Investigação rastreou US$ 2,3 bi do BNDES concedidos a grupos que adquirem gado de fazendas envolvidas com desmatamento e trabalho escravo. Itaú, Bradesco e BB, na ponta dos empréstimos, repassam dinheiro sem certificar conformidades
Por Naira Hofmeister, Fernanda Wenzel e Pedro Papini, na Repórter Brasil
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está financiando frigoríficos que abatem animais criados em fazendas desmatadas ilegalmente, embargadas pelo Ibama, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas e que utilizam mão de obra escrava em suas atividades. É o que revela um levantamento exclusivo da Repórter Brasil, que analisou empréstimos no valor total de R$ 46 milhões feitos a 25 pequenos abatedouros localizados na Amazônia, onde 90% de toda a mata derrubada vira pasto para boi.
Desde 2009, o banco possui uma norma interna que veta empréstimos a empresas fabricantes de carne que tenham entre seus fornecedores fazendas com irregularidades socioambientais. Mas o dispositivo que determina que contratos sejam rompidos em caso de descumprimento não foi acionado nas situações encontradas pela reportagem.
O BNDES, destinou – no mínimo – cerca 2,3 bilhões de dólares em financiamentos a empresas do setor da pecuária ligadas diretamente ao desmatamento no Brasil, de acordo com os dados levantados pela coalizão Florestas e Finanças. Foto: (Lilo Clareto/Repórter Brasil)
“Para obterem apoio do BNDES, os frigoríficos só poderão comprar gado de fornecedores que não constem na relação de áreas embargadas do Ibama. Além disso, não poderão constar da “lista suja” do Ministério do Trabalho”, explicou uma nota à imprensa publicada no site do banco em julho de 2009.
Apesar disso, nos anos de 2012, 2016 e 2017, os frigoríficos Masterboi, São Franscisco, Ribeiro Soares, Fortefrigo, Mercúrio (Pará) e Carnes Boi Branco (Mato Grosso), todos apoiados pelo BNDES, abateram pelo menos 11.513 bois provenientes de fazendas embargadas pelo Ibama e 1.479 animais criados em propriedades que integram a “lista suja” do trabalho escravo no Brasil. Um total de 25.158 cabeças de gado vieram de áreas que não tinham sequer licença ambiental para operar, outra conduta vetada pela resolução 1854/2009.
As irregularidades foram constatadas pelo Ministério Público Federal (MPF) em auditorias feitas nas compras dos frigoríficos tanto em investigações próprias (no caso do Boi Branco) como em decorrência dos Termos de Ajustamento de Conduta (os chamados TACs da Carne) que checam a conformidade socioambiental das operações. Em todos os casos, os abates ilegais vieram a público depois de o BNDES assinar os contratos com as empresas, que, pela resolução 1854/2009, são obrigadas a entregar declarações dizendo que não compram de produtores irregulares. Informações falsas devem ser punidas “com vencimento antecipado do contrato, sem prejuízo das sanções legais cabíveis”.
No caso do frigorífico Masterboi, os contratos somavam R$ 10,5 milhões no momento em que os problemas com fornecedores foram revelados; Mercúrio e Ribeiro Soares, tinham empréstimos de R$ 4 milhões cada; Fortefrigo mantinha financiamento de R$ 1 milhão; e São Francisco (Sampaio), de R$ 100 mil. O contrato do Carnes Boi Branco, no valor de R$ 72 mil, foi assinado um mês antes de a empresa ser processada pelo MPF por abates ilegais em suas plantas.
O Portal da Transparência do BNDES demonstra que parte desses financiamentos seguem ativos — o que indica que a penalidade prevista pela resolução 1854/2009 não foi aplicada.
Após a publicação da reportagem, o BNDES informou, em nota, que “reuniu um grupo técnico interno para analisar os casos citados” e que, se comprovadas as irregularidades, adotará “as medidas contratuais cabíveis”. Originalmente, o banco não havia se manifestado, apesar da insistência da reportagem. A Masterboi também enviou nota apenas depois de a matéria ir ao ar, assegurando que cumpre seus compromissos socioambientais e que as irregularidades apontadas foram problemas pontuais. A mesma justificativa foi dada pelos frigoríficos Mercúrio, Ribeiro Soares e Carnes Boi Branco. Leia aqui a íntegra dos posicionamentos.
Fortefrigo e São Francisco (Sampaio) não se manifestaram, apesar da insistência da Repórter Brasil. O Grupo Boi Branco, do Pará, entrou em contato com a reportagem para esclarecer que não tem relação com o frigorífico Carnes Boi Branco, do Mato Grosso, investigado neste trabalho.
Os dados utilizados nesta reportagem foram obtidos pela coalizão Florestas e Finanças, que monitora o apoio de bancos e instituições de crédito a atividades potencialmente desmatadoras. O grupo rastreou um total de US$ 2,3 bilhões em financiamentos do BNDES destinados à pecuária no Brasil que colocam em risco o meio ambiente.
No início de outubro, a divulgação de uma nova rodada de auditorias do MPF no Pará — que analisou as compras de janeiro de 2018 a junho de 2019 — mostrou que, sem punição, as irregularidades seguem acontecendo. Entre as 16 empresas avaliadas, os frigoríficos Fortefrigo e São Francisco (Sampaio) ficaram no quarto e quinto lugares no ranking de inconformidades, com 18,7% e 15,2% das compras com algum problema socioambiental, respectivamente. A JBS, maior produtora mundial de proteína animal, lidera a lista de infrações, com problemas em 32% de seus abates. Por outro lado, Masterboi e Mercúrio obtiveram 100% de seus abates considerados regulares pelo MPF.
Itaú, BB e Bradesco deveriam fiscalizar
Os empréstimos concedidos aos frigoríficos com irregularidades foram intermediados por instituições financeiras parceiras do BNDES: Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco. Segundo a resolução 1854/2009, nesta modalidade de financiamento — chamada indireta automática — são os intermediários que devem “exigir declarações” das empresas garantindo que possuem um sistema de monitoramento de seus fornecedores de gado e que eles seguem os padrões exigidos pelo banco de desenvolvimento. Mas, nas auditorias e investigações do MPF, ficou evidente que o controle é falho.
Entre os vários empréstimos do BNDES obtidos pelo Masterboi por meio do Itaú Unibanco, pelo menos um se manteve ativo após a constatação dos problemas. O abatedouro Ribeiro Soares mantém até hoje dois contratos via Banco do Brasil, mesmo após ter sido flagrado em irregularidades. Ambas as instituições disseram que não comentam casos específicos em respeito ao sigilo empresarial, mas listaram métodos de checagem da conformidade socioambiental que adotam antes da concessão de empréstimos. Os esclarecimentos podem ser lidos na íntegra neste link.
Já o Bradesco mantém em sua carteira sete empréstimos com recursos do BNDES ao Mercúrio e um ao frigorífico São Francisco (Sampaio), apesar da constatação das inconformidades ambientais. Também foi o Bradesco quem intermediou o contrato com o Carnes Boi Branco, cujo vencimento estava previsto para 2018. Procurado, o banco disse que não iria comentar.
“Itaú Unibanco e Bradesco fazem parte do grupo dos três maiores bancos privados do Brasil que assinaram um pacto para promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Se espera que estejam alinhados às diretrizes de empréstimos para a pecuária”, observa Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Risco ignorado
Os 25 pequenos frigoríficos investigados pela Repórter Brasil foram selecionados por colocarem em risco 8 milhões de hectares da Amazônia. O cálculo, publicado em um estudo do Imazon de 2017, considera que entre seus potenciais fornecedores há muitas fazendas em áreas desmatadas, com embargo já declarado pelo Ibama, ou cujas condições do entorno sinalizam que a devastação está próxima.
É uma área do tamanho da Áustria e mais do que o dobro da área ameaçada pelas atividades da JBS, a maior fabricante de carne do planeta e líder do ranking de exposição a desmatamento calculado pelo instituto de pesquisa.
Gado na Amazônia, fazenda na região do norte do Mato Grosso. Foto: (Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Daí a importância de monitorar os fornecedores. “A pecuária ilegal é a maior responsável pelo desmatamento na Amazônia. Se não houver controle da origem da matéria-prima, há grande risco de violação da legislação socioambiental”, recorda o procurador da República Ricardo Negrini, que atua no Pará, onde foram assinados os primeiros TACs da Carne, em 2009.
Embora o BNDES exija que os frigoríficos tenham sistemas de monitoramento para checar a origem dos animais abatidos, 10 empresas que receberam um total de R$ 13,2 milhões não assinaram o TAC da Carne com o MPF. Segundo o pesquisador do Imazon, esse é um forte indicativo de que esses abatedouros não possuem tais sistemas. “Em geral, quem não assina o TAC, não monitora rebanhos”, observa.
Mesmo as maiores indústrias da carne do Brasil, JBS, Marfrig e Minerva, só desenvolveram seus sistemas após a assinatura do acordo. Corroborando essa desconfiança, o MPF pediu ao Ibama que apertasse a fiscalização em 7 dos 10 frigoríficos sem TAC apoiados pelo BNDES.
“As empresas deveriam demonstrar um nível de compliance e de organização mínimos para que houvesse segurança da instituição financeira em conceder esse crédito. São frigoríficos que estão assumindo bastante risco ambiental, mas não se comprometem com acordos setoriais e mesmo assim conseguem recursos públicos”, lamenta Lisandro Inakake, que coordena o projeto Boi na Linha, da ONG Imaflora, uma ferramenta que busca maior transparência no processo de compra de gado para que o consumidor possa verificar a origem de suas compras.
Desmatamento sem embargo
Mesmo que o dispositivo de vencimento antecipado dos contratos com frigoríficos que compram de áreas ilegais funcionasse, boa parte dos problemas não seria enquadrada pela resolução 1854/2009.
Segundo as auditorias do MPF, os frigoríficos Masterboi, Mercúrio, São Francisco (Sampaio), Ribeiro Soares e Fortefrigo compraram 5.441 cabeças de gado criadas em terras indígenas e 62.845 animais em fazendas desmatadas ilegalmente. Mas para o BNDES, esses fornecedores só devem ser excluídos da cadeia produtiva se tiverem condenação em todas as instâncias judiciais por esses crimes.
Financiamentos do BNDES feitos através de bancos comerciais, como os analisados nesta reportagem, também fecham os olhos para as possíveis irregularidades dos fornecedores indiretos — aqueles que vendem animais para as fazendas que vão negociar com as empresas.
Por isso, as multas de quase R$ 2 milhões impostas pelo Ibama ao Mercúrio pela compra de 3.767 bois de fazendas embargadas não seriam motivo suficiente para ensejar uma punição por parte do banco, já que os animais entraram na linha de produção do frigorífico através de fornecedores indiretos. Também passou em branco o fato de que a empresa tinha entre seus fornecedores indiretos pecuaristas que criavam gado na Terra Indigena Apyterewa, no Pará, e fazendeiros que se utilizavam de mão de obra escrava, como revelou a Repórter Brasil em 2020 e 2021.
A resolução 1854/2009 determina que esse elo da cadeia de fornecimento só deve ser monitorado quando os empréstimos são assinados diretamente com o BNDES ou quando o banco de desenvolvimento se torna sócio das empresas, como acontece com a JBS. Mesmo essa parte da regra, no entanto, nunca saiu do papel.
“É preciso que as políticas de sustentabilidade não fiquem só no papel, mas que sejam realmente aplicadas, com transparência e prestação de contas à sociedade”, conclui o procurador Ricardo Negrini.
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