Repressão brutal matou 37 e feriu centenas de imigrantes africanos que tentavam chegar ao enclave espanhol, localizado no norte da África, em busca de asilo. Incidente mostra o fracasso da política de externalização de fronteiras da Europa
Por Sofia Lorena, no Público.pt
“Era tudo sangue, tudo sangue… sangue na cabeça, pele rasgada, pés partidos, mãos partidas”, contou, horrorizado, Tareq (nome fictício) à jornalista do El País em Nador. “Os que não tinham morrido acabaram por morrer, bateram-lhes muito”, disse ainda este habitante de Nador, a cidade marroquina mais próxima da fronteira entre Marrocos e o enclave espanhol de Melilla. Tareq foi um dos trabalhadores chamados para apanhar do chão as pedras e os paus usados pelas cerca de 2000 pessoas que tentavam entrar na Espanha: pelo menos 37 morreram e centenas ficaram feridas.
Estes 37 mortos – de longe o maior número de vítimas numa só tentativa de cruzar a fronteira; alguns morreram asfixiados ou esmagados junto à vala, outros depois de cair da cerca que limita a vala de um e de outro lado – são o “símbolo trágico das políticas da União Europeia e da externalização das suas fronteiras”, escrevem, num comunicado, cinco organizações não-governamentais espanholas e marroquinas. “A morte destes jovens africanos nas fronteiras da ‘fortaleza europeia’ sublinha a natureza mortífera da cooperação securitária em matéria de imigração entre Marrocos e Espanha”, lê-se no texto.
Já houve situações em que mais pessoas tentaram cruzar a fronteira que separa Marrocos do enclave espanhol de Melilla, mas nunca tantas tinham morrido na tentativa até sexta-feira. A delegação da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH) na cidade marroquina de Nador, uma das signatárias do comunicado, foi avisando que o número de mortos podia ser “muito superior” aos dados oficiais e mesmo aos que a ONG conseguia confirmar – em Nador, hospital e morgue têm estado cercados de polícias dia e noite. Sábado passou-se de seis a 18 mortos; domingo, saltou-se para 23, 27 e depois 37.
A tragédia acontece três meses depois do anúncio da viragem política espanhola, com o apoio manifestado pelo chefe de Governo, Pedro Sánchez, às pretensões do rei Mohamed VI sobre o destino do Saara Ocidental (plano de autonomia) com o objetivo de selar uma reconciliação que garantisse o controle das suas fronteiras por parte dos marroquinos. Responsáveis de Marrocos disseram que os imigrantes e requerentes de asilo, a maioria subsaarianos, usaram “métodos muito violentos” na tentativa; Sánchez também.
Sánchez felicitou-se pela “cooperação” entre agentes dos dois países e defendeu que os espanhóis “se empenharam a fundo para tentar evitar o assalto violento”. “É preciso ter consciência de que Marrocos também está sobre pressão migratória de outros países africanos, em particular da zona instável do Sahel”, afirmou ainda, numa posição criticada por ONG dos dois países, por “desculpar” o comportamento da polícia dos dois lados da fronteira.
As mesmas ONGs exigem a realização de inquéritos e de uma investigação independente internacional, exigindo igualmente a identificação das vítimas e a entrega dos seus corpos às famílias e condenam “a ausência de um atendimento médico rápido aos imigrantes, o que fez aumentar” o número de mortos. “O reatar da cooperação securitária na área das migrações entre Marrocos e Espanha, em março, resultou na multiplicação das ações coordenadas entre os dois lados, medidas marcadas por violações dos direitos humanos das pessoas em migração”, escrevem ainda a Plataforma das Associações e Comunidades Subsarianas no Marrocos, a Caminando Fronteras, ATTAC, AMSV e AMDH no seu comunicado.
“Isto foi um crime, um crime”, repetiu Tareq. “Estiveram lá todos desde o meio-dia, ali, atirados ao chão, ao sol, a sangrar”. “As vítimas agonizaram durante horas sob os olhares cruéis dos que deviam socorrê-los e não o fizeram”, disse Helena Maleno, porta-voz da Caminando Fronteras, citada pelo jornal El Mundo. “As relações entre Marrocos e Espanha estão manchadas de sangue”.
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