quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A geopolítica de Soleimani, um ano depois

            por Pepe Escobar [*]
            https://www.resistir.info/

Um ano atrás, os Devastadores anos 20 ( Raging Twenties ) principiaram com um assassinato.

O assassínio do Major General Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos (IRGC), ao lado de Abu Mahdi al-Muhandis, vice-comandante da milícia Hashd al-Sha'abi do Iraque, por mísseis Hellfire guiados a laser lançados de dois drones MQ-9 Reaper, foi um acto de guerra.

Não apenas o ataque de drones no aeroporto de Bagdad, ordenado directamente pelo presidente Trump, foi unilateral, não provocado e ilegal: foi planeado como uma provocação total, para detonar uma reacção iraniana que seria então retaliada pela "autodefesa" americana, embrulhada como "dissuasão". Chame isso de uma forma perversa de bandeira falsa dobrada e invertida.

O poderoso Wurlitzer imperial transformou-o em uma "matança selectiva", uma operação preventiva para esmagar o suposto planeamento de Soleimani de "ataques iminentes" contra diplomatas e tropas dos EUA.

Falso. Nenhuma evidência. E então, o primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi, perante o seu Parlamento, apresentou o contexto final: Soleimani estava numa missão diplomática, num voo regular entre Damasco e Bagdad, envolvido em negociações complexas entre Teerão e Riade, com o primeiro-ministro iraquiano como mediador, a pedido do presidente Trump.

Assim, a máquina imperial – em total desprezo do direito internacional – assassinou de facto um enviado diplomático.

As três principais facções que pressionaram pelo assassinato de Soleimani foram os neoconservadores dos EUA – extremamente ignorantes da história, cultura e política do sudoeste da Ásia – e os lobbies israelense e saudita, os quais acreditam ardentemente que seus interesses avançam toda vez que o Irão é atacado. Trump possivelmente não podia ver O Grande Quadro e suas terríveis ramificações: só o que seu principal doador israelense Sheldon Adelson dita e aquilo que Jared da Arábia Kushner sussurrou ao seu ouvido, controlado remotamente por seu amigo íntimo Muhammad bin Salman (MbS).

A blindagem do "prestígio" americano

A comedida resposta iraniana ao assassinato de Soleimani foi cuidadosamente calibrada para não detonar uma vingativa "dissuasão" imperial:
ataques de mísseis de precisão à base aérea de Ain al-Assad, controlada pelos americanos, no Iraque. O Pentágono recebeu um aviso prévio.

Previsivelmente, a aproximação do primeiro aniversário do assassinato de Soleimani tinha de degenerar em intimidações dos EUA – o Irão, mais uma vez, à beira da guerra.

Portanto, é esclarecedor examinar o que o Comandante da Divisão Aeroespacial do IRGC, Brigadeiro General Amir-Ali Hajizadeh, www.tasnimnews.com/fa/news/1399/10/13/2423366/ declarou à rede Al Manar do Líbano: "Os EUA e o regime sionista [Israel] não trouxeram segurança a lugar algum e se algo acontecer aqui (na região) e estourar uma guerra, não faremos distinção entre as bases dos EUA e os países que as hospedam".

Hajizadeh, ao explicar os ataques de mísseis de precisão de um ano atrás, acrescentou: "Estávamos preparados para a resposta dos americanos e todo o nosso poder de mísseis estava totalmente em alerta. Se eles tivessem dado uma resposta, teríamos atingido todas as suas bases, da Jordânia ao Iraque e o Golfo Pérsico e mesmo seus navios de guerra no Oceano Índico".

Os ataques de mísseis de precisão a Ain al-Assad, há um ano, representavam uma potência de médio escalão, debilitada por sanções e a enfrentar uma enorme crise econômico-financeira, a responder a um ataque alvejando activos imperiais que fazem parte do Império de Bases. Isso foi uma estreia global – inédita desde o final da Segunda Guerra Mundial. Foi claramente interpretado em vastas faixas do Sul Global como uma perfuração fatal na antiga blindagem hegemónica do "prestígio" americano.

Portanto, Teerão não ficou propriamente impressionado com dois B-52s com capacidade nuclear a voarem recentemente sobre o Golfo Pérsico; ou com a Marinha dos EUA a anunciar na semana passada a chegada do [submarino nuclear] USS Georgia carregado com mísseis ao Golfo Pérsico.

Estes posicionamentos foram feitos como resposta a uma alegação sem evidências de que Teerão estava por trás de um ataque de 21 foguetes contra a embaixada americana na Zona Verde de Bagdad.

Os foguetes (não detonados) com 107 mm de calibre – a propósito, marcados em inglês, não em farsi – podem ser facilmente comprados em algum suk subterrâneo de Bagdad por praticamente qualquer pessoa, como eu vi por mim mesmo no Iraque em meados dos anos 2000.

Isto certamente não se qualifica como um casus belli – ou "autodefesa" mesclada com "dissuasão". A justificativa do Centcom na verdade soa como um esboço do Monty Python: um ataque "... quase certamente conduzido por um grupo de milícia rebelde apoiado pelo Irão". Observe que "quase certamente" é um código para "não temos qualquer ideia de quem fez isto".

Como combater a guerra ao terror – a real

O ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad Zarif, deu-se ao trabalho (veja o tweet anexo) de advertir Trump de que ele estava a montar um falso casus belli – e a retaliação seria inevitável. O caso é que a diplomacia iraniana está perfeitamente alinhada com o IRGC: afinal, toda a estratégia pós-Soleimani vem directamente do aiatolá Khamenei.

E isso leva Hajizadeh do IRGC a, mais uma vez, a estabelecer a linha vermelha iraniana em termos de defesa da República Islâmica: "Não negociaremos acerca do poder dos mísseis com ninguém" – antecipando qualquer movimento para incorporar a redução de mísseis num possível retorno de Washington ao JCPOA. Hajizadeh também enfatizou que Teerão restringiu o alcance de seus mísseis a 2.000 km.

Meu amigo Elijah Magnier, certamente o principal correspondente de guerra em todo o sudoeste da Ásia nas últimas quatro décadas, detalhou primorosamente a importância de Soleimani.

Toda a gente, não apenas no Eixo de Resistência – Teerão, Bagdad, Damasco, Hezbollah – mas em vastas áreas do Sul Global está claramente consciente de como Soleimani liderou a luta contra o ISIS / Daesh no Iraque de 2014 a 2015 e de como ele foi instrumental na retomada de Tikrit em 2015.

Zeinab Soleimani, a impressionante filha do general, traçou o perfil do homem e dos sentimentos que ele inspirou. E o secretário-geral do Hezbollah, Sayed Nasrallah, numa entrevista extraordinária , enfatizou a "grande humildade de Soleimani", mesmo "com as pessoas comuns, as pessoas simples".

Nasrallah conta uma história que é essencial para estabelecer o modus operandi de Soleimani na guerra real – não na ficção – ao terror e merece ser citado na íntegra :

"Naquela época, Hajj Qassem viajou do aeroporto de Bagdad para o aeroporto de Damasco, de onde veio (directamente) para Beirute, nos subúrbios do sul. Ele encontrou-me à meia-noite. Lembro-me muito bem do que me disse: "Ao amanhecer você me fornecerá 120 comandantes de operações (do Hezbollah)". Respondi "Mas Hajj, é meia-noite, como posso fornecer 120 comandantes?" Ele disse-me que não havia outra solução se quiséssemos lutar (eficazmente) contra o ISIS, para defender o povo iraquiano, nossos lugares sagrados [5 dos 12 imãs do xiismo duodecimano (Twelver Shi'ism) têm seus mausoléus no Iraque], nossos Hawzas [Seminários islâmicos], e tudo o que existia no Iraque. Não havia escolha. "Não preciso de combatentes. Preciso de comandantes operacionais [para supervisionar as Unidades de Mobilização Popular do Iraque, PMU]. "É por isso que no meu discurso [sobre o assassinato de Soleimani], eu disse que durante os 22 anos ou mais de nosso relacionamento com Hajj Qassem Soleimani, ele nunca nos pediu nada. Ele nunca nos pediu nada, nem mesmo pelo Irão. Sim, ele só nos pediu uma vez, e foi para o Iraque, quando nos pediu esses (120) comandantes de operações. Então ele ficou comigo e começámos a contactar nossos irmãos (do Hezbollah), um por um. Conseguimos trazer cerca de 60 comandantes operacionais, incluindo alguns irmãos que estavam nas linhas de frente na Síria e que enviámos ao aeroporto de Damasco [para aguardar por Soleimani], e outros que estavam no Líbano, e que acordámos do sono e trouxemos [imediatamente] das suas casas, pois o Hajj disse que queria levá-los consigo no avião que o levaria de volta a Damasco após a oração do amanhecer. E, de facto, depois de rezar em conjunto a oração do amanhecer, eles voaram juntos para Damasco e Hajj Qassem viajou de Damasco a Bagdad com 50 a 60 comandantes libaneses do Hezbollah, com os quais ele foi para a linha de frente no Iraque. Ele disse que não precisava de combatentes, porque graças a Deus havia muitos voluntários no Iraque. Mas ele precisava de comandantes [endurecidos pela batalha] para liderar esses combatentes, treiná-los, transmitir-lhes experiência e conhecimento, etc. E ele não saiu até ter a minha promessa de que dentro de dois ou três dias eu lhe teria enviado os restantes 60 comandantes".

Orientalismo, tudo de novo

Um antigo comandante de Soleimani que conheci no Irão em 2018 havia-me prometido e ao meu colega Sebastiano Caputo que tentaria marcar uma entrevista com o Major-General – que nunca falou aos media estrangeiros. Não tínhamos motivos para duvidar do nosso interlocutor – assim, até ao último minuto de Bagdade, estávamos nesta selectiva lista de espera.

Quanto a Abu Mahdi al-Muhandis, morto ao lado com Soleimani no ataque de drones em Bagdad, eu fiz parte de um pequeno grupo que passou uma tarde com ele em uma casa segura dentro – não fora – da Zona Verde de Bagdad em Novembro de 2017. A minha reportagem completa está aqui .

O Prof. Mohammad Marandi, da Universidade de Teerão, a reflectir sobre o assassinato, disse-me: "o mais importante é que a visão ocidental sobre a situação é muito orientalista. Eles presumem que o Irão não tem estruturas reais e que tudo está dependente de indivíduos. No Ocidente, um assassinato não destrói uma administração, empresa ou organização. O aiatolá Khomeini faleceu e eles disseram que a revolução havia terminado. Mas o processo constitucional produziu um novo líder em poucas horas. O resto é história".

Isto pode ajudar muito a explicar a geopolítica de Soleimani. Ele pode ter sido um revolucionário célebre – muitos no Sul Global vêem-no como o Che Guevara do Sudoeste Asiático – mas ele foi, acima de tudo, um dente na engrenagem de uma máquina muito articulada.

O presidente adjunto do Parlamento iraniano, Hossein Amirabdollahian, contou à rede iraniana Shabake Khabar que Soleimani, dois anos antes do assassinato, já havia previsto uma inevitável "normalização" entre Israel e as monarquias do Golfo Pérsico.

Ao mesmo tempo, ele também estava muito consciente da posição de 2002 da Liga Árabe – compartilhada, entre outros, pelo Iraque, Síria e Líbano: uma "normalização" não pode sequer começar a ser discutida sem um Estado Palestino independente – e viável – sob as fronteiras de 1967 com Jerusalém Oriental como capital.

Agora todos sabem que este sonho está morto, se não completamente enterrado. O que resta é a batalha habitual e enfadonha: o assassinato americano de Soleimani, o assassinato israelense do importante cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh, a guerra israelense implacável e de intensidade relativamente baixa contra o Irão totalmente apoiada pela Beltway, a ocupação ilegal de Washington de partes do nordeste da Síria para agarrar um pouco de petróleo, o impulso perpétuo para a mudança de regime em Damasco, a demonização contínua do Hezbollah.

Para além do Hellfire

Teerão deixou muito claro que um retorno a pelo menos uma medida de respeito mútuo entre EUA-Irão envolve a reintegração de Washington no JCPOA sem quaisquer pré-condições e o fim das sanções ilegais e unilaterais da administração de Trump. Estes parâmetros não são negociáveis.

Nasrallah, por sua vez, em discurso em Beirute no domingo, enfatizou,
"um dos principais resultados do assassinato do general Soleimani e de al-Muhandis são os apelos para a expulsão das forças americanas da região. Tais apelos não haviam sido feitos antes do assassinato. O martírio dos líderes da resistência estabeleceu o caminho para as tropas americanas deixarem o Iraque".

Isso pode ser ilusório, porque o complexo militar-industrial-segurança nunca abandonará voluntariamente um centro importante do Império de Bases.

Mais importante é o facto de que o ambiente pós-Soleimani transcende Soleimani.

O Eixo da Resistência – Teerão-Bagdad-Damasco-Hezbollah – ao invés de entrar em colapso, continuará a ser reforçado.

Internamente, e ainda sob sanções de "pressão máxima", Irão e Rússia cooperarão para produzir vacinas Covid-19 e o Instituto Pasteur do Irão co-produzirá uma vacina com uma empresa cubana.

O Irão está a consolidar-se cada vez mais como o nó principal das Novas Rota da Seda no sudoeste da Ásia: a parceria estratégica Irão-China é constantemente revitalizada pelos ministros de Negócios Estrangeiros Zarif e Wang Yi – e isso inclui Pequim a turbinar seu investimento geoeconómico em South Pars – o maior campo de gás do planeta.

Irão, Rússia e China estarão envolvidos na reconstrução da Síria – a qual também incluirá, finalmente, um ramal da Nova Rota da Seda: a ferrovia Irão-Iraque-Síria-Mediterrâneo Oriental.

Tudo isso é um processo contínuo e interligado que nenhuns Hellfires são capazes de destruir.

05/Janeiro/2021

[*] Jornalista.


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