sábado, 23 de julho de 2022

Dominação global dos EUA entrou em colapso, diz Andrew Bacevich

(Foto: Reprodução | Reuters)

Jornalista aponta que o “Século Americano” idealizado por Henry Luce, ex-chefe da Life, “acabou”


Artigo de Andrew Bacevich* originalmente publicado no Tom Dispatch, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247


Se Desfaz o Sonho de Henry Luce

“O Século Americano Acabou”. Assim alega a capa da edição de julho de 2022 da revista estadunidense Harper's Magazine, adicionando uma pergunta muito pertinente: “O Que Vem a Seguir?"

O que será, efetivamente? Oitenta anos depois que os EUA embarcaram na Grande Cruzada da Segunda Guerra Mundial, a geração seguinte reivindicou o status de ser a única superpotência mundial após a queda do Muro de Berlim; duas décadas depois, a Guerra Global ao Terror removeria quaisquer dúvidas sobre quem manda no Planeta Terra – e a pergunta não poderia ser mais atual.

Empire Burlesque”, a estória de Daniel Bessner da capa da revista Harper's provê uma resposta útil, mesmo que preliminar, a uma pergunta que a maioria dos membros da nossa classe política, preocupada com outros assuntos, preferiria ignorar. No entanto, o título do ensaio contém um toque de genialidade – capturando, como o faz, em uma única e concisa frase, a essência do Século “Americano” nos seus dias minguantes.

Por um lado, dada a frenética propensão de Washington pelo uso da força para impor as suas reivindicadas prerrogativas no exterior, a natureza imperial do projeto estadunidense se tornou auto-evidente. Quando os EUA invadem e ocupam terras distantes, ou as sujeita a punições – conceitos como liberdade, democracia e direitos humanos raramente desempenham mais do que reflexões tardias. A submissão, e não a libertação, é que define a motivação subjacente, raramente reconhecida, por trás das ações militares de Washington – efetivas ou ameaçadas, diretas ou feitas por procuração.

Por outro lado, o imprudente desperdício do poder estadunidense nas décadas recentes sugere que aqueles que presidem o império dos EUA são espantosamente incompetentes, ou simplesmente loucos como chapeleiros. Decididos em perpetuar alguma forma de hegemonia global, eles aceleraram as tendências na direção do declínio nacional, enquanto pareciam desatentos aos resultados efetivos do seu ofício.

Consideremos o assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Ele provocou, corretamente, uma investigação parlamentar minuciosa visando estabelecer responsabilidades. Todos nós devemos ser gratos aos conscienciosos esforços do Comitê Seleto da Câmara de Representantes para expor a criminalidade da presidência de Trump. Neste ínterim, no entanto, os trilhões de dólares estadunidenses desperdiçados e as centenas de milhares de vidas perdidas durante as nossas guerras pós 11 de setembro tem sido reduzidos ao custo de fazer negócios. Aqui, vislumbramos a essência do bipartidarismo do século XXI – quando ambos os partidos [democratas e republicanos] conspiram para ignorar desastres pelos quais eles compartilham responsabilidades conjuntas, enquanto consignam efetivamente a vasta maioria dos cidadãos comuns ao status de cúmplices passivos.

Bessner, que ensina na Universidade de Washington, é adequadamente duro sobre o (des)gerenciamento do império estadunidense contemporâneo. E ele faz um bom trabalho de rastrear os fundamentos subjacentes deste império de volta ao seu ponto de origem. Neste respeito, a data-chave não é 1776, mas 1941. Foi o ano em que a causa da primazia global dos EUA foi varrida para dentro do mercado de ideias, fazendo uma marca que persiste até o presente.

Deus do Nosso Lado

O marketing começou com a edição da revista Life de 17 de fevereiro de 1941, a qual continha um ensaio simples e elegantemente intitulado de Henry Luce, o seu fundador e 'publisher'. Estando o público estadunidense agudamente dividido sobre a questão de intervir, ou não, à favor do Reino Unido na sua guerra contra a Alemanha nazista – isso ocorreu 10 meses antes do ataque japonês a Pearl Harbour – Luce ponderou com uma resposta definitiva: ele era totalmente à favor da guerra. Ele acreditava que, através da guerra, os EUA não só superariam o mal, mas também inaugurariam a era dourada do domínio global estadunidense.

Naquela época do auge das mídias impressas, a revista Life era a publicação de circulação de massa mais influente nos EUA. Sendo o empresário que presidia o império Time-Life de publicações que se expandia rapidamente, o próprio Luce talvez fosse o mais influente barão da imprensa da sua época. Menos colorido do que o seu extravagante contemporâneo William Randolph Hearst, politicamente ele era mais astuto. E, no entanto, nada que Luce dissesse ou fizesse ao longo da sua longeva carreira na promoção de causas (conservadoras, na sua maioria) e candidatos (na sua maioria republicanos) chegaria próximo a se equiparar ao legado deixado por aquele editorial perfeitamente no tempo certo nas páginas da revista Life.

Quando chegou às bancas de jornais, “O Século Americano” nada fez para resolver a ambivalência pública sobre como lidar com Adolf Hitler. Os eventos o fizeram, mais do que tudo, o ataque do Japão a Pearl Harbour em 7 de dezembro de 1941. No entanto, assim que os EUA entraram na guerra, o evocativo título do ensaio de Luce formou a base das expectativas destinadas a transcender a Segunda Guerra Mundial e se tornou um objeto no discurso político estadunidense.

Durante os anos da guerra, a propaganda do governo oferecia instruções copiosas sobre “Por Que Nós Lutamos”. Da mesma forma, o fizeram torrentes de cartazes, livros, programas de rádio, canções populares e filmes de Hollywood, sem falar das publicações produzidas pelos magnatas companheiros de Luce na imprensa. No entanto, quando se tratava de nitidez, durabilidade e pungência, nada tinha o alcance do “The American Century”. Antes da era ser completamente lançada, Luce a havia nomeado.

Mesmo hoje em dia, de forma atenuada, as expectativas que Luce articulou em 1941 persistem. Retire as frases de clichê de rotina proferidas pelas maiores autoridades da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono nos anos de governo de Biden - “Liderança global estadunidense” e “a ordem internacional baseada em regras” são as favoritas - e você encontra o propósito não-declarado delas: perpetuar a primazia global estadunidense não-desafiável até o final dos tempos.

Posto de outra maneira, sejam quais forem as “regras” da vida global, são os EUA que as inventarão. E se assegurar o cumprimento destas regras incluir o recurso à violência, as justificativas articuladas em Washington serão suficientes para legitimar o uso da força.

Em outras palavras, o ensaio de Luce marca o ponto de partida para o que se tornou, em um tempo remarcavelmente curto, uma era na qual a primazia dos EUA seria um direito de nascença. Isto está para o império estadunidense como a Declaração de Independência esteve uma vez para a república dos EUA. Ele segue sendo o urtext, mesmo que algumas das suas empolgantes passagens bombásticas agora sejam difíceis de se ler com uma cara séria.

Usando aquela edição de 1941 da revista Life como o seu púlpito de valentão, Luce convocou os seus concidadãos a “aceitar com toda a sinceridade o nosso dever e a nossa oportunidade de ser a nação mais poderosa e vital do mundo”, para afirmar “o pleno impacto da nossa influência, para propósitos que nos pareçam adequados e através de meios que nos pareçam adequados”. (Ênfase adicionada) – porque o dever, a oportunidade e o destino dos EUA se alinharam. Ficou simplesmente auto-evidente que os propósitos dos EUA e os meios empregados para cumpri-los eram benignos e efetivamente iluminados. Como poderia ser de outra maneira?

Crucialmente – e este ponto Bessner negligencia – o dever e a oportunidade aos quais Luce alude expressavam a vontade de Deus. Nascido na China – onde os seus pais serviam como missionários protestantes – e sendo ele próprio convertido ao catolicismo romano, Luce via a vocação imperial dos EUA como uma obrigação religiosa judaico-cristã. Ele escreveu que Deus convocou os EUA a se tornarem “os Bons Samaritanos para o mundo inteiro”. Ali estava a verdadeira vocação da nação: cumprir o “misterioso trabalho de elevar a vida da humanidade do nível das bestas àquilo que o autor dos Salmos chamou de um pouco abaixo dos anjos.”

Nos dias atuais, tal ambição imponente, encharcada de imagens religiosas, convida à zombaria. No entanto, na verdade ela oferece uma representação razoavelmente acurada (ainda que passada do ponto) de como as elites estadunidenses conceberam o propósito da nação nas décadas desde então.

Hoje em dia, o quadro explicitamente religioso já desapareceu de vista. Mesmo assim, a insistência sobre a singularidade dos EUA persiste. Efetivamente, considerando-se as crescentes evidências em contrário – alguém mencionou a China? - ela pode estar mais forte do que nunca.

A minha referência a um consenso moral não deve, de maneira alguma, implicar em uma superioridade moral. Efetivamente, a lista de pecados aos quais os estadunidenses foram suscetíveis era longa, mesmo no início do Século Americano. Com o passar do tempo, ela apenas evoluiu, ainda que a nossa percepção dos defeitos históricos da nossa nação – especialmente no campo de raça, gênero e etnicidade – tenha crescido mais aguda. Ainda assim, a religiosidade inerente ao chamado inicial de Luce às armas ressoou então e sobrevive ainda hoje, mesmo que de uma forma mais branda.

Mesmo não sendo um pensador original, Luce possuía um notável dom para o empacotamento e a promoção. O propósito não-declarado da revista Life era vender um estilo de vida baseado em valores que ele acreditava que os seus concidadãos deveriam assumir, ainda que a adesão a estes valores fosse cheia de manchas, no melhor dos casos.

O Século Americano foi a expressão máxima daquele ambicioso empreendimento. Assim sendo, à medida que, nas décadas subsequentes, um número crescente de cidadãos concluíram que Deus estaria ocupado com outras coisas – algo como um desmancha-prazeres ou estivesse simplesmente morto – a convicção de que a primazia global dos EUA derivava de um pacto divinamente inspirado criou raízes profundas.

Nós Confiamos em Deus?

Quando a Life terminou a sua existência como uma revista semanal, em 1972, o Século Americano – enquanto uma frase e uma expectativa – havia se gravado na consciência coletiva da nação. Hoje, no entanto, a América de Luce – aquela que uma vez se auto-elencava como a protagonista numa parábola cristã – havia deixado de existir. E não é provável que volte a sê-lo no futuro.

No início daquele Século Americano, Luce podia expor com confiança sobre o papel da nação em fazer avançar os propósitos de Deus, dando de barato uma sensibilidade religiosa genérica à qual a vasta maioria dos estadunidenses aderia. Naquela época – especialmente durante as presidências de Franklin Roosevelt, Harry Truman e Dwight D. Eisenhower – a maioria daqueles que não endossava pessoalmente aquele consenso, pelo menos considerava conveniente para se ajustar ou para subir na vida.

Como ficou famosa a declaração de Eisenhower, feita pouco tempo depois de ser eleito presidente: “A nossa forma de governo não tem sentido a não ser se for fundamentada em uma fé religiosa profundamente sentida, e não me importa qual seja ela.” Hoje em dia, no entanto, o 11º mandamento ecumênico de Eisenhower não reúne mais qualquer coisa parecida com um consenso universal, seja autêntico ou fingido. Persistem como elementos definidores do padrão de vida estadunidense o consumo, o estilo de vida e as expectativas ilimitadas de mobilidade – muito parecidas com as que existiam na época em que ele ocupou a Casa Branca. Porém, uma fé religiosa profundamente sentida fundida com uma fé similarmente profunda num Século Americano contínuo se tornou opcional – na melhor das hipóteses. Aqueles que alimentam a esperança de que o Século Americano ainda volte a ocorrer, provavelmente colocam a sua confiança mais na Inteligência Artificial (AI) do que em Deus.

Em paralelo com o declínio global deste país, tem ocorrido a fratura da paisagem moral contemporânea. Como evidência, não é necessário olhar mais longe do que as fúrias desencadeadas pelas recentes decisões da Suprema Corte com relação às armas e ao aborto. Ou, senão, contemple o lugar de Donald Trump na paisagem política estadunidense – impedido duas vezes, porém adorado por dezenas de milhões de pessoas, mesmo se tido em desprezo absoluto por muitas dezenas de milhões. Ou se Trump, ou outra figura divisiva parecida, puder ser o sucessor de Joe Biden na Casa Branca assuma-se como uma possibilidade real, ainda que seja desconcertante.

Ainda mais abrangentemente, faça um balanço da concepção prevalente nos EUA sobre a liberdade pessoal – grande em privilégios, que desdenha obrigações, inundada de autoindulgência e tingida de niilismo. Se você pensa que a nossa cultura coletiva é saudável, você provavelmente não está prestando atenção no que ocorre.

Para que “uma nação com a alma de uma igreja” - para citar uma famosa descrição do escritor britânico G.K. Chesterton sobre os EUA – a proposta de Luce de um casamento entre uma judío-cristandade genérica com um propósito nacional parece eminentemente plausível. Porém, plausível não é inevitável, nem irreversível. Uma união abalada por brigas recorrentes e tentativas de separação resulta atualmente em divórcio. As implicações completas daquele divórcio para a política externa dos EUA ainda restam a ser vistas, porém um mínimo sugere que qualquer um que se proponha a desvelar um “Novo Século Americano” está vivendo num mundo de sonhos.

Bessner conclui o seu ensaio sugerindo que o Século Americano deva dar lugar a um “Século Global … no qual o poder dos EUA não só seja contido, mas reduzido, e no qual cada nação se dedique a resolver os problemas que nos ameaçam a todos nós.” Tal proposta me impressiona como sendo amplamente atraente, presumindo que as outras 190 e tantas nações do mundo, especialmente as mais ricas e mais poderosas, a assumam. Obviamente, esta é uma grande presunção, efetivamente. A negociação dos termos que definirão tal Século Global – incluindo a redistribuição de riquezas e privilégios entre os ricos e os pobres – promete ser uma proposição assustadora.

Neste ínterim, que destino se espera para o próprio Século Americano? Obviamente, alguns dos mais altos escalões do 'establishment' se esforçarão para evitar que ele termine, defendendo mais lutas de flexão-de-músculos militares – como se a repetição do Afeganistão e do Iraque, ou um envolvimento mais aprofundado na Ucrânia possa dar uma nova vida ao nosso esfarrapado império. Parece improvável que quantidades significativas de estadunidenses estarão mais dispostos a morrer por Kiev do que eles fizeram por Kabul.

Na minha estimativa, é melhor desistir completamente de ter as pretensões que Henry Luce articulou em 1941. Ao invés de tentar ressuscitar o Século Americano, talvez seja o momento de focar na meta mais modesta de manter a república estadunidense unificada. Uma olhada no panorama político contemporâneo sugere que tal meta por si própria, é um bom pedido. No entanto, neste ponto, a reconstituição de um quadro moral comum certamente seria o lugar para se começar.

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