Artigo essencial sobre o cenário brasileiro aponta: retomar o investimento público é indispensável contra a crise social – e necessário à própria democracia. Ultradireita não morrerá nas eleições. Vencê-la requer mostrar que a política vale a pena
Por André Singer e Fernando Rugitsky, em A Terra é Redonda
Uma polêmica que se anunciava há algum tempo ganhou voltagem com a prévia do plano de governo do ex-presidente Lula enviada para os seis partidos aliados ao PT. A partir dele, PSB, PC do B, PV, PSOL, Rede e Solidariedade terão que se pronunciar sobre a proposta de revogar o teto de gastos, que seria, segundo o documento, a forma de “recolocar os pobres e os trabalhadores no Orçamento”.
Adiantando-se ao parecer das agremiações aliadas, a Bolsa caiu e o dólar subiu diante do vazamento das diretrizes petistas, reagindo ao que o mercado denomina “aumento do risco fiscal”. O confronto entre a necessidade social do dispêndio público e a desconfiança que esta causa aos investidores privados constituirá o centro da encruzilhada democrática no provável terceiro mandato lulista.
Em meados de abril, o jornal Financial Times, uma das bíblias dos capitalistas internacionais, havia sintetizado o desacordo. Reportagem assinada por Bryan Harris, correspondente do jornal inglês em São Paulo, apresentava de maneira resumida o duelo entre formuladores do PT e economistas vinculados aos mercados financeiros. Nela, falando pelo PT, Guilherme Mello, professor da Unicamp, defendeu a substituição do teto de gastos por regras fiscais compatíveis com as necessidades de investimento por parte do Estado brasileiro. O teto gerou “mais pobreza, mais miséria, mais inflação e mais fome”, disse Guilherme.
Defendendo as cores do dinheiro, Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, argumentou que aumentar o investimento público e social, sem um forte ajuste no resto do Orçamento, agravaria o quadro econômico nacional. “Abolir o teto seria bom apenas se houvesse uma regra melhor”, afirmou Sergio, “mas isso não parece provável”.
Devido a uma conjunção de fatores, a divergência em torno do dispêndio estatal é chave. Vencer a eleição e superar as ameaças golpistas de Bolsonaro e apoiadores não será fácil e vai requerer unidade e capacidade estratégica redobrada das forças democráticas. Múltiplos e perigosos escolhos precisarão ser suerados nos próximos quatro meses.
Os desafios, porém, estão longe de terminar na almejada posse pacífica do vencedor. A disputa sobre os rumos da política econômica, enraizados em diferentes perspectivas de classe, coloca um dilema para a jovem e instável democracia brasileira.
O busílis está no destino da Emenda Constitucional (EC) 95, que limitou de maneira draconiana o gasto público até 2036 (com uma revisão intermediária prevista para 2026). Como se recorda, promulgada pelo Congresso Nacional em 2016, durante o consulado de Michel Temer, , a chamada emenda do teto foi uma das consequências estruturais do impedimento de Dilma Rousseff (PT).
Item principal do opúsculo Uma Ponte para o Futuro, programa oficial do MDB para o golpe parlamentar que derrubou a presidenta, a emenda bloqueava por pelo menos duas décadas qualquer tentativa de recolocar o Brasil na trilha do desenvolvimento. Juntamente com a reforma trabalhista e a da Previdência (alavancada pelo atual presidente), representaram, na prática, uma pinguela para o abismo.
Bolsonaro, que simboliza o poço sem fundo em que caímos, aduziu a autonomia do Banco Central como contribuição própria para salgar a terra de modo que o desenvolvimentismo nunca mais ousasse erguer a cabeça por aqui.
Dentre as quatro leis sagradas do atraso, porém, a do teto é a pedra angular. Com frequência descrita como mero instrumento para conter o aumento supostamente explosivo dos gastos públicos, forçando uma discussão de prioridades, é bem mais do que aparenta.
Na verdade, a regulamentação paralisa, em termos reais, o montante de recursos que o Executivo pode empenhar, destoando das mais rigorosas regras impostas a nações atacadas pela austeritite. O congelamento significa que, caso a economia cresça, o percentual do PIB que caberá ao Orçamento cairá, pois este ficará estancado nos limites de 2016, devendo ser reajustado apenas pela inflação.
Estimativas de Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicadas no livro Economia pós-pandemia, sugerem que os gastos primários (isto é, descontando-se o pagamento de juros da dívida pública) ameaçam cair de cerca de 20% do PIB, em 2017, para pouco mais de 13%, em 2036. No macabro sonho neoliberal não cabem o SUS, as universidades federais e tantas outras instituições que visam garantir os direitos inscritos na Carta de 1988.
No entanto, a EC 95 não se restringe a reduzir o tamanho do Estado. Possui destacado efeito macroeconômico de curto prazo. Ao comprimir o dispêndio público, faz com que um dos principais motores do crescimento no capitalismo contemporâneo passe a funcionar como freio, o qual constantemente trava o PIB, dificulta a criação de empregos e a elevação da renda do trabalhador.
Cálculos da Instituição Fiscal Independente do Senado indicam que, entre 2017 e 2019, no triênio inicial da EC e antes do choque provocado pela pandemia, a gestão fiscal reduziu o crescimento do PIB, enquanto entre 2003 e 2014 ela o acelerava.
Em 2020, o teto foi flexibilizado por conta da Covid-19, e a política fiscal assumiu transitoriamente um caráter expansionista. Em 2021, contudo, o bloqueio voltou a se manifestar. Em suma, respeitada a limitação neoliberal estabelecida, a economia tenderá a andar de lado, sem produzir os postos de trabalho e os salários indispensáveis para consolidar a opção democrática que, segundo as pesquisas, a maioria do eleitorado deverá fazer na próxima eleição.
Contra a austeridade e o autocratismo
O árido debate fiscal adquiriu, portanto, centralidade política, com os gastos do governo passando a assumir lugar de destaque entre as armas escolhidas para combater a ascensão da extrema direita. Nos Estados Unidos, por exemplo, Joe Biden propôs um conjunto audaz e importante de planos para reconstruir o país assim que assumiu a Presidência.
Perspicaz, Joe Biden, um quadro sabidamente convencional, colocou na equipe econômica gente que criticava a austeridade. Queria sinalizar a urgência das medidas que precisavam ser tomadas. A sua agenda previa nada menos que US$ 7 trilhões a serem aplicados pelo Estado. Era tão avançada, que foi vista, nos meses inaugurais, como o fim do neoliberalismo. O “fundamentalismo de mercado […] está sendo substituído por algo muito diferente”, escreveu Dani Rodrik, laureado professor de Harvard.
O atual presidente norte-americano o fez porque percebeu que não era a sobrevivência da máquina clintoniana que estava em jogo, e sim a do regime democrático. De maneira análoga, no Brasil, não é o futuro do lulismo, mas os alicerces da democracia que se encontram em questão.
A tradução econômica a ser dada para o voto de confiança que a chapa Lula-Alckmin receberá em outubro precisa responder às demandas emergenciais dos setores populares. É provável que o neoliberalismo não tenha acabado, mas a natureza do embate se alterou com a entrada em cena de componentes fascistas, exigindo uma postura audaz dos que apostam no regime democrático.
Nos EUA, as resistências que algumas das medidas propostas por Biden enfrentam por parte de setores conservadores têm restringido o impacto da guinada política proposta, comprometendo a superação do legado de Trump. A parte já em execução permitiu a retomada da atividade econômica, a criação de empregos e até certo fortalecimento de alguns setores da classe trabalhadora.
No entanto, o bloqueio ao chamado American Families Plan, que teria efeitos potencialmente mais estruturais e duradouros, tem contribuído para a sobrevivência do trumpismo, que pode prevalecer nas eleições de novembro próximo. O caso norte-americano ensina que, se os democratas do mundo não forem capazes de entregar com rapidez o que prometeram, o autocratismo tende a recrudescer.
A extrema direita pós-factual, para usar uma expressão de Wolfgang Streeck, que nasceu com o brexit em 2016 e se estendeu para o mundo pelas mãos de Donald Trump e Steve Bannon, veio para ficar, como revela a recente competitividade das candidaturas de José Antonio Kast, no Chile, e Rodolfo Hernández, na Colômbia. Se as coalizões democráticas não produzirem medidas sociais efetivas, acabarão sem instrumentos para provar aos setores populares que o jogo democrático vale a pena, adubando o solo de onde brota o autoritarismo.
Contradições da conjuntura
A conjuntura externa apresenta elementos contraditórios. Na economia global, prevalece a incerteza sobre consequências de médio prazo da guerra da Ucrânia e a respeito da velocidade de recomposição da velocidade das cadeias de suprimento, ainda chacoalhadas pela pandemia.
É plausível que a continuidade da escalada inflacionária nas nações ricas reduza a liquidez global e piore a situação brasileira, com uma eventual desvalorização cambial, empurrando o Banco Central a subir ainda mais os juros e, em consequência, reter o crescimento.
Não se deve excluir, porém, a possibilidade de ventos favoráveis soprarem em 2023, se a inflação mundial ceder, puxada pelos preços dos produtos manufaturados, e as commodities exportadas pelo Brasil seguirem em alta.
Vale lembrar que, nos primeiros quatro meses de 2022, ocorreu um boom de commodities como não acontecia há meio século, conforme indicam os economistas Bráulio Borges e Ricardo Barboza. Desse ponto de vista, portanto, é possível que o país se encontre, coincidentemente, em situação simila à que permitiu a ascensão do lulismo.
No entanto, naquela ocasião, a bonança das exportações aumentou as receitas e permitiu acelerar o crescimento e a geração de empregos sem reduzir o superávit primário. Isto é, foi viável expandir a ação do Estado porque havia mais dinheiro entrando nos cofres do Tesouro, sem incrementar a dívida.
Com a emenda 95, contudo, mesmo com uma eventual majoração de receitas, o montante disponível para usar seguirá limitado, pois o regime fiscal isola a economia dos eventuais impulsos positivos vindos de fora. No fundo, sejamos claros, o teto foi criado para evitar que, em circunstâncias favoráveis, outro “milagre” lulista pudesse se produzir. Ao mesmo tempo, retira do Executivo instrumentos para lidar com impulsos negativos vindos de fora. Eventuais bonanças são desprezadas, enquanto as tempestades são acolhidas de braços abertos.
Se o boom de commodities não pode ser aproveitado, e as turbulências globais não têm como ser combatidas, as melhorias tão aguardadas, e com as quais Lula é identificado, se inviabilizam. O efeito político não se faria esperar: a alternativa democrática enfrentaria enfraquecida o bolsonarismo nas nossas “eleições de meio de mandato”, as municipais de 2024.
O ciclo político da economia
No plano interno, vê-se que a pressão no sentido do corte de gastos tende a aumentar, como acontece em ano de pleito presidencial. Tome-se como exemplo o subsídio de até R$ 46 bilhões para o consumo de combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes.
Até as pedras sabem que é mais uma das medidas voltadas a favorecer o desempenho de Bolsonaro nas urnas eletrônicas (que ele, aliás, despreza), como foram o Auxílio Brasil, a liberação do FGTS, a anistia do Fies, entre outras. A cada uma, aumenta a grita em favor de um corte correspondente nas despesas do Estado.
Afinal, para os capitalistas, a estabilidade das contas públicas vem antes de qualquer consideração política ou social. Segundo Lula, os banqueiros e empresários com os quais se reúne só querem saber de responsabilidade fiscal, perguntando se ele “vai manter ou não o teto de gastos”.
Com efeito, o mantra do equilíbrio orçamentário, cuja inviolabilidade, aliás, foi o centro da pregação histórica de várias personagens agora cogitadas para formular o programa definitivo da chapa democrática, volta a figurar no âmago da avaliação de figuras do mercado.
Sob a rubrica de “consolidação fiscal”, a defesa do teto funciona como chantagem: caso não se dê garantias, os capitais ficarão nervosos e irão embora. Sergio Vale já avisou no Financial Times que, a seu ver, a situação fiscal hoje é pior do que a que Lula herdou em 2003. “Vamos terminar o ano com uma dívida ao redor de 84% do PIB, um déficit primário acima de 1% do PIB e juros muito altos. Não adianta o governo querer gastar, se não existe espaço para isso”, declarou.
No entanto, espaço existe, como mostrou o auxílio emergencial adotado em 2020. Naquela ocasião, a flexibilização do teto não apenas atenuou a queda do PIB como, também, contribuiu para que o aumento da relação dívida/PIB fosse contido, segundo cálculos do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP.
O exemplo revela o fundo ideológico da defesa da austeridade. Se a preocupação fosse mesmo o endividamento, seria possível travar uma discussão técnica sobre as alternativas disponíveis —várias delas menos custosas, econômica e socialmente, do que a inscrita na EC.
A defesa teimosa da austeridade assenta-se, como notou Michal Kalecki (1899-1970), no interesse em reduzir o tamanho do Estado, abrindo fronteiras para a apropriação privada de lucros e fortalecimento do controle do capital sobre a dinâmica macroeconômica. Já nos anos 1940, o economista polonês notou, em seu clássico artigo “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”, que os capitalistas resistiam ao alargamento da ação estatal para manter seu “poderoso controle indireto sobre as políticas do governo”.
As propostas liberais são, segundo a interpretação dele, uma forma de disciplinar a democracia pelo mercado: “tudo que pode afetar o nível de confiança precisa ser cuidadosamente evitado, porque pode causar uma crise econômica”.
Convencionalmente, o clamor por austeridade tende a ser atendido em inícios de mandatos presidenciais. Premido pela necessidade de ganhar votos, o Executivo solta as rédeas do Tesouro no período em que as urnas são acionadas e faz um ajuste fiscal no início do período seguinte. A academia norte-americana deu ao fenômeno o nome de political business cycle, vinculando à dinâmica eleitoral o conflito desvelado por Kalecki.
Lula sofreu a pressão correspondente quando assumiu a Presidência em 2003, levando-o a cortar na carne, sob a forma de um ajuste considerado duríssimo. Dilma fez um segundo, quando chegou à cadeira presidencial em 2011. Ocorre que, agora, se Lula não aproveitar a potência que trará dos sufrágios amealhados para romper a camisa de força fiscal, perderá um tempo nevrálgico.
O risco de esperar a revisão da emenda, prevista para 2026, é alto. Tal espera implicaria assumir o ônus de impor a austeridade a uma população desamparada e desiludida pelos próximos quatro anos. Haverá um respiro democrático se o teto for revogado logo no primeiro semestre de 2023, quando a coalizão vitoriosa terá força máxima no Congresso. Depois, o inevitável desgaste de administrar uma sociedade arrebentada pela década perdida (mais uma) cobrará o preço em matéria de apoio e negociação partidária.
Como as bases fiscais do Estado foram deterioradas pela crise que se abriu em 2014 e segue, será necessário combinar a revogação do teto com uma repactuação tributária que permita conferir progressividade ao sistema. Se o fizer, a recuperação da capacidade de gasto não implicará uma explosão da dívida pública, o que não apenas engessaria a concentração de renda, ao ampliar a canalização do fundo público para os detentores da dívida, como fragilizaria o Estado diante dos rentistas.
A alternativa de substituir a regra atual, simplesmente, por alguma austeridade atenuada, impossibilitando o poder público de agir no curto prazo, representaria mais do mesmo.
A posse de Lula não desarmará, por si só, a ameaça autoritária e não desarticulará em um passe de mágica a base militante e organizada da extrema direita. Fazer frente ao autocratismo exigirá melhorar as condições de vida deterioradas, recuperando a criação de empregos e aumentando a renda. Não há como conciliar essa tarefa com o atendimento das demandas por austeridade.
Austeridade, aliás, que não entrega o que promete. O golpe parlamentar e a aprovação do teto lograram recuperar os índices de confiança e os preços das ações negociadas na Bolsa de Valores, mas a população segue esperando os frutos da estratégia.
A lei do teto não é apenas uma emenda constitucional, é um mecanismo de sabotagem que visa desconstruir o pacto de 1988 e abre uma avenida para o bolsonarismo. Voltamos a Kalecki: “a luta das forças progressistas pelo pleno emprego é, ao mesmo tempo, uma maneira de prevenir o retorno do fascismo”.
Se para derrotar a ameaça autocrática impõe-se a conformação de uma aliança interclassista, tal como a que ocorreu nos EUA para tirar Trump da Casa Branca, deve ter-se claro os termos da respectiva negociação interna.
Nos EUA, graças ao levante do Black Lives Matter, em junho de 2020, o peso relativo de Bernie Sanders e do DAS (Democratic Socialists of America) cresceu. Não por acaso, o pacote apresentado por Biden em abril de 2021 foi considerado por Sanders, se aprovado, como o maior avanço em favor da classe trabalhadora desde o New Deal de Franklin Roosevelt, presidente entre 1933 e 1945. Sua implementação, contudo, segue sofrendo resistências no interior do próprio Partido Democrata, para não falar do Republicano.
No Brasil, como de hábito, o jogo é mais duro, e a pressão para inibir a necessária ousadia futura começou antes mesmo do pleito. Trata-se de um conflito que recoloca questões de classe no núcleo do combate ao autocratismo de viés fascista. O seu desfecho definirá os rumos da democracia brasileira.
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