sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Todos permanecemos reféns do complexo militar-industrial

Créditos da foto: ''Os gigantes fabricantes de armas do complexo militar-industrial , imensamente ricos e politicamente poderosos, não querem realmente a guerra. O que eles querem é a ameaça de guerra.'' (Zeferli / iStock via Getty Images)

Por John Scales Avery
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Movimentos provocativos dos Estados Unidos contra a Rússia e a China podem evoluir para uma guerra nuclear

Nossos “Departamentos de Defesa” realmente nos defendem? Claro que não! Mesmo seus nomes são é uma mentira. O complexo industrial-militar se vende alegando defender civis. Com esta alegação, justifica orçamentos vastos e que incapacitam o Estado; mas sua argumentação é uma fraude. Para o complexo militar-industrial, o único objetivo é dinheiro e poder. Civis como nós são apenas reféns. Nós somos descartáveis. Somos peões no jogo do poder, no jogo do dinheiro.

Nações que possuem armas nucleares ameaçam-se umas as outras com “Destruição Mutuamente Assegurada”, que forma uma sigla [em inglês] muito apropriada MAD [louco]. O que é que isso quer dizer? Isso significa que os civis estão sendo protegidos? Ora essa. Em vez disso, eles são ameaçados de destruição completa. Os civis aqui fazem o papel de reféns nos jogos de poder de seus líderes.

Uma guerra termonuclear hoje não seria apenas genocida, mas também onicida. Mataria pessoas de todas as idades, bebês, crianças, jovens, mães, pais e avós, sem qualquer consideração sobre culpa ou inocência. Tal guerra seria a derradeira catástrofe ecológica, destruindo não apenas a civilização humana, mas também grande parte da biosfera.

Há muita preocupação hoje com a mudança climática, mas uma catástrofe ecológica de igual ou maior magnitude pode ser produzida por uma guerra nuclear. Pode-se ter uma pequena ideia do que isso seria pensando na contaminação radioativa que tornou uma área perto de Chernobyl, com metade do tamanho da Itália, permanentemente inabitável. O desastre de Fukushima também nos lembra os perigosos efeitos a longo prazo da radioatividade.

O teste de uma bomba de hidrogênio no Pacífico, meio século atrás, continua a causar, hoje, câncer e defeitos congênitos nas Ilhas Marshall. Isso também pode nos dar uma pequena ideia dos efeitos ambientais de uma guerra nuclear. Mas a radioatividade produzida por uma guerra nuclear seria incomparavelmente maior.

Em 1954, os Estados Unidos testaram uma bomba de hidrogênio em Bikini. A bomba era 1.300 vezes mais poderosa do que as bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki. A precipitação de partículas radioativas contaminou a ilha de Rongelap, uma das Ilhas Marshall, a 120 quilômetros de Bikini. Os ilhéus sofreram doenças causadas pela radiação e muitos morreram de câncer. Ainda hoje, mais de meio século depois, tanto as pessoas quanto os animais em Rongelap e outras ilhas próximas sofrem de defeitos congênitos. Os defeitos mais comuns são os bebês nascidos sem ossos e com a pele transparente. Seus cérebros e corações batendo podem ser vistos. Os bebês geralmente vivem um ou dois dias antes de parar de respirar.

Os efeitos ambientais de uma guerra nuclear seriam catastróficos. Uma guerra travada com bombas de hidrogênio produziria uma contaminação radioativa do tipo que já experimentamos nas áreas ao redor de Chernobyl e Fukushima e nas Ilhas Marshall, mas em escala extremamente ampliada. Devemos lembrar que o poder explosivo total das armas nucleares no mundo hoje é 500.000 vezes maior que o poder das bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki. A ameaça atual é que uma guerra nuclear levaria ao colapso completo da civilização humana.

Além de espalhar radioatividade mortal em todo o mundo, uma guerra nuclear infligiria danos catastróficos à agricultura global. Intensos e destrutivos incêndios nas cidades produziriam muitos milhões de toneladas de fumaça preta, espessa e radioativa. A fumaça subiria para a estratosfera, onde se espalharia pela Terra e permaneceria por uma década. O frio prolongado, a diminuição da luz solar e das chuvas e o aumento maciço da luz ultravioleta prejudicial encurtariam ou eliminariam as estações de crescimento, produzindo uma fome nuclear. Mesmo uma pequena guerra nuclear poderia colocar em risco a vida de um bilhão de pessoas que hoje estão cronicamente subnutridas. Uma guerra em grande escala travada com bombas de hidrogênio significaria que a maioria dos humanos morreria de fome. Muitas espécies animais e vegetais também estariam ameaçadas de extinção.

Incidentes em que o desastre global é evitado por um triz estão ocorrendo constantemente. Por exemplo, na noite de 26 de setembro de 1983, o tenente-coronel Stanislav Petrov, um jovem engenheiro de sistemas, estava de plantão em um centro de vigilância perto de Moscou. De repente, a tela na frente dele ficou vermelha brilhante. Um alarme disparou. Seu enorme som penetrante encheu a sala. Seguiu-se um segundo alarme, e depois um terceiro, quarto e quinto, até que o ruído ficou ensurdecedor. O computador mostrava que os norte-americanos haviam lançado um ataque contra a Rússia. As ordens de Petrov eram passar as informações pela cadeia de comando para o secretário-geral Yuri Andropov. Em poucos minutos, um contra-ataque nuclear seria lançado. No entanto, devido a certas características inconsistentes do alarme, Petrov desobedeceu às ordens e relatou como um erro do sistema, que de fato foi o que ocorreu. A maioria de nós provavelmente deve nossas vidas à sua decisão corajosa e fria e seu conhecimento de sistemas. A curta distância que estivemos de uma tragédia é agravada pelo fato de Petrov estar de serviço apenas por causa da doença de outro oficial com menos conhecimento de softwares, que teria entendido o alarme como real.

Eventos nos quais escapamos por pouco, como esse, nos mostram claramente que, a longo prazo, a combinação da ciência da era espacial com a política da idade da pedra nos destruirá. Precisamos urgentemente de novas estruturas políticas e nova ética para combinar com nossa tecnologia avançada.

Recentemente, os Estados Unidos fizeram movimentos provocativos que nos expõem, seriamente, ao risco de uma guerra com a Rússia, que por sua vez pode evoluir para uma guerra nuclear. Isso inclui o envio de armamentos e conselheiros militares para a Ucrânia e exercícios da OTAN na fronteira russa.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos estão fazendo movimentos agressivos na tentativa de “conter a China”.

Assim, os detentores do poder de Washington estão ameaçando iniciar uma guerra tanto com a Rússia quanto com a China. O efeito dessas ações, colossalmente equivocadas por parte dos EUA, foi unir firmemente a China e a Rússia. De fato, os países do BRICS, com seus vastos recursos, estão deixando de usar o dólar como moeda de reserva para o comércio internacional. O efeito provável será o colapso da já tensa economia dos EUA e, como consequência, a queda do Império dos EUA.

Qual pode ser o motivo dessas ações que parecem beirar a insanidade? Uma razão pode ser encontrada no devaneio de poder do “Projeto para um Novo Século Norte-Americano”, em que um dos membros era o subsecretário de Defesa para Política dos EUA, Paul Wolfowitz.

Sua doutrina afirma:“Nosso objetivo número um deve ser a prevenção contra o ressurgimento de um novo rival, seja no território da antiga União Soviética, seja em outros territórios (China), que representem ameaças tão fortes quanto representou a antiga União Soviética. Essa é uma consideração dominante subjacente à nova estratégia de defesa regional e requer nosso esforço no sentido de evitar que qualquer potência hostil domine determinada região e tenha sob controle consolidado o acesso a recursos que possam representar a geração de um poder global.”

Em outras palavras, a Doutrina Wolfowitz é uma declaração de que os Estados Unidos pretendem controlar o mundo inteiro por meio do poder militar. Nenhum reflexão é orientada para a proteção das populações civis, seja nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Os civis são meros reféns no jogo do poder.

O jogo do dinheiro também é importante. Uma grande força motriz por trás do militarismo é o enorme rio de dinheiro que compra os votos dos políticos e a propaganda da grande mídia. Entorpecidos pela propaganda, os cidadãos permitem que os políticos votem favoravelmente a orçamentos militares obscenamente inchados, que enriquecem ainda mais os oligarcas corporativos, e o fluxo circular continua.

Os fabricante gigantescos de armas do complexo militar-industrial, imensamente ricos e politicamente poderosos, não querem realmente a guerra. O que eles querem é a ameaça de guerra. Enquanto mantiverem-se as tensões, enquanto houver ameaça de guerra, o complexo militar-industrial receberá o dinheiro que deseja, e os políticos e jornalistas receberão seu dinheiro sangrento. A segurança dos civis não desempenha nenhum papel no jogo do dinheiro. Somos apenas reféns.

Existe o perigo de que nosso mundo, com toda a beleza e valor que contém, seja destruído por esse jogo cínico de poder e dinheiro, no qual os civis são reféns do militarismo.

Deixaremos que isso aconteça?

* * *

Uma versão deste artigo apareceu originalmente no Transcend Media Service, em 24 de janeiro de 2022.

John Scales Avery, Ph.D., que fez parte de um grupo que dividiu o Prêmio Nobel da Paz de 1995 por seu trabalho na organização das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais, é membro da Rede TRANSCEND e Professor Associado Emérito do HC Ørsted Institute, Universidade de Copenhague, Dinamarca. Ele é presidente do Danish National Pugwash Group e da Danish Peace Academy e recebeu seu treinamento em física teórica e química teórica no MIT, na Universidade de Chicago e na Universidade de Londres. É autor de vários livros e artigos sobre temas científicos e sobre questões sociais mais amplas. Seus livros mais recentes são Information Theory and Evolution [Teoria e Evolução da Informação] e Civilization’s Crisis in the 21st Century [Crise da Civilização no Século XXI] (pdf).

*Publicado por Common Dreams | Traduzido por César Locatelli

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