quarta-feira, 20 de julho de 2022

O fim da civilização ocidental (2)

Michael Hudson
[*]
https://www.resistir.info/

Estará a civilização ocidental num longo desvio do caminho seguido pela antiguidade?

O que é mais importante na polarização económica de Roma, que resultou da dinâmica de dívida produtora de juros para as mãos gananciosas da sua classe credora, é quão radicalmente o seu sistema legal oligárquico pró-credor diferia das leis de sociedades anteriores que controlavam os credores e a proliferação da dívida. A ascensão de uma oligarquia credora que usou a sua riqueza para monopolizar a terra e controlar o governo e os tribunais (sem hesitar no uso da força e assassinatos políticos contra possíveis reformadores) foi impedida durante milhares de anos em todo o Próximo Oriente e outro países em terras asiáticas. Mas a periferia do mar Egeu e do Mediterrâneo carecia dos freios e contrapesos económicos que haviam proporcionado resiliência noutras partes do Próximo Oriente. O que distinguiu o Ocidente desde o início foi a falta de um governo forte o suficiente para conter o surgimento e a dominação de uma oligarquia credora.

Todas as economias antigas operavam a crédito, acumulando dívidas agrícolas durante o ano agrícola. Guerras, secas ou inundações, doenças e outras perturbações muitas vezes impediram o pagamento de dívidas. Mas os governantes do Próximo Oriente cancelavam as dívidas nessas condições. Isso evitou que seus cidadãos-soldados e trabalhadores do campo perdessem as suas terras de auto-sustento para os credores, que eram reconhecidos pelo palácio como um poder rival em potencial. Em meados do primeiro milénio AC, a servidão pela dívida havia-se reduzido a um fenómeno apenas marginal na Babilónia, Pérsia e outros reinos do Próximo Oriente. Mas a Grécia e Roma estavam no meio do milénio com revoltas populares exigindo o cancelamento das dívidas, libertarem-se da servidão por dívidas e da perda de terras auto-sustento.

Foram apenas os reis romanos e os tiranos gregos que, por algum tempo, conseguiram proteger seus súbditos da servidão por dívidas. Mas eles acabaram perdendo para as oligarquias credoras dos senhores da guerra. A lição da História é, portanto, que um forte poder regulador do governo é necessário para impedir que as oligarquias surjam e usem as reivindicações dos credores e a apropriação de terras para transformar os cidadãos em devedores, arrendatários, clientes e, finalmente, servos.

A ascensão do controle dos credores sobre os governos modernos

Palácios e templos em todo o mundo antigo eram credores. Somente no Ocidente surgiu uma classe de credores privados. Um milénio após a queda de Roma, uma nova classe bancária obrigou os reinos medievais a se endividarem. Famílias bancárias internacionais usaram o seu poder de credores para obter o controlo de monopólios públicos e recursos naturais, assim como os credores conquistaram o controlo de terras individuais na antiguidade.

A Primeira Guerra Mundial viu as economias ocidentais atingirem uma crise sem precedentes como resultado de dívidas entre aliados e reparações alemãs. O comércio quebrou e as economias ocidentais caíram em depressão. O que os tirou dessa situação foi a Segunda Guerra Mundial, e desta vez nenhuma reparação foi imposta após o fim da guerra. No lugar das dívidas de guerra, a Inglaterra simplesmente foi obrigada a abrir sua Zona da Libra Esterlina aos exportadores dos EUA e abster-se de fazer reviver os seus mercados industriais desvalorizando a libra, sob os termos do Lend-Lease e do British Loan de 1946.

O Ocidente emergiu da Segunda Guerra Mundial relativamente livre de dívidas privadas – e completamente sob o domínio dos EUA. Mas desde 1945 o volume da dívida expandiu-se exponencialmente, atingindo proporções de crise em 2008, quando a bolha das hipotecas de alto risco, a fraude bancária maciça e a pirâmide da dívida financeira explodiram, sobrecarregando os EUA, bem como as economias da Europa e do Sul Global. A Reserva Federal dos EUA produziu 8 milhões de milhões de dólares para salvar as ações da elite financeira, títulos e hipotecas imobiliárias, em vez de resgatar as vítimas de hipotecas lixo e países estrangeiros super-endividados. O Banco Central Europeu fez a mesma coisa para evitar que os europeus mais ricos perdessem o valor de mercado da sua riqueza financeira.

Mas era tarde demais para salvar as economias dos EUA e da Europa. O longo acumular de dívidas pós-1945 chegou ao fim. A economia dos EUA foi desindustrializada, as suas infraestruturas entraram em colapso e a sua população está tão endividada que resta pouco rendimento disponível para sustentar os padrões de vida. Assim como ocorreu com o Império de Roma, a resposta americana é tentar manter a prosperidade da sua própria elite financeira explorando países estrangeiros. Esse é o objetivo da atual diplomacia da Nova Guerra Fria. Envolve extrair tributo económico empurrando as economias estrangeiras ainda mais para a dívida em dólares, a ser paga impondo depressão e austeridade.

Esta subjugação é descrita pelos economistas tradicionais como uma lei da natureza e, portanto, como uma forma inevitável de equilíbrio, na qual a economia de cada nação recebe “aquilo que vale". Os principais modelos económicos atuais são baseados na suposição irreal de que todas as dívidas podem ser pagas, sem definir a orientação dos rendimentos e da riqueza. Todos os problemas económicos são considerados resolvidos pela “magia do mercado”, sem necessidade de intervenção da autoridade cívica. A regulamentação governamental é considerada ineficiente e ineficaz e, portanto, desnecessária. Isso deixa credores, compradores de terras e propriedades e privatizadores com liberdade para privar os outros da sua liberdade. Isto é descrito como o destino final da globalização de hoje e da própria História.

O Fim da História? Ou apenas da financeirização e privatização do Ocidente?

A pretensão neoliberal é que privatizar o domínio público e deixar o setor financeiro assumir o planeamento económico e social nos países-alvo trará prosperidade mutuamente benéfica. Isto deveria tornar voluntária a submissão de todos os países à ordem mundial centrada nos EUA. Mas o efeito real da política neoliberal foi controlar as economias do Sul Global e sujeitá-las à austeridade pelo endividamento. O neoliberalismo americano afirma que a privatização, a financeirização e a mudança do planeamento económico do governo para Wall Street e outros centros financeiros é o resultado de uma vitória darwiniana alcançando tal perfeição que é “o fim da História”.

É como se o resto do mundo não tivesse alternativa a não ser aceitar o controlo dos EUA sobre o sistema financeiro global (isto é, neocolonial), comércio e organização social. E só para ter certeza, a diplomacia dos EUA procura apoiar seu controlo financeiro e diplomático pela força militar. A ironia é que a própria diplomacia dos EUA ajudou a acelerar uma resposta internacional ao neoliberalismo ao unir governos fortes o suficiente para seguir a longa tendência da História com governos capazes de impedir que dinâmicas oligárquicas corrosivas impeçam o progresso da civilização.

O século XXI começou com os neoliberais americanos imaginando que a financeirização e privatização alavancadas pela dívida coroariam a longa ascensão da História humana como o legado da Grécia e Roma clássicas. Na visão neoliberal da História antiga ecoa a das oligarquias da antiguidade, denegrindo os reis de Roma e os reformadores-tiranos da Grécia por ameaçarem com uma intervenção pública muito forte, quando visavam manter os cidadãos livres da servidão por dívidas e garantir a posse da terra para o auto-sustento.

O que é visto como o ponto de partida decisivo é a “segurança dos contratos” da oligarquia, dando aos credores o direito de expropriar os devedores. Isto, de facto, permaneceu uma característica definidora dos sistemas jurídicos ocidentais nos últimos dois mil anos.

Um verdadeiro fim da História significaria que estas reformas se aplicariam em todos os países. Este sonho parecia próximo quando os neoliberais dos EUA receberam carta branca para remodelar a Rússia e outros estados pós-soviéticos depois da dissolução da União Soviética em 1991, começando com a terapia de choque privatizando recursos naturais e outros ativos públicos para as mãos de cleptocratas orientados pelo ocidente, registando a riqueza pública em seu próprio nome – e lucrando com a venda do que tinham tomado para os EUA e outros investidores ocidentais.

O fim da União Soviética deveria consolidar o Fim da História pela América, mostrando como seria fútil as nações tentarem criar uma ordem económica alternativa, baseada no controle público do dinheiro e dos bancos, saúde pública, educação gratuita e outros subsídios de necessidades básicas, livres de financiamento de dívidas. A admissão da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 foi vista como confirmando a afirmação de Margaret Thatcher de que "não há alternativa" (TINA) à nova ordem neoliberal patrocinada pelos EUA.

Há uma alternativa económica, é claro. Observando a extensão da História antiga, podemos ver que o principal objetivo dos antigos governantes da Babilónia ao Sul e Leste da Ásia era impedir que uma oligarquia mercantil e credora reduzisse a população em geral à escravidão e servidão pela dívida. Se o mundo da Eurásia, não norte-americano, seguir agora este objetivo básico, estaria a restaurar o curso da História no seu curso pré-ocidental. Isso não seria o fim da História, mas retornaria aos ideais básicos do mundo não-ocidental de equilíbrio económico, justiça e equidade.

Atualmente, China, Índia, Irão e outras economias da euroasiáticas deram o primeiro passo como pré-condição para um mundo multipolar, ao rejeitarem a insistência dos Estados Unidos para aderirem às sanções comerciais e financeiras contra a Rússia. Esses países percebem que, se os Estados Unidos pudessem destruir a economia da Rússia e substituir o seu governo por proxies semelhantes a Yeltsin, os demais países euro-asiáticos seriam os próximos da lista.

A única maneira possível da História realmente terminar seria os militares americanos destruírem todas as nações que buscam uma alternativa à privatização e financeirização neoliberais. A diplomacia dos EUA insiste em que a História não deve seguir nenhum caminho que não culmine no seu próprio império financeiro governando por meio de oligarquias clientes. Os diplomatas americanos esperam que as suas ameaças militares e apoio a exércitos por procuração forcem outros países a submeterem-se às exigências neoliberais – para evitarem ser bombardeados, sofrerem “revoluções coloridas”, assassinatos políticos ou golpes militares ao estilo Pinochet. Mas a única maneira real de acabar com a História é pela guerra atómica para acabar com a vida humana neste planeta.

A Nova Guerra Fria está dividindo o mundo em dois sistemas económicos contrastantes

A guerra por procuração da NATO na Ucrânia contra a Rússia é o catalisador que divide o mundo em duas esferas opostas com filosofias económicas incompatíveis. A China, o país que cresce mais rapidamente, trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública alocada pelo governo em vez de permitir o privilégio monopolista da criação de crédito privatizado pelos bancos, levando-os a substituir o governo como planeador económico e social. Esta independência monetária, contando com sua própria criação de dinheiro, em vez de pedir empréstimos em dólares eletrónicos dos EUA, controlando o comércio externo e o investimento na sua própria moeda em vez de dólares, é vista como uma ameaça existencial ao domínio da economia global pelos Estados Unidos.

A doutrina neoliberal dos EUA exige que a História termine “libertando” as classes ricas de um governo forte o suficiente para impedir a concentração da riqueza, o declínio e a queda final. A imposição de sanções comerciais e financeiras contra a Rússia, Irão, Venezuela e outros países que resistem à diplomacia dos EUA e, finalmente, ao confronto militar, é como os Estados Unidos pretendem com a NATO “espalhar a democracia” da Ucrânia ao Mar da China.

O Ocidente, na iteração neoliberal dos EUA, parece repetir o padrão de declínio e queda de Roma. Concentrar a riqueza nas mãos do 1% sempre foi a trajetória da civilização ocidental. É o resultado da antiguidade clássica ter tomado um caminho errado quando Grécia e Roma permitiram o crescimento inexorável da dívida, levando à expropriação de grande parte da cidadania, reduzindo-a à servidão perante uma oligarquia credora proprietária de terras. Esta é a dinâmica embutida no ADN do que é chamado Ocidente e a sua “segurança dos contratos” sem supervisão governamental quanto ao interesse público. Ao eliminar a prosperidade em casa, essa dinâmica exige um esforço constante para extrair riqueza económica (literalmente um “fluxo”) às custas de colónias ou países devedores.

Os Estados Unidos, por meio de sua Nova Guerra Fria, pretendem precisamente garantir o tributo económico dos outros países. O conflito vindouro pode durar talvez vinte anos e determinará que tipo de sistema político e económico o mundo terá. Em questão está mais do que simplesmente a hegemonia dos EUA e seu controlo através do dólar das finanças internacionais e da criação de dinheiro. Politicamente, em questão está a ideia de “democracia” que se tornou um eufemismo para uma oligarquia financeira agressiva que busca impor-se globalmente pelo controlo financeiro, económico e político predatório, apoiado pela força militar.

Como procurei enfatizar, o controlo oligárquico do governo tem sido a característica distintiva da civilização ocidental desde a antiguidade clássica. E a chave para esse controlo tem sido a oposição a um governo forte. Isto é, um governo civil forte o suficiente para impedir que uma oligarquia credora emerja e monopolize o controle da terra e da riqueza, tornando-se uma aristocracia hereditária, uma classe rentista que vive de rendas da terra, juros e privilégios de monopólio que reduzem a generalidade da população à austeridade.

A ordem unipolar centrada nos EUA na esperança de “acabar com a História” refletiu uma dinâmica económica e política básica que tem sido característica da civilização ocidental desde que a Grécia e Roma clássicas seguiram um caminho diferente da matriz do Próximo Oriente no primeiro milénio AC. Para evitarem ser arrastados para o redemoinho de destruição económica que agora envolve o Ocidente, os países do núcleo euro-asiático em rápido crescimento no mundo, desenvolvem novas instituições económicas baseadas numa filosofia social e económica alternativa. Com a China sendo a maior economia e de mais rápido crescimento da região, as suas políticas socialistas provavelmente serão influentes na formação do emergente sistema financeiro e comercial não-ocidental.

Em vez da privatização da infraestrutura económica básica no Ocidente para criar fortunas privadas por meio da extração de rendas monopolistas, a China mantém isso em mãos públicas. Sua grande vantagem sobre o Ocidente é que trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública, sendo alocada pelo governo em vez de permitir que os bancos privados criem crédito, com a dívida a crescer, sem expansão da produção para elevar os padrões de vida. A China também mantém a saúde, a educação, o transporte e as comunicações em mãos públicas, como direitos humanos básicos.

A política socialista da China representa, em muitos aspetos, um retorno às ideias básicas de resiliência que caracterizaram a maioria das civilizações antes da Grécia e Roma clássicas. A China criou um Estado suficientemente forte para resistir ao surgimento de uma oligarquia financeira que ganhasse o controle da terra e dos ativos rentáveis. Em contraste, as economias ocidentais de hoje estão repetindo exatamente aquele impulso oligárquico que destruiu as economias da Grécia e Roma clássicas, com os Estados Unidos tornando-se o equivalente moderno de Roma.

11/Julho/2022

A primeira parte deste artigo encontra-se em resistir.info/m_hudson/colapso_11jul22_1.html
Do mesmo autor:

[*] Professor de Teoria Económica da Universidade do Missouri, Kansas City, investigador associado do Levy Economics Institute of Bard College. Seu livro mais recente é The Destiny of Civilization .
Este artigo encontra-se em resistir.info

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