios sejam denunciados à Justiça civil. 

Na visão de estudiosos, ele não é um revolucionário que revira as tradições católicas de ponta-cabeça, mas um líder que escolheu o caminho da empatia para reforçar os valores cristãos. Para eles, em vez de alterar tradições, o papa quer mudar comportamentos – para que pessoas LGBT sejam mais aceitas na comunidade, por exemplo, ainda que nunca se casem diante do altar. Como o próprio Francisco escreve em seu livro, citando o compositor austríaco Gustav Mahler, “a tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”. 

“Em grande parte, o pensamento progressista, ou, digamos, politicamente correto, é uma aplicação de valores clássicos do cristianismo, basicamente a ideia de fraternidade e de amor ao próximo. Aí, você tem o grande diferencial de Francisco. Em um momento em que a sociedade ocidental passa por uma crise de valores e rompe com parte deles, o papa se torna um retorno às fontes humanistas do pensamento do Ocidente”, elabora o sociólogo Francisco Borba Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. No livro, o papa exalta o lema da Revolução Francesa, mas pede mais atenção à fraternidade, além da liberdade e da igualdade. 

No caminho, culpa políticos que negaram a gravidade da Covid-19 pela escalada da pandemia e “hipotecaram o próprio povo”. “Alguns veículos (de imprensa) usaram esta crise para convencer as pessoas de que os culpados são os estrangeiros, que o coronavírus não é mais do que uma leve gripe, que muito em breve vai estar tudo como antes e que certas restrições são uma exigência injusta de um Estado invasivo. Há políticos que vendem essas narrativas em benefício próprio”, escreve.

Francisco ataca o neoliberalismo e, mais de uma vez, condena um sistema que permite que 1% da população concentre mais da metade da riqueza global. Ao visualizar soluções para o mundo pós-pandemia, afirma que o trabalho voluntário será essencial e propõe uma renda básica universal para garantir o voluntariado. Simultaneamente, cogita um aparato já utilizado por governos liberais: a redução de jornada de trabalho com diminuição proporcional de salário.

Fiel a movimentos sociais, mas firme contra aborto

Em “Vamos Sonhar Juntos”, o papa Francisco apoia os protestos contra injustiça racial, encabeçados pelo Black Lives Matter, que reavivaram discussões sobre as estruturas que sustentam o racismo. Por outro lado, pondera que a derrubada de estátuas de homens escravocratas nos EUA e em outros países, capitaneada por manifestantes, correria o risco de “podar a história (e) nos fazer perder a memória”.


Fiel à sua habitual proximidade com movimentos sociais, o papa faz coro à iniciativa por direitos das mulheres #MeToo e exalta as profissionais que atuam na Igreja. Ainda assim, na perspectiva dele, a independência das mulheres não se estende à livre escolha sobre a gravidez. No livro, Francisco equipara o aborto à eutanásia, à pena de morte e à destruição do meio ambiente, embora tenha permitido absolvição a mulheres que se arrependam do ato.

Ainda que amarrado a aparentes contradições – termo que ele não gosta de utilizar –, o papa Francisco consolida-se como um símbolo alternativo ao retorno dos populismos pelo mundo, que ele mesmo aponta. Historiador e professor de ciências da religião na PUC Minas, Rodrigo Coppe Caldeira lembra que o poder do papa é limitado na política internacional. “O impacto (de suas falas) é no imaginário, como símbolo religioso que diz coisas a que devemos estar atentos e que podem causar embaraço político”, pontua. 

“O simbolismo do papa Francisco é muito importante, por sua capacidade de apontar um mundo alternativo num momento em que as chances de um mundo assim eram quase nulas. Não sabemos até que ponto Francisco vai ser um protagonista, se ele vai, de fato, conseguir propor o diálogo e até que ponto vamos ter uma alternativa baseada nisso para os problemas de hoje”, aprofunda o sociólogo Francisco Borba Neto, da PUC-SP.

Um dos maiores desses problemas, elenca o papa, são as mudanças climáticas. Cada vez mais vocal sobre o tema, Francisco não reinventou a roda: o meio ambiente é uma preocupação da Igreja há pelo menos meio século, segundo Caldeira. O papa inova ao colocá-lo na linha de frente. Se o combate às mudanças climáticas é uma das maiores questões do século, Francisco declara-se pronto para guiar soluções. “É uma consciência, não uma ideologia”, conclui o pontífice no livro.

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