Antes de serem eleitores, os cidadãos têm direitos e deveres que são importantes para além do período eleitoral.
Por Jornal GGN
René Magritte
Cidadão ou eleitor? – Uma hipótese sobre a construção do cidadão nacional
por Jean D. Soares
Numa reportagem recente da Folha de São Paulo sobre a disputa simbólica em torno da vacina CoronaVac um ponto aparentemente marginal me permitiu elaborar melhor uma suspeita.
A dada altura o repórter afirma “A vacina chinesa recebeu menos confiança entre os eleitores do….” . Não preciso prosseguir a citação, os dados aqui são irrelevantes para o argumento. Saliento somente o fato de a pesquisa do DataFolha sobre a vacina ter abordado os cidadãos como eleitores. Evidentemente, o instituto apenas apresenta um sintoma de algo mais profundamente arraigado na mentalidade nacional, a saber – a cidadania está diretamente ligada ao direito ao voto. Mas será que a cidadania existe no imaginário brasileiro antes e depois desse direito?
Até aqui alguém poderia achar que está tudo bem, afinal é um direito fundamental da democracia o voto individual, secreto e inalienável. Porém, se examinarmos um pouco melhor a questão veremos o quão problemática essa associação pode se tornar, caso fuja das proporções.
Antes de serem eleitores, os cidadãos têm direitos e deveres que são importantes para além do período eleitoral. E a capacidade de julgar temas de interesse público, como a importância de uma vacina, não está relacionada a escolha de governantes, mas ao próprio exercício cotidiano da cidadania. Quando, como e por que vacinar não deveriam condicionar disputas presidenciais ou municipais, porque o que está em jogo é a saúde da população, algo que ultrapassa este ou aquele governo.
Por isso, o primeiro trecho despertou em mim a questão sintetizada no título. Afinal as pessoas precisam ser ouvidas como detentoras do poder de escolher este ou aquele governante ou como membros de uma sociedade pela qual devem zelar coletivamente? Devem ser interpeladas e tratadas como eleitores potenciais ou cidadãos ativos? A primeira função, a da escolha representativa, é própria do eleitor. A segunda, referente à vacina, é própria do cidadão e ultrapassa contingências eleitorais.
Reforçou essa suspeita também um artigo recente deste GGN em que lemos Nassif a recordar:
Moraes afirmou ainda que as declarações do presidenciável foram dadas em um contexto de crítica a instrumentos e políticas governamentais. Na avaliação do magistrado, “quem deve analisar [as falas] é o eleitor” e os cidadãos.
É interessante que Nassif adicione “cidadãos” logo após a citação do ministro. Ele está evidentemente retificando essa distorção propalada pelo Ministro Alexandre de Moraes. Não é o ministro responsável por sua invenção. Ele só aplica um raciocínio comum, quase inconsciente, de que no Brasil a cidadania se faz valer pelo voto, e não pelos instrumentos legais que deveriam defender os valores presentes na constituição. Essa citação acima vem de um artigo que sugere a negligência do ministro diante dos preconceitos propalados por um então presidenciável no Clube Hebraica do Rio de Janeiro. O fatídico dia em que ele expressou seus preconceitos com termos como fraquejada ou arrobas para se referir a humanos como ele.
Assim, é grave perceber, com esse pequeno exercício de contraste, o deficit de consciência democrática que atravessa emissores com poder como um Ministro do STF ou um jornal como a Folha. Por essas nuances, espaços como o Jornal GGN apresentam-se, inclusive em suas entrelinhas, como faróis nesse mar de falta de sentido público que assola o país. Como leitor, sinto que é importante dizê-lo a outros leitores. Afinal, o que essa confusão entre eleitor e cidadão mostra não é só que o eleitor analisa para votar, mas que o cidadão foi deixado de lado em privilégio do eleitor nas mentes e corações tupiniquins. Ele precisa ser acrescentado “a forceps” no discurso para que uma nova geração realmente cidadã possa usufruir da constituição que a gerou.
Jean D. Soares é professor de filosofia com doutorado pela PUC-Rio.
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