segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Julian Assange: Um sequestro judicial

"Vamos olhar para nós mesmos, se tivermos coragem, para ver o que está a acontecer-nos". Jean-Paul Sartre

John Pilger [*]
Os homens das perucas.

As palavras de Sartre deveriam ecoar nas nossas mentes após a grotesca decisão do Supremo Tribunal Britânico de extraditar Julian Assange para os Estados Unidos, onde enfrentará "uma morte em vida". Este é o seu castigo pelo crime do jornalismo autêntico, preciso, corajoso e vital.

Aborto da justiça é um termo inadequado nestas circunstâncias. Os cortesãos com perucas do ancien regime britânico levaram apenas nove minutos, na sexta-feira, para defender um recurso americano contra a aceitação por um juiz do Tribunal Distrital, em Janeiro, de uma catarata de provas de que o inferno na terra esperava Assange do outro lado do Atlântico:   um inferno no qual, como previam peritos, ele encontraria um meio de tomar a sua própria vida.

Numerosos testemunhos de pessoas distintas – que examinaram e estudaram Julian e diagnosticaram o seu autismo e a sua Síndrome de Asperger e revelaram que ele já havia entrado numa tendência de se matar no presídio de Belmarsh, o próprio inferno da Grã-Bretanha – foram ignorados.

Fotos feitas para a CIA no interior da embaixada equatoriana.

A recente confissão de um informador crucial do FBI e de um fantoche da acusação, um burlão e mentiroso em série, de que havia falsificado as suas provas contra Julian foi ignorada. A revelação de que a empresa de segurança espanhola na embaixada do Equador em Londres, onde Julian havia obtido refúgio político, era uma fachada da CIA que espiava os advogados, médicos e confidentes de Julian (incluindo eu próprio) – também isso foi ignorado.

A recente divulgação jornalística, repetida de modo claro pelo advogado de defesa perante o Supremo Tribunal em Outubro, de que o CIA havia planeado assassinar Julian em Londres – mesmo isso foi ignorado.

Cada um destes "assuntos", como os advogados gostam de dizer, era por si só suficiente para um juiz que defendesse a lei deitar fora o vergonhoso caso montado contra Assange por um corrupto Departamento de Justiça dos EUA e os seus pistoleiros na Grã-Bretanha. O estado de espírito de Julian, berrou James Lewis, QC, o homem americano no [tribunal] Old Bailey no ano passado, não era mais do que “fingimento” ("malingering") – um termo vitoriano arcaico usado para negar a própria existência de doença mental.

Para Lewis, quase todas as testemunhas de defesa, incluindo as que descreveram a partir da sua profunda experiência e conhecimento, o bárbaro sistema prisional americano, deviam ser interrompidas, abusadas, desacreditadas. Sentado atrás dele, passando-lhe notas, estava o seu maestro americano: jovem, de cabelo curto, claramente um homem da Ivy League em ascensão.

Nove minutos de infâmia

Cartoon de Latuff.

Nos seus nove minutos de rejeição do destino do jornalista Assange, dois dos mais antigos juízes da Grã-Bretanha, incluindo o Lord Chief Justice Ian Burnett (um amigo de longa data de Sir Alan Duncan, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Boris Johnson que organizou o brutal rapto policial de Assange da embaixada do Equador) referiram-se, no seu julgamento sumário, não a uma longa descrição de verdades que haviam lutado para serem ouvidas num tribunal inferior presidido por uma juíza estranhamente hostil, Vanessa Baraitser.

O seu comportamento insultuoso para com um Assange claramente atingido, a lutar em meio de um nevoeiro de medicamentos dispensados na prisão para recordar o seu próprio nome, é inesquecível.

O verdadeiramente chocante na sexta-feira foi que os juízes do Supremo Tribunal – Lord Burnett e Lord Justice Timothy Holroyde, que leram as suas palavras – não mostraram hesitação em enviar Julian para a morte, vivo ou não. Não apresentaram qualquer atenuação, nenhuma sugestão de que se haviam angustiado por causa de legalidades ou mesmo da moralidade básica.

A sua decisão a favor, se não em nome dos Estados Unidos, está baseida directamente em "garantias" transparentemente fraudulentas rabiscadas em conjunto pela administração Biden quando em Janeiro parecia que a justiça poderia prevalecer.

Estas "garantias" são de que, uma vez sob custódia americana, Assange não será sujeito ao SAMS orwelliano – Special Administrative Measures – o que o tornaria uma não pessoa; que não será aprisionada no ADX Florence, uma prisão no Colorado há muito condenada por juristas e grupos de direitos humanos como ilegal: "um buraco de punição e desaparecimento"; que ele pode ser transferido para uma prisão australiana para aí terminar a sua sentença.

O absurdo reside no que os juízes deixaram de dizer. Ao apresentar as suas "garantias", os EUA reservam-se o direito de não garantir nada caso Assange faça algo que desagrade aos seus carcereiros. Por outras palavras, como a assinalou a Amnisty, reserva-se o direito de quebrar qualquer promessa.

Há exemplos abundantes dos EUA a fazerem exactamente isso. Como o jornalista de investigação Richard Medhurst revelou no mês passado, David Mendoza Herrarte foi extraditado da Espanha para os EUA com base na "promessa" de que cumpriria a sua sentença em Espanha. Os tribunais espanhóis consideraram isto como uma condição vinculativa.

"Documentos classificados revelam as garantias diplomáticas dadas pela Embaixada dos EUA em Madrid e como os EUA violaram as condições da extradição", escreveu Medhurst. "Mendoza passou seis anos nos Estados Unidos a tentar regressar a Espanha. Documentos do tribunal mostram que os Estados Unidos negaram múltiplas vezes o seu pedido de transferência".

Os juízes do Supremo Tribunal, que tinham conhecimento do caso Mendoza e da habitual duplicidade de Washington, descrevem as "garantias" – de não ser bestial para Julian Assange – como um "compromisso solene oferecido por um governo a outro".

A via imperial

Este artigo estender-se-ia até ao infinito se eu enumerasse as vezes em que os Estados Unidos violaram "compromissos solenes" a governos, tais como tratados que são sumariamente rasgados e guerras civis que são alimentadas. É a forma como Washington governou o mundo, e antes dele a Grã-Bretanha: o caminho do poder imperial, como a história nos ensina.

Foi esta mentira e duplicidade institucional que Julian Assange trouxe à luz do dia e, ao fazê-lo, desempenhou talvez o maior serviço público de qualquer jornalista nos tempos modernos.

O próprio Julian é prisioneiro de governos mentirosos há mais de uma década. Durante estes longos anos, sentei-me em muitos tribunais enquanto os Estados Unidos procuravam manipular a lei para silenciar a ele e à WikiLeaks.

Isto alcançou um momento bizarro quando, na pequena embaixada equatoriana, ele e eu fomos obrigados a achatar-nos contra uma parede, cada um com um bloco de notas no qual conversamos, tendo o cuidado de proteger o que havíamos escrito um ao outro das omnipresentes câmaras de espionagem – instaladas, como sabemos agora, por um representante da CIA, a organização criminosa mais duradoura do mundo.

Vamos olhar para nós mesmos

Isto leva-me à citação no topo deste artigo:   "Vamos olhar para nós próprios, se tivermos coragem, para ver o que está a acontecer-nos".

Jean-Paul Sartre escreveu isto no seu prefácio a Os condenados da terra, de Franz Fannon, o estudo clássico de como povos colonizados, seduzidos, coagidos e, sim, covardes fazem o jogo dos poderosos.

Quem entre nós está preparado para se erguer ao invés de permanecer como mero expectador de uma farsa épica, como o sequestro judicial de Julian Assange? O que está em causa é tanto a vida de um homem corajoso como, se permanecermos em silêncio, a conquista dos nossos intelectos e o sentido do certo e do errado:   na verdade, da nossa própria humanidade.

11/Dezembro/2021

Ver também:
  • The fight to free Julian Assange is not over. We must step it up (O combate para libertar Julian Assange não está acabado. Devemos intensificá-lo.)
  • [*] @johnpilger. O seu filme Breaking the Silence, sobre a "guerra ao terror", pode ser assistido aqui.

    O original encontra-se em consortiumnews.com/2021/12/11/john-pilger-a-judicial-kidnapping/

    Este artigo encontra-se em resistir.info

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