Jair Bolsonaro, durante encontro com Paulo Skaf, Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, e empresários. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
por Liszt Vieira
Como a chamada trickle-down economics perdeu credibilidade, um novo modelo tornou-se necessário para sustentar politicamente o regime neoliberal. Esse novo modelo, segundo alguns analistas, teria vindo na forma de neofascismo
O surgimento de grupos de extrema direita em vários países vem contribuindo para o enfraquecimento da democracia, abalada pelas sucessivas crises econômicas que afastam a maioria da população dos benefícios das políticas públicas voltadas sobretudo para as classes de alta renda. Os recursos públicos, em grande parte, são apropriados pelo mercado e transferidos para 1% da população que, em muitos países, Brasil inclusive, se enriqueceu durante o período da pandemia.
Há mais de quarenta anos, a globalização neoliberal começou a remodelar a ordem mundial. Durante esse tempo, sua agenda dizimou os direitos trabalhistas, impôs limites rígidos aos déficits fiscais, deu maciças isenções fiscais e benefícios ao grande capital, sacrificou a produção local em favor dos produtos das multinacionais e privatizou ativos do setor público a preços vis. Mas, como a chamada trickle-down economics (economia do “gotejamento”, segundo a qual a renda concentrada acabaria redistribuída e beneficiaria camadas inferiores) perdeu credibilidade, um novo modelo tornou-se necessário para sustentar politicamente o regime neoliberal. Esse novo modelo, segundo alguns analistas, teria vindo na forma de neofascismo.
A globalização de dominância financeira garante a livre circulação de capitais, que se movem relativamente sem esforço através das fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo, a livre circulação das pessoas é rigorosamente controlada por um aumento acentuado na desigualdade de renda e um constante desprezo pela democracia. Uma vez que o capital, especialmente o financeiro, pode deixar um país em um prazo curto – precipitando uma crise financeira aguda – os governos relutam em perturbar o status quo e adotam políticas exigidas pelo capital financeiro. A soberania do povo é substituída pela soberania das finanças globais e das empresas nacionais associadas.
Esse sacrifício da democracia é geralmente justificado pelas elites políticas e econômicas com base no argumento de que as políticas econômicas neoliberais conduzem a um maior crescimento do PIB – considerado a grande meta de todas as políticas. Mas esse crescimento, quando ocorreu, quase não beneficiou o grosso da população e na verdade acarretou muito mais o aumento da desigualdade de renda do que na elevação do PIB. Um bom exemplo é a Índia, onde as políticas neoliberais, introduzidas em 1991, levaram a um aumento significativo na desigualdade e na pobreza absoluta, dizimando a agricultura camponesa. Na Índia rural, a proporção de pobres na população total aumentou de 58% em 1993-1994 para 68% em 2011-12, e nas regiões urbanas subiu de 57% para 65% no mesmo período.
Por outro lado, os Estados Unidos têm alguns dos piores índices de pobreza no grupo dos países desenvolvidos: quase 40 milhões de habitantes vivem abaixo da linha oficial de pobreza. “A desigualdade de renda aumentou mais nos Estados Unidos do que em qualquer outro país desenvolvido desde 1980”, afirma o último Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (Pnud), de dezembro de 2019. Os Estados Unidos combinam baixa expectativa de vida, alta mortalidade infantil, alta desigualdade de renda, alta pobreza relativa e resultados fracos em educação. O 1% mais rico concentra 35% do total de riquezas do país e a tendência é de agravamento com a pandemia da Covid-19 (BBC News, 30 out. 2020).
No Brasil, segundo Relatório da Riqueza Global de 2021, publicado anualmente pelo Banco Credit Suisse, quase a metade da riqueza do país foi para as mãos do 1% mais rico da população: 49,6%. Em 2019, eles detinham 46,9%. O Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo e possui o pior nível de concentração de renda. Segundo o último relatório do Pnud, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo. O documento, divulgado no fim de 2019, destaca ainda que apenas o Catar tem maior concentração de renda do que o Brasil.
Apesar disso, a narrativa de que o neoliberalismo beneficiaria a todos manteve certa credibilidade até o início dos anos 2000. Mesmo aqueles que foram prejudicados pelo regime neoliberal muitas vezes nutriram a esperança de que o alto crescimento mais cedo ou mais tarde “gotejaria” até eles – uma esperança alimentada incessantemente pela mídia dominada pelas elites. Essa esperança evaporou quando a fase de alto crescimento do capitalismo neoliberal terminou em 2008 com o colapso da bolha imobiliária dos Estados Unidos, dando lugar a uma crise prolongada e estagnação na economia mundial.
O neoliberalismo sofreu um golpe quando o presidente norte-americano Joe Biden propôs investimento estatal na infraestrutura e tecnologia da ordem de US$ 2,3 trilhões, equivalente aproximadamente ao PIB brasileiro. Esse investimento vai diminuir por pressão contrária do Partido Republicano, mas, mesmo assim, recupera a tradição econômica de Roosevelt após a crise de 1929, bem como o importante legado teórico de Keynes.
Na realidade, o neoliberalismo sempre dependeu nos Estados Unidos de um grande apoio do Estado. A economia neoliberal global poderia ter entrado em colapso várias vezes, desde a Grande Depressão, se não fossem as intervenções governamentais maciças, bem como ações do Banco Central para sustentar instituições financeiras e mercados à beira da ruína. As intervenções estatais não apenas resgataram o capitalismo neoliberal durante os períodos de crise, como reforçaram as tendências mais malignas do neoliberalismo.
À medida que a velha doutrina da trickle-down economics perdia sua credibilidade, um novo modelo seria necessário para sustentar politicamente o regime neoliberal. A solução teria vindo na forma de uma aliança entre o capital corporativo globalmente integrado e elementos neofascistas locais. Os melhores exemplos são os governos de Narendra Modi na Índia, Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos.Grupos neofascistas existem na periferia em todas as sociedades modernas, mas eles ocupam o centro do palco apenas com o apoio das grandes corporações que fornecem recursos financeiros e controle sobre a mídia comercial e outros meios de formação de opinião. O neofascismo fala em patriotismo, ataca todos os seus críticos, chamando-os de “antinacionais” e traidores da pátria. Mas vende o patrimônio nacional ao capital estrangeiro a preços baixos. Acusa os adversários de corrupção e manipula a Justiça para condená-los, mesmo sem provas, como foi o caso de Lula no Brasil, impedido de concorrer à eleição presidencial quando era disparado o favorito nas pesquisas. Um caso clássico de lawfare.
Isso cria uma atmosfera generalizada de medo na sociedade, colocando pessoas na prisão sem julgamento, intimidando o Judiciário, revogando direitos constitucionais, amedrontando políticos da oposição, manipulando a mídia, apoiando milícias e gangues de bandidos, utilizando em larga escala fake news nas redes sociais, fazendo acusações falsas contra oponentes, subvertendo a independência das instituições do Estado etc. Em muitos lugares, o neofascismo é auxiliado por uma mídia dócil que ajuda o setor corporativo a atacar os direitos dos trabalhadores conquistados em décadas de luta.
Apesar de todos esses elementos comuns, o neofascismo se distancia do fascismo clássico, pois este último surgiu antes da globalização do capital, trazia mais claramente a marca de sua origem nacional, promoveu desenvolvimento das forças produtivas, estava engajado em intensa rivalidade interimperialista com capitais de outros países avançados. O objetivo fascista era repartir um mundo já dividido em territórios econômicos. O neofascismo de hoje, ao contrário, existe num mundo de finanças globalizadas onde a rivalidade interimperialista é silenciada pelo fenômeno do livre fluxo de capital. Uma vez que o capital globalizado pretende manter o mundo inteiro aberto para seu livre movimento, ele desencoraja a rivalidade interimperialista e a fragmentação do mundo em zonas econômicas rivais.
A Índia é hoje um dos melhores exemplos da relação entre neofascismo e neoliberalismo, cuja prioridade é manter o déficit fiscal sob controle para cumprir o catecismo da globalização financeira. O Governo ofereceu baixo auxílio emergencial às pessoas afetadas pelo lockdown, privatizou empresas do setor público e estimulou a invasão da agricultura camponesa e da pequena produção pelas grandes corporações. O país foi cenário de um trágico aumento nos suicídios de camponeses: mais de 300 mil desde 1991.
A aliança global entre o neoliberalismo e o neofascismo é uma questão complexa que coloca muitas interrogações. Por quanto tempo o neofascismo pode oferecer abrigo a um neoliberalismo em crise? O neofascismo é prejudicado pelo neoliberalismo em um aspecto crucial: é incapaz de acabar com o desemprego em massa. O fascismo clássico garantiu o emprego por meio dos gastos industriais do governo, principalmente em armamentos, financiados por meio de empréstimos, gerando um grande déficit fiscal. O neofascismo contemporâneo, ao contrário, é incapaz de fazer isso pois o aumento dos gastos governamentais, que deveria ser financiado pela tributação dos capitalistas ou por um déficit fiscal, é rejeitado pelos neoliberais.
Esta situação coloca um problema para o controle do poder pelo neofascismo. A incapacidade de aliviar a crise do neoliberalismo pode levar à sua derrota nas eleições (assumindo que não as manipule ou elimine totalmente). Possivelmente, foi o que ocorreu nos Estados Unidos com a derrota de Trump e o que, segundo as pesquisas, tende a ocorrer no Brasil em 2022, se as eleições realmente forem realizadas. Mas, mesmo se o neofascismo perder no curto prazo, ele continuará sendo uma forte alternativa para retornar ao poder se os governos sucessores retomarem a política econômica neoliberal, como tem sido o padrão há algum tempo.
O caso do Brasil é exemplar. O governo vem destruindo a saúde, educação, ciência, cultura, meio ambiente, estimulou o desmatamento e queimada de florestas, contribuindo para o aquecimento global que, segundo o recente Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), de 9 de agosto, poderá chegar a 1,5 grau na próxima década, com intensificação de eventos extremos (secas, inundações, furacões etc.), levando o planeta à beira da catástrofe pela destruição de recursos naturais indispensáveis à sobrevivência da humanidade. Além disso, apoiou a corrupção, negou a pandemia, sabotou a vacina, contribuiu fortemente para os mais de 560 mil mortos por Covid, enfim, vem promovendo uma verdadeira devastação na administração pública. Não caiu porque tem apoio de parte importante do mercado e também dos militares e evangélicos. Mas o apoio do mercado é o grande sustentáculo do governo Bolsonaro, apesar das recentes dissidências. Em retribuição, o presidente Bolsonaro se recusou a apoiar a proposta de taxar as grandes fortunas e heranças, apoia privatizações e as “reformas” neoliberais.
Para quebrar esse ciclo, o mandato que suceder o governo neoliberal não deve retomar simplesmente as velhas políticas neoliberais que geram crescente desigualdade, aumentam a pobreza e o desemprego. Tem de haver uma mudança decisiva em direção a um forte Estado de bem-estar social, garantindo a todos serviços sociais, bens públicos e oferta alta de emprego – precisamente as políticas bloqueadas pela hegemonia das finanças globais.
O financiamento dos serviços sociais básicos pode ser assegurado com um imposto sobre a riqueza e sobre a herança de 1% da população. Um imposto sobre a fortuna ganhou espaço em debates públicos nos Estados Unidos durante e após a campanha eleitoral de Joe Biden, com o endosso de alguns bilionários. Está se fortalecendo em todo o mundo o entendimento de que escapar da atual conjuntura requer um movimento em direção à adoção das medidas do Estado de bem-estar social, negadas durante a ascensão do neoliberalismo. Isso será um desafio, pois as tentativas de tributar os ricos poderão afastar os investidores e alimentar temores de fuga de capitais ou prejudicar entradas financeiras. Os países avançados, os “guardiões” da globalização, podem impor sanções comerciais e intervir de outras formas contra os países que tentarem escapar do neofascismo adotando políticas econômicas em benefício do povo.
O ataque neofascista à democracia é talvez um último esforço por parte do capitalismo neoliberal para se proteger da crise. O caso brasileiro é significativo. O fantasma autoritário volta a assombrar a história do Brasil. Bolsonaro já ameaçou dar um golpe várias vezes e, após a derrota de Trump, assumiu papel importante na coordenação internacional dos grupos de extrema direita de tendência neonazista. Para esses grupos, Trump vai vencer a próxima eleição nos Estados Unidos. Até lá, a família Bolsonaro visita regimes de extrema direita como a Hungria, dialoga com lideranças fascistas como o líder italiano da Liga Matteo Salvini, e elogia o ditador das Filipinas, Rodrigo Duterte. A visita de Bolsonaro ao governo de direita da Polônia foi adiada por causa da pandemia. Ao que tudo indica, o presidente dá prioridade a essa função de articular a extrema direita internacional neofascista. Chegou até a receber oficialmente a deputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema direita Alternativa para Alemanha (AfD), que abriga neonazistas. Com isso, perdeu o apoio dos judeus conservadores, que sempre o aplaudiram. Mas a articulação com a extrema direita internacional parece ser prioritária para Bolsonaro, pois corresponde à sua ideologia neonazista. Para cumprir essa missão, ele não hesita em prejudicar até mesmo seus interesses eleitorais.
Quanto ao mercado, parece dividido em relação ao apoio entusiástico que antes dava a Bolsonaro. Em 21 de março, centenas de economistas neoliberais, empresários e banqueiros divulgaram carta aberta criticando a “negligência” do presidente e exigindo urgência na vacinação e políticas públicas com base na ciência. Em 7 de abril, dezenas de empresários, parte da elite do PIB brasileiro, ovacionaram Bolsonaro num jantar em São Paulo. Entre eles, destacamos os seguintes: André Esteves, CEO do Banco BTG / Paulo Skaf, Presidente da Fiesp / Claudio Lottenberg, Presidente da Confederação Israelita do Brasil e Presidente do Conselho do Hospital Albert Einstein / David Safra, Proprietário e CEO do Banco Safra / Luiz Carlos Trabuco, Presidente do Banco Bradesco / Flavio Rocha, Dono das lojas Riachuelo / José Roberto Maciel, CEO do SBT, e diversos outros empresários da área de comunicação, indústria, farmacêutica, construção civil etc.
Por outro lado, em 5de agosto, após ataques de Bolsonaro e ameaças de não realizar eleições, empresários e intelectuais lançaram manifesto de apoio à democracia e ao processo eleitoral. Assinam o documento, entre outros, os empresários Luiza Trajano (Magazine Luiza), Guilherme Leal (Natura), Roberto Setúbal (Itaú), Fabio Barbosa, ex-presidente do Santander e do Grupo Abril, José Olympio Pereira, CEO do Credit Suisse no Brasil. Assim, enquanto alguns empresários, temerosos do populismo de direita, apoiam a democracia, outros parecem dispostos a apoiar uma ditadura com Bolsonaro.
Em toda parte, entre democracia e autoritarismo, o neoliberalismo está numa encruzilhada. Os Estados Unidos estão visivelmente assustados com o avanço do capitalismo de Estado na China, potência emergente. No Ocidente, para escapar da armadilha autoritária dessa aliança neoliberalismo-neofascismo, a opinião pública deve se mobilizar de forma decisiva contra o neoliberalismo e conquistar o apoio dos movimentos democráticos em todo o mundo. Ao desmantelar na teoria e na prática o dogma neoliberal, o neofascismo se enfraquece e poderá se desintegrar pela perda de sua principal base de apoio.
Assim, não se pode afirmar que o neofascismo é o último refúgio do neoliberalismo. Vários teóricos marxistas já anunciaram no passado, mais de uma vez, a “crise final” do capitalismo. Mas não há dúvida de que capitalismo pode se servir de regimes liberais ou autoritários em função de seus interesses. E a crise atual da democracia liberal no mundo ocidental aponta para o neofascismo, em alguns países, como uma possível, talvez provável, nova roupagem do neoliberalismo.
Liszt Vieira é professor universitário, sociólogo, e político brasileiro ligado ao movimento ambientalista. É formado em direito e estudante de ciências sociais, quando da edição do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro de 1968.
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