terça-feira, 24 de maio de 2022

AGROTÓXICOS CONTRA OS POVOS - O Cerrado como zona de sacrifício imposta pelo agronegócio


por Raquel Maria Rigotto
https://diplomatique.org.br/

O vasto e rico Cerrado, ocupado há pelo menos 11 mil anos por povos originários, enriquecido a partir do século XVII com o povo negro resistindo à escravização, berço da fecunda sociodiversidade de comunidades tradicionais que se fizeram em estreita relação com os diferentes ecossistemas, o bioma teve suas fronteiras arregaçadas pelo próprio Estado brasileiro nos últimos 50 anos, para abrir as portas aos extrativismos que se renovam a partir da segunda metade do século XX.

“Nós, como comunidade, crianças, idosos, sofremos muito as consequências dos agrotóxicos: diarreia, dor de cabeça, dor de estômago, fraqueza, coceira na pele, coceira no olho”. É assim que Eryleide Domingues, jovem Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, nos fala da opressora presença dos agrotóxicos no dia-a-dia de sua comunidade. Estes são sintomas que também os livros de toxicologia, de clínica e de emergência médica, assim como as pesquisas, descrevem quando da intoxicação aguda pelos venenos. Mais que um agravo, uma violação sistemática e contínua do direito à vida e à saúde, imposto pelas empresas do agronegócio que cercam a terra que hoje este povo ocupa, numa trajetória contínua e violenta de desterritorialização.

Outros depoimentos dolorosos como este foram prestados diante do júri do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado na audiência sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade realizada em 15 e 16 de março de 2022. Jovecino Pereira expressa a “opressão e a derrota pela enxurrada de veneno vindo de cima da chapada” e atingindo as veredas que sustentam a vida na comunidade de Chupé, no Piauí. É também do monocultivo de soja que vêm os agrotóxicos pulverizados por avião sobre o povo Akroá Gamella, no Vão do Vico, no mesmo estado.

Olhando a natureza com olhos muito distintos daqueles da cultura ocidental branca moderna, eles sentem também pelas plantas “que respiram ar poluído”, pelas aves que estão sumindo, pelos peixes e tracajás que aparecem intoxicados e mortos no entorno das lavouras. Lamentam que os alimentos que cultivam, fonte de sua soberania alimentar, não conseguem crescer, porque “tem os insetos que vem na soja e prejudicam as nossas roças. Nós plantamos feijão, nós plantamos a abóbora… a mosca branca vem e mata tudo”[1].

Estes não são casos isolados, é importante compreender a escala do conflito. O vasto e rico Cerrado, ocupado há pelo menos 11 mil anos por povos originários, enriquecido a partir do século XVII com o povo negro resistindo à escravização, berço da fecunda sociodiversidade de comunidades tradicionais que se fizeram em estreita relação com os diferentes ecossistemas, o bioma teve suas fronteiras arregaçadas pelo próprio Estado brasileiro nos últimos 50 anos, para abrir as portas aos extrativismos que se renovam a partir da segunda metade do século XX.

Os resultados destas políticas coloniais e racistas de des-envolvimento, que se impõem como se ali fosse um vazio demográfico, fizeram do Cerrado uma verdadeira zona de sacrifício no país: 46.889.008 hectares do bioma já estavam desmatados e ocupados para a produção de soja, milho, cana-de-açúcar e algodão em 2018 – concentrando 75% da área plantada com estas commodities no Brasil -, além das extensas áreas destinadas ao eucalipto, arroz e frutas. A isto se somam os 63.847.127 hectares de pastagens, nos quais se encontravam 117.199.138 cabeças de gado, representando 54,9% de todo rebanho bovino no Brasil[2], com severas implicações também sobre as emissões de gases de efeito estufa por este sistema agroalimentar hegemônico.

Modelo produtivo do agronegócio

O modelo produtivo do agronegócio, baseado na modernização conservadora da agricultura e focado na produtividade a qualquer custo, envolve diferentes formas de desterritorialização – da grilagem à financeirização; o desmatamento, que já atinge mais da metade do bioma, e a consequente ruptura das complexas e delicadas relações ecológicas que sustentam sua imensa biodiversidade; a implantação de extensos monocultivos, muitas vezes com sementes transgênicas, especialmente nas chapadas, para facilitar a mecanização e reduzir a demanda de força de trabalho; o consumo de enormes volumes de água, restringindo seus usos pelas comunidades locais; além do uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes químicos, dos quais são absolutamente dependentes – como se vê agora, na cena da guerra Rússia e Ucrânia, o desespero em torno da importação de seus componentes, como o potássio, porque não sabem cuidar da vida do solo como o fazem secularmente os povos do Cerrado.

Monocultivo de soja em Dourados (MS). (Créditos Thomas Bauer)

Ainda em 2018, 607.408.086 de litros de agrotóxicos foram despejados nos cultivos de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão no Cerrado, fazendo desta zona de sacrifício o alvo de 73,5% do total de agrotóxicos consumidos no país. Desde sua aplicação, geram em sua ecotoxicocinética um ciclo de contaminação de todos os compartimentos ambientais – ar, solo e águas; e também da fauna e da flora – onde as comunidades, com seus saberes e práticas ancestrais, encontram alimentos e medicamentos; contaminam também os seus cultivos e, muito especialmente, atingem os corpos e adoecem trabalhadores/as e moradores/as.

A prática da pulverização aérea, largamente adotada no Cerrado, agrava sobremaneira a contaminação do entorno e também a remota, na medida em que apenas 30% dos venenos jogados nas lavouras atingem o “alvo”, e os 70% restantes se transformam em deriva, dos quais 20% vão para o ar e 50% para o solo[3]. Mais que isso, muitas comunidades têm denunciado essa prática como arma química, somada aos incêndios e tiros e aos tratores que derrubam suas casas e roçados, tencionando pela expulsão dos povos de suas terras. Entre vários outros, pelo menos três ataques em escolas já foram denunciados: na aldeia Guyraroká/MS, pulverizada em maio de 2019; na comunidade Tey Jusu, no município de Caarapó/MS, em 2015; e em Rio Verde/GO, no Assentamento Pontal do Buriti, no ano de 2013.

A agricultura irrigada exaure as águas superficiais e subterrâneas para alimentar as áreas equipadas com pivôs centrais, que se concentram nos Cerrados (91,8%), acirrando os conflitos com as comunidades pelo acesso a esse bem comum. Em âmbito nacional, a irrigação realizada pelo agronegócio consumiu 941 mil litros de água por segundo em 2019, o que corresponde a 29,7 trilhões de litros ao ano, respondendo assim pelo consumo de 66,1% de todas as águas extraídas de mananciais no Brasil. Se somarmos a isto os 11,6% que se destinam ao consumo animal, temos que o consumo de 77,7% das águas do país está concentrado neste setor econômico[4]. Daí se pode compreender, por exemplo, a redução de 49,2% na alimentação do Rio São Francisco pelo fluxo de base do Sistema Aquífero Urucuia, em 35 anos, exaurindo-se com os monocultivos no extremo oeste baiano. Isso sem mencionar o extenso obituário de nascentes e rios, ou o número cada vez maior de rios com o balanço hídrico em situação muito crítica, ou seja, com mais de 40% de sua vazão comprometida.

Pivô central em fazenda no município de Balsas (MA). (Créditos: Thomas Bauer)

Além da a(ex)propriação das águas, a produção de commodities também contamina seus fluxos superficiais e subterrâneos com fertilizantes químicos e agrotóxicos. Pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast/UFMT) constataram a presença de ingredientes ativos de venenos usados nas lavouras de soja, milho, algodão e pastagens em amostras de águas dos rios, lagos, na água da chuva, e também na água para consumo humano em regiões grandes produtoras agrícolas do Mato Grosso (Rondonópolis, Sorriso, Sapezal e Canarana). No mesmo estudo, os resultados também foram positivos para estes contaminantes em peixes, hortaliças e até no leite materno, evidenciando mais uma vez como a contiguidade entre a agricultura empresarial e as comunidades compromete seus sistemas alimentares e ameaça sua saúde[5].

Também nos estudos realizados nas regiões do Pantanal e Parque Indígena do Xingu foram detectados vários agrotóxicos nas amostras de água colhidas até 100 km adentro do território, nos sedimentos de rio, nos peixes, tartarugas e sapos, já que seus principais rios, o Paraguai e o Xingu, têm suas nascentes dentro das plantações de soja, milho, algodão, cana e pastagens[6].

Do ponto de vista do comprometimento direto da saúde humana pelos agrotóxicos, é importante considerar que estes são biocidas, ou seja, interferem em mecanismos bioquímicos e fisiológicos de sustentação da vida que são comuns também aos seres humanos. Não é remédio, é veneno! A profusão de relatos, na Audiência do Tribunal, de eventos coletivos de intoxicação aguda ilustra e alerta para a subnotificação de casos nos sistemas oficiais de registro. São narrativas precisas, caracterizando a fonte de contaminação, as vias de exposição, o lapso de tempo para o surgimento dos mesmos sintomas na maioria dos indivíduos, especialmente os mais vulneráveis, como crianças e idosos. Ou seja, toda a caracterização epidemiológica dos casos, que não chegam ao sistema de saúde e, se chegam, muitas vezes não são adequadamente diagnosticados e/ou registrados, – a restrita formação dos profissionais de saúde nestes temas, assim como a pouca disponibilidade de laboratórios de análise toxicológica contribui na invisibilização dos impactos do “desenvolvimento” anunciado. Ainda assim, se a taxa média nacional de intoxicação exógena em 2016 e 2017 foi de 6,8 casos para cada 100 mil habitantes, para os municípios dos Cerrados ela foi de 8,5/100.000.

Mas há ainda um outro universo de impactos ainda mais invisibilizados: são os efeitos crônicos dos agrotóxicos. Farta literatura científica e também normativas já afirmam a correlação entre diferentes ingredientes ativos com os cânceres (leucemias e linfomas não-Hodgkin; cânceres de mama, ovário, próstata, testículo e esôfago, entre outros); alterações do sistema reprodutor (como infertilidade, abortos, baixo peso ao nascer, parto prematuro, más-formações congênitas); neuropatias (surdez, diminuição da força muscular, paralisias e Doença de Parkinson); transtornos psiquiátricos (depressão, distúrbios cognitivos, autismo, suicídio). Mas, como são patologias de etiologia múltipla, e pode haver um longo período de latência entre a exposição e a manifestação clínica, raramente se chega a diagnosticar e registrar estes casos como decorrentes da contaminação pelos agrotóxicos.

Correlações positivas foram encontradas entre os volumes de agrotóxicos utilizados nos cultivos de soja, milho, cana, algodão, arroz, feijão, fumo e café nas regiões de maior produção agrícola dos estados brasileiros de MT, MS, GO, PR, RS, SP e TO e as incidências dos seguintes agravos: intoxicações agudas, mortes por intoxicações, cânceres infanto-juvenis, malformações fetais, abortos e suicídios[7]. Para os casos de câncer infanto-juvenil, um estudo demonstrou que eles são mais frequentes nos Cerrados (45,2 casos/1 milhão de habitantes) que no país como um todo (43/1 milhão de habitantes)[8].

Essa é talvez a forma mais perversa em que a decantada vertente “agro” do desenvolvimento neo extrativista chega aos corpos e às diferentes formas de vida humana e não-humana nos Cerrados brasileiros nas últimas décadas. Esta história começa quando acaba a Segunda Guerra Mundial: a indústria química se viu sem mercado para os parques industriais que havia instalado para atender às demandas de armas químicas. Para quem vender então? No contexto de fome, constrói-se a narrativa de que aquelas armas tecnológicas poderiam ser utilizadas como “defensivos” agrícolas, que “combateriam” o “inimigo” da produtividade agrícola – prosseguindo em sua linguagem bélica. Às primeiras evidências dos danos ambientais e sanitários, no final dos anos 1960, eles atribuíram os perigos e acidentes ao “uso incorreto” e sobrepuseram a narrativa do “uso seguro” dos agrotóxicos, empurrando a responsabilidade para os agricultores. Envolvendo a Food and Agriculture Organization (FAO), o International Group of National Associations of Agrochemical Manufacturers (GIFAP) – hoje Croplife International – definiram o “Código Internacional de Conduta para a Distribuição e Uso de Agrotóxicos”, criando normas para as empresas e os governos fazerem o “uso seguro” de agrotóxicos[9].

Embalagens de agrotóxico armazenadas de forma inadequada na beira da estrada Pimenteiras do Oeste (RO). (Créditos: Thomas Bauer)

É este o paradigma que embasa a Lei n˚ 7.802/1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, e o Decreto 4.074/2002 que a regulamenta e que, neste momento, já correm o risco de serem substituídos pelo Pacote do Veneno, mais frouxo e insalubre ainda. Ocorre que o Estado brasileiro, na maior parte das situações, não executa adequadamente as muitas políticas públicas protetoras que movimentos da sociedade labutaram para conquistar – como as de monitoramento e fiscalização ambiental e trabalhista, as Vigilâncias, ou a Política Nacional de Saúde Integral dos Povos do Campo e das Florestas. E muito menos faz valer seu poder para impor limites às violações cometidas pelo setor econômico.

Ao contrário, o Estado alimenta o agronegócio com infraestruturas de transporte e de energia, com outorgas pouco transparentes e pouco controladas, financiamentos com recursos públicos, perdão de dívidas e flexibilização da legislação. Inconstitucionais são as isenções de ICMS, IPI, Cofins, PIS/Pasep concedidas aos agrotóxicos, como defende a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5553, em julgamento no STF. Apenas entre 2016 e 2021, 2647 novos produtos agrotóxicos foram registrados, entre ingredientes banidos em seus países de origem. São principalmente os povos do campo, da floresta e das águas que pagam, em seus corpos, o preço desse projeto de morte. As mulheres, com todas as responsabilidades de cuidado das famílias que sobre elas recaem, se entristecem e deprimem por ver o quintal e o roçado prejudicados pelos venenos, e são sobrecarregadas com a atenção aos adoecidos por eles.

Mas quem vive nas cidades não está livre dos agrotóxicos: eles chegam pelos alimentos e pela torneira. Nas amostragens realizadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos em 2017/2018, apenas 49% dos resultados não apresentaram resíduos dos agrotóxicos pesquisados[10]. Entre os municípios brasileiros que cumpriram a obrigação de dosar venenos na água dos sistemas de abastecimento entre 2014 e 2017 (e foram apenas 25% deles), 75% apresentaram contaminação. De fato, o veneno está na mesa… chamando a cidade para conversar com o campo.

É preciso barrar a expansão do ecocídio e do genocídio cultural em curso, conquistando Territórios Livres do Agronegócio, com seus agrotóxicos e transgênicos. Os povos do Cerrado, em sua longa trajetória histórica de co-evolução com a natureza do bioma, de aprendizados cotidianos no cuidado com ela, de resistência às constantes investidas contra seus modos de viver, têm em sua memória coletiva os saberes ancestrais que delineiam alternativas ao desenvolvimento. Respeitado seu direito de existir, eles sabem fazer do Cerrado um lugar de bem viver e deixar viver.

Em tempos de colapso socioambiental, urge olhar e ver, através do drama do Cerrado, que estamos indo na direção inversa à da almejada sobrevivência no Planeta Terra. Urge escutar e aprender, com os povos do Cerrado, os sábios caminhos da convivência humana na natureza e, junto com eles, gritar e produzir vida.


Raquel Maria Rigotto é médica (UFMG), especialista em Medicina do Trabalho (Fundacentro), mestre em Educação (UFMG), doutora em Sociologia (UFC) e pós-doutora em Sociologia (UFMA). Professora titular aposentada do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina, da Pós-Graduação em Saúde Coletiva e da Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará Coordenadora do Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde (Tramas/UFC). Membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.


Referências

[1] Carta do 8 de Março das Mulheres do Cerrado (2022), disponível em https://bit.ly/3HPzVga

[2] EGGER, DS; RIGOTTO, RM; LIMA, FANS; COSTA, AM; AGUIAR, ACP. Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos. Desenvolvimento e Meio Ambiente. Vol. 57, p. 16-54, jun. 2021. DOI: 10.5380/dma.v56i0.76212. e-ISSN 2176-9109

[3] CARNEIRO, FF; RIGOTTO, RM; AUGUSTO, LGS; FRIEDRICH, K; BURIGO, A.C . DOSSIÊ ABRASCO Um alerta sobre os impactos dos Agrotóxicos na Saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: EPSJV, 2015, p. 394.

[4]ANA. Agência Nacional de Águas (Brasil). Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil 2019: informe anual. 2019. Disponível em: <http://conjuntura.ana.gov.br/static/media/conjuntura-completo.bb39ac07.pdf> Acesso em: set. 2020.

[5] PIGNATI, WA; CORRÊA, MLM; LEÃO, LHC; PIGNATTI, MG; MACHADO, JMH (org). Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil. São Paulo, Outras Expressões, 2021.

[6] Idem

[7] PIGNATI et al… idem

[8] EGGER et al… idem

[9] ABREU PHB, ALONZO HGA. Trabalho rural e riscos à saúde: uma revisão sobre o “uso seguro” de agrotóxicos no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 19(10):4197-4208, 2014. DOI: 10.1590/1413-812320141910.09342014.

[10] BOMBARDI, LM. Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.

São Paulo: FFLCH – USP, 2017. 296 p. ISBN: 978-85-7506-310-1

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