(Foto: Divulgação)
É fundamental que o novo governo não se deixe fazer prisioneiro da miopia da austeridade fiscal burra e contraproducente
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O enredo era absolutamente previsível. Esse mesmo pessoal que estendeu tapete vermelho (ops!) para Bolsonaro e Paulo Guedes ao longo do segundo semestre de 2018, agora começa a sentir uma certa coceirinha no lado externo do cotovelo direito. Afinal, a nata do financismo tupiniquim não descansou enquanto não conseguiu emplacar a estratégia do impeachment de Dilma Roussef, aquele afastamento ilegal e inconstitucional que começou a ser costurado no dia seguinte à derrota de Aécio Neves nas eleições de 2014. Na sequência, bateram palmas para as loucuras e irresponsabilidades implementadas pelo mandato tampão e golpista da duplinha dinâmica Temer & Meirelles. Estão ainda por aí os desastres cotidianos provocados pela Emenda Constitucional nº 95 do teto de gastos e pela política de preços da Petrobrás, além da reforma trabalhista destruidora de direitos fundamentais.
Na sequência, aplaudiram de forma ainda mais entusiástica o inédito empoderamento oferecido por Bolsonaro ao seu superministro da economia. Ele foi bastante bem recompensado com a fusão de quatro tradicionais pastas da Esplanada por ter apresentado o ex capitão do Exército a essa importante parcela de nossas elites. Foi tal aproximação e a empatia que daí surgiu que terminaram por fazer a diferença no pleito de 2018 e contribuíram de forma decisiva para que um defensor da tortura e da pena de morte voltasse a ocupar novamente o Palácio do Planalto. Triste país esse nosso, que sempre encontrou enormes dificuldades para processar o luto e enterrar seus momentos passados de tragédia política e social. Pelo contrário, nos acostumamos como sociedade a aceitar as transições políticas pelo alto, sem a a participação efetiva da população e sem rupturas e lições a tirar de períodos duros de nossa História, como o da ditadura militar iniciada em 1964.
Pois essas elites, que também se apressaram a criar as condições para o golpe contra o Presidente João Goulart, mais de meio século mais tarde voltaram a marcar com suas digitais o apoio a um governo que buscava, desde o início, implantar a barbárie em nossas terras. Apresentando a desculpa de que a área da economia seria um departamento à parte no terror geral prometido e anunciado por Bolsonaro, os representantes do financismo enxergaram na antessala do gabinete de Paulo Guedes a oportunidade para concretizar seus interesses. Leia-se: para a realização de grandes negócios e para colocar de forma meticulosa as minas de destruição do pouco que nos restava dos resquícios do sonho de um Estado de Bem-Estar Social, tal como desenhado pelos constituintes entre 1986 e 1988.
Lula vs Bolsonaro: o fim da terceira via
Pois agora esse pessoal começa a realizar um outro movimento. Tentaram de todas as maneiras implantar a alternativa da “chamada terceira” via na sucessão presidencial que já está em curso. Lançando mão do discurso falacioso da “polarização prejudicial ao País”, buscaram nomes como Joaquim Barbosa, Luciano Huck, Aécio Neves, Sérgio Moro, João Doria, Simone Tebet, entre tantos outros balões de ensaio replicados pelos grandes meios de comunicação. Era a garimpagem desesperada de alguém que pudesse se apresentar como alternativa a Lula e Bolsonaro na disputa da Presidência da República. Mas, além das dificuldades políticas para viabilizar tal estratégia, foram obrigados a se render às evidências mais concretas da dura realidade: nenhum deles tinha o apelo eleitoral necessário junto à maioria da população.
À medida que o calendário avançava e as dificuldades para se viabilizar uma terceira alternativa só faziam aumentar, entra em cena a opção de se submeter ao constrangimento de apoiar a única candidatura capaz de impedir a continuidade da desgraça coletiva por mais quatro anos. E assim, pouco a pouco, começam a pipocar declarações e manifestos de empresários se rendendo à obviedade cristalina de que só existe uma única opção política possível e razoável a ser adotada em outubro próximo. Trata-se de apoiar a volta do ex presidente e condenar as aventuras golpistas de Bolsonaro de se perpetuar no poder por meio da falácia da falta de segurança nas urnas eletrônicas.
Mas essa resignação tardia pelo apoio a Lula vem acompanhada de uma série de exigências e alertas a respeito do que deveria ser o comportamento do futuro governo no que se refere à área econômica. E aí começam a surgir as ameaças de sempre. O catastrofismo que todos conhecemos ao longo do segundo semestre de 2002 volta rebobinado, duas décadas mais tarde, na sua versão atual. À época, o então candidato foi aconselhado divulgar a tristemente famosa “Carta aos Brasileiros”, com o intuito de acalmar o sacrossanto mercado.
Não repetir o ajuste ortodoxo de 2003
No entanto, mais prejudicial do que o documento em si, foi a opção pela dupla Palocci & Meirelles para o comando da economia do primeiro mandato. E dá-lhe o início do austericídio logo a partir de 2003, um ajuste fiscal tão inesperado quanto desnecessário. Taxas de juros nas estrelas e superávit primário também recorde até então foram as marcas do início do novo governo do Partido dos Trabalhadores. Ocorre que o cenário internacional favorável, em razão do chamado boom das commodities, termina por oferecer a Lula a oportunidade de ouro para montar a inteligente estratégia do ganha-ganha. Havia recursos para implementar políticas públicas de distribuição de renda e melhoria das condições da maioria da população, ao mesmo tempo em que recursos públicos substantivos eram dirigidos a favorecer a acumulação privada de capital.
No entanto, uma das poucas certezas que temos hoje é que o começo de 2023 será completamente diferente. Apear disso, o discurso do povo do financismo se mantém monocórdico. O mantra repetido à exaustão do “não temos recursos” não sai da boca dos principais agentes do financismo e dos formadores da opinião pública pelos grandes meios de comunicação. Alguns pontos tendem a se converter em pilares do debate atual e futuro. Em primeiro lugar, surge a questão da política monetária e os questionamentos a respeito de qual seria comportamento de Lula frente à herança maldita da equipe incrustada na diretoria do Banco Central. A aprovação da Lei Complementar nº 179 em 2021 conferiu de forma casuística a independência ao órgão regulador do sistema financeiro e responsável pela taxa oficial de juros. Assim, o próximo governo será obrigado a conviver com maioria dos atuais membros do colegiado – inclusive o presidente Roberto Campos Neto, uma vez que estão empoderados por um mandato de quatro anos no cargo.
Revogar teto de gastos: os recursos existem.
Outro aspecto que não sai do debate refere-se ao teto de gastos. Para esse pessoal não importa que Bolsonaro e Guedes não o tenham respeitado, tal como determinado pelas regras draconianas do Novo Regime Fiscal embutidas na EC 95. Seja pelas necessidades emergenciais da pandemia a partir de 2020, seja pelo desespero eleitoreiro de Bolsonaro que se consolidou na bem recente EC nº 123, o teto de gastos foi ignorado pelas necessidades da realidade. Em um primeiro momento foi aprovado um estado de calamidade para evitar a caracterização de crime de responsabilidade e agora uma autorização constitucional para que o desrespeito ao aumento de despesas tampouco seja questionado juridicamente.
Esse governo pode fazer tal gambiarra e o establishment do sistema financeiro não subiu nas tamancas para denunciar aquilo que, em outros tempos, seria imediatamente taxado de “evidentes pedaladas fiscais”. Mas agora todos voltam suas baterias e preocupações para o que fará o governo Lula nesse quesito. As manifestações do ex presidente de que o teto de gastos já foi superado na prática são criticadas como exemplos de sua suposta “irresponsabilidade fiscal”. Ora, se é que existe alguma forma de quase unanimidade no País, isso acontece na avaliação de que a emenda do teto de gastos tem que ser revogada, uma vez que seu objeto já foi abandonado na prática. E mais, pelo fato de que se generaliza a impressão de que o instrumento é equivocado e impede a retomada do processo de retomada do crescimento e do desenvolvimento econômico e social.
Programa de reconstrução nacional exige mais despesas.
Na questão do ressurgimento da inflação, as vozes do conservadorismo retomam suas baterias em prol de sua surrada fórmula de aumento da taxa oficial de juros, a SELIC. Insistem em ignorar os principais componentes do crescimento atual dos índices preços: alimentos e combustíveis. Em ambos os casos o que se faz necessário é, ao contrário do receituário proposto pelo neoliberalismo, uma maior presença do Estado. De um lado, por meio da retomada das políticas públicas de estoques reguladores de alimentos, que foram abandonadas por Guedes em nome de um liberalismo falacioso no setor agrícola. De outro lado, é urgente acabar de uma vez por todas com a atual política de preços da Petrobrás, que estabelece uma indexação absurda e automática dos preços internos dos derivados de petróleo à variação do preço do óleo bruto no mercado internacional.
No que se refere à multiplicidade de problemas na área social e de infraestrutura, a única certeza que existe é que em todos eles a solução passa pela necessidade de maior aporte de recursos orçamentários. Educação, saúde, assistência social, saneamento, segurança pública, previdência social, rodovias, etc são setores que exigem elevação de despesas de forma urgente. Já foi dito que as tarefas de reconstrução são muito mais árduas do que as ações de destruição. Pois esse talvez seja um dos maiores desafios de Lula após a vitória eleitoral e a garantia da posse. Trata-se de cimentar um novo consenso político e social em torno da necessidade e, principalmente, da possibilidade de cumprir com estas exigências da Nação.
Os recursos existem e as demandas emergenciais devem ser atendidas de forma imediata. É fundamental que o novo governo não se deixe fazer prisioneiro da miopia da austeridade fiscal burra e contraproducente. A exemplo do que já fizeram a maior parte dos países capitalistas do mundo desenvolvido, o Brasil também precisa se livrar dessas amarras da dita “responsabilidade fiscal”. Ao contrário do que sugere o enganoso apelido datado da década de 1990, tais medidas nada mais fazem senão impedir a implementação de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades e à construção de um projeto nacional de desenvolvimento.
O que se faz mais urgente e necessário é a recuperação do compromisso com a responsabilidade social. Isso significa conferir prioridade à definição de um programa mínimo de reconstrução nacional, que atenda às necessidades da maioria da população e do Brasil como País menos desigual e mais soberano. Os recursos existem e os meios para sua implementação estão bem aí, ao dispor de quem se interessar pela empreitada. O que falta é a vontade política de seguir um caminho que passe ao largo da austeridade e da restrição.
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