Por Linda Gomes e Paulo Oliveira, do projeto Meus Sertões, na Ponte Jornalismo
Em quatro anos, 86 das 417 cidades da BA adotaram o sistema compartilhado de gestão de escolas com a PM. Ao todo, 97 unidades de ensino implantaram rígido método disciplinar. E jovens têm aulas com conteúdo similar à Moral e Cívica
No dia 11 de maio de 2018, policiais militares da 54ª Companhia Independente, em Campo Formoso, postaram na página da unidade no Facebook , um vídeo e a seguinte mensagem: “Por volta das 14 horas, o Colégio Maria do Carmo, primeiro na Bahia a adotar o modelo de gestão compartilhada – sistema CPM, recebeu a visita do comandante-geral da PMBA (…)”. As 29 fotos que constam no vídeo mostram o coronel Anselmo Brandão sendo recebido por uma guarda perfilada, apresentando armas (fuzis). Em seguida, as imagens são de vistoria na unidade escolar, conversa e troca de continência com um aluno. O oficial coroava assim o cumprimento da missão de iniciar o processo de militarização [1] das escolas municipais na Bahia.
A implementação do método de ensino dos Colégios da Polícia Militar (CPMs) em unidades escolares do interior do estado foi feita às pressas, por determinação do governador Rui Costa (PT), em ano de eleições majoritárias que resultaram na reeleição do petista em primeiro turno. Desde então, a PM implantou, em parceria com prefeituras e secretarias municipais de educação, 98 escolas em 85 (20,4%) municípios. Outras 18 estão planejadas para atender 13 novas cidades e ampliar o sistema em outras duas.
Antes da pandemia, segundo a coordenação-geral do sistema CPM, cerca de 50 mil alunos , entre 11 e 14 anos, frequentavam os estabelecimentos de gestão compartilhada, onde são obrigados a obedecer 66 normas comportamentais e de apresentação pessoal, previstas pelo regulamento disciplinar e pela cartilha de apresentação pessoal.
Os policiais também criaram a matéria Metodologia Disciplinar de Ensino (MDE), que inclui instrução militar e conteúdo semelhante ao de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), ministrada por PMs da reserva remunerada que integram a equipe disciplinar de cada escola.
Nos últimos cinco meses, a equipe de Meus Sertões se aprofundou no tema e produziu a série de reportagens que começa a publicar hoje e se estenderá por quatro semanas — sempre às quartas-feiras. Com base em entrevistas com militares, diretores, professores, disciplinadores, prefeitos, pais, alunos, e especialistas em violência nas escolas e militarização; consultas de documentos; leitura de trabalhos acadêmicos; verificação das experiências de escolas em Campo Formoso, Conceição do Jacuípe e Vitória da Conquista; e acesso a um inquérito aberto pelo Ministério Público Federal foi possível mostrar o que há por trás de um processo iniciado por um governador petista, antes mesmo de o presidente Jair Bolsonaro, um radical de direita, implantar projeto semelhante em âmbito nacional.
Aprovado por pais e mães que veem no projeto uma forma de proteger os filhos da violência e evitar que eles se envolvam com a criminalidade, os colégios do modelo CPM reúnem um total 466 policiais da reserva remunerada, o equivalente a um batalhão de polícia, com a missão de garantir a disciplina e a ordem entre os estudantes, dentro e fora das escolas. Para isto, cada um recebe valores, além dos vencimentos da aposentadoria [2], que variam de R$ 2 mil a R$ 4 mil, de acordo com o cargo ocupado — diretor, coordenador ou tutor disciplinar. Em muitas cidades os valores equivalem aos salários de um defensor público ou de coordenador de diferentes secretarias.
No decorrer da apuração também foi possível constatar que há outras formas de tratar da violência nas escolas e em seu entorno e que a PM sozinha não tem condições de solucionar uma questão tão complexa, a ponto de, mesmo com um sistema rígido disciplinar, não impedir a ocorrência de bullying, agressões e denúncias de racismo. Em uma delas, em São Sebastião do Passé, na região metropolitana de Salvador, o disciplinador foi acusado de ter impedido o acesso de uma aluna negra por causa do cabelo dela.
Atualmente, o perfil dos agentes, quase a totalidade formada por homens, inclui um novo componente: o religioso. Pelo menos nas escolas visitadas, a maioria frequenta igrejas evangélicas e passam mensagens com citações bíblicas pelas redes digitais.
“Tem um diretor disciplinar muito bom, em Conceição do Jacuípe, que passa essas mensagens para mim também. O nosso regulamento não tem nada sobre isso. Mas, se o responsável pela disciplina passa uma coisa boa, acho ótimo” – diz a major Fabiana Guanaes, coordenadora-geral do sistema CPM.
É importante ressaltar que nem todos os dados sobre a implantação da militarização nas escolas baianas são revelados pelos prefeitos, secretários de educação e oficiais da PM. Dados de evasão, de pedidos de transferência de professores, de custos das obras físicas para adequação ao sistema, por exemplo, são omitidos sob a alegação de que não são elevados e que os resultados compensam.
No entanto, a equipe de Meus Sertões conseguiu obter alguns deles, citados no decorrer da série, após consulta de documentos como o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal para acompanhar as condições de aplicação da metodologia dos colégios militares em escolas municipais. A Procuradoria Regional dos Direitos dos Cidadãos (PRDC) recomendou que a implantação do sistema fosse interrompido e deixasse de restringir a liberdade de expressão, de impor padrões estéticos e interferir na vida privada dos alunos. A proposta não foi acatada. A conclusão da investigação está prevista para o dia 12 de setembro de 2022.
O coronel Anselmo Brandão, hoje na reserva remunerada, considera que o método não fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nem a Constituição Federal, conforme apontou o procurador Gabriel Pimenta. Por isso, tocou o projeto em frente. Antes, enviou ofício ao MPF informando que falhas identificadas no início da implantação do sistema de gestão compartilhada foram sanadas. Mais: o oficial, recentemente, anunciou sua candidatura a deputado federal e a intenção de lutar para estender a militarização a outros níveis de ensino.
Além disso, mostramos como a pandemia retardou a instalação de mais escolas militarizadas; os diferentes tipos de instituições que adotam métodos militares; as propostas de extensão da gestão compartilhada para o ensino fundamental II e ensino médico; os argumentos em defesa da metodologia e filosofia militar; a utilização de mecanismos excludentes; o uso político da iniciativa; e muito mais.
[1] Militarização é todo processo que entrega a escola à Polícia Militar, ao Corpo de Bombeiros, ao Exército ou qualquer outra força militar, através de diferentes acordos. Os mais frequentes são feitos entre secretarias de educação, prefeituras e a Polícia Militar ou entre secretarias de educação, prefeituras e ONGs criadas por policiais para elaborar um projeto pedagógico e implantar a militarização no cotidiano escolar. A definição é da doutora em educação Miriam Fábia Alves, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude (Gepej), e será o conceito utilizado nesta série de reportagens. A PM, no entanto, prefere utilizar o termo “gestão compartilhada” ou “escola cívico-militar”.[2] Embora a reserva remunerada seja considerada um tipo de aposentadoria, o policial permanece à disposição da corporação e pode voltar à ativa em uma situação excepcional. Exemplos: nos casos de calamidade pública, incluindo pandemia, ou guerra. Ele só estará definitivamente aposentado quando atingir a idade limite, definida pelo posto que ocupa, e se reformar.
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