Cresce, no Senado, pressão das bancadas do atraso por projeto que privatiza inspeção sanitária de alimentos. Texto prevê até a “autofiscalização”. Além de enfraquecer prevenção de doenças, matéria dificulda punir práticas fraudulentas
Por Thalita Pires, no Brasil de Fato
O Senado deve votar na próxima semana a flexibilização da regulação sanitária agropecuária no Brasil. O PL 1.293/21 permite que a fiscalização da produção, transporte e comercialização de alimentos seja feita pelas próprias empresas do setor.
O projeto, de relatoria do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), beneficia grandes empresários do agronegócio ao permitir a aprovação automática de registro para produtos com padrões normatizados e prever a contratação de especialistas da iniciativa privada para avaliar o cumprimento da legislação sobre alimentos já existente.
Mas especialistas dizem que se o PL for aprovado com o texto atual, a mudança pode ameaçar a segurança alimentar do país e comprometer a qualidade dos alimentos ao transferir a terceiros a responsabilidade pela fiscalização da produção, transporte e comercialização desses produtos.
“Por que o Estado e não a iniciativa privada [deve fazer a fiscalização]? Porque ela deve ser isenta. O funcionário público tem essa função, a função já diz. Ele tem que atender a população, e não a empresa”, diz Francisco Del Chiavon, representante do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Os alimentos e a água são fundamentais para a vida humana. É fundamental para a saúde do povo que esses alimentos estejam em condições.”
Deve gerar também conflito de interesses, já que as empresas vão ser fiscalizadas por elas mesmas. Isso abre brecha para que as atividades dos fiscais não priorizem a saúde do consumidor, mas sim a empresa: se o fiscal não atender às expectativas da companhia, poderá ser demitido e substituído por outro mais “flexível”.
“O governo fiscalizando a indústria alimentícia tem poder de polícia. Ele pode autuar, pode até acionar legalmente a empresa caso as falhas sejam graves”, diz Carla Lettieri, diretora executiva da ONG Animal Equality Brasil, que atua na defesa dos animais. “Agora, uma empresa contratada por uma grande indústria vai ter esse poder? Óbvio que não. E se ela pegar falhas, vai ter a mesma capacidade de fazer cumprir as soluções? Muito provavelmente não.”
Ela lembra ainda que no mercado, vale a regra do custo-benefício. “Se a empresa for muito exigente, não vai ter vez no mercado”, acredita.
Mobilização ampla
Um grupo de 14 entidades, incluindo ONGs em defesa da causa animal, defesa de consumidores e representações dos auditores-fiscais, fiscais agropecuários e trabalhadores da indústria de alimentação está se mobilizando contra a aprovação do projeto, tendo emitido carta enviada a todos os deputados federais e senadores.
“O PL implantará novos agentes privados que atuarão na fiscalização agropecuária. Desta forma, a ação do Estado é diminuída, inclusive a ação dos auditores fiscais”, explica Janus Pablo, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical). “Hoje nós temos um acompanhamento muito aproximado em toda a cadeia produtiva. Com o advento desse projeto, essa fiscalização será diminuída, deixando o mercado mais independente.”
Uma das consequências mais prováveis e danosas à população da aprovação do PL é a piora da qualidade dos alimentos. A prevenção de doenças como toxoplasmose, cólera, tuberculose, raiva herbívora, encefalopatias (como a doença da vaca louca) e febre aftosa, entre outras, é parte fundamental do trabalho dos fiscais agropecuários. Sem um trabalho rigoroso da categoria, essas doenças podem colocar a população em risco de vida. Em outras palavras, o mercado poderá ser abastecido com carne contaminada ou estragada.
Outro problema que o texto apresenta é tornar mais difícil identificar e punir práticas fraudulentas, como adulteração e contaminação de produtos. No modelo atual, os fiscais têm poder de polícia e podem determinar as ações necessárias para que o problema seja resolvido. Se a mudança for aprovada, essa responsabilidade fica a cargo de uma empresa privada, sem que haja garantia de que eventuais problemas sejam solucionados e os culpados, punidos.
“Alguns produtos são usados para mascarar aparência, textura ou cor, mas são nocivos à sociedade. Um exemplo que posso citar é o uso de formol na indústria do leite. Existem vários escândalos de fornecedores de leite que usam formol para dar uma textura melhor para o produto e aumentar o volume, mas o formol é um produto cancerígeno”, diz Lettieri. Essas situações serão mais difíceis de ser identificadas sem a fiscalização estatal.
O PL prevê ainda a permissão do registro automático de drogas, como hormônios, antiparasitários e antimicrobianos, aplicadas em animais criados para consumo humano. Os resíduos dessas drogas nos alimentos podem causar resistência antimicrobiana e o desenvolvimento de superbactérias, um dos grandes desafios para saúde pública mundial.
Tramitação
O PL 1.293/2021 é de autoria do governo federal, que alega dificuldades financeiras para exercer a fiscalização. A tramitação do texto começou na Câmara dos Deputados, em abril de 2021. Ao longo de um ano, o projeto foi apreciado pelas comissões Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, Finanças e Tributação e Constituição e Justiça e Cidadania, sendo aprovado em todas. A tramitação foi terminativa, ou seja, não houve votação no plenário da casa.
Em maio, o PL foi encaminhado ao Senado. Lá, a apreciação foi feita apenas pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), composta majoritariamente por parlamentares ruralistas. O texto foi aprovado também de maneira terminativa, no dia 23 de junho.
A partir dessa aprovação, os senadores tinham um prazo de cinco dias para apresentar interposição de recurso, o que obrigaria o projeto a ser discutido pelo plenário. No dia 27 de junho, o senador Paulo Rocha fez o pedido. Após um prazo para a proposição de emendas – todas rejeitadas pelo relator Heinze – o texto deve ir a plenário entre os dias 9 e 10 de agosto.
Boiadinha
A iniciativa faz parte do pacote de projetos de lei chamados por ambientalistas de “boiadinha”, que favorecem a escalada da devastação ambiental no país. São pelo menos oito projetos de lei em tramitação que buscam a alterar o Código Florestal, flexibilizar o uso de agrotóxicos, anistiar desmatadores ou diminuir restrições em áreas de preservação e unidades de conservação.
O PL 6.299/2002, conhecido como PL do Veneno, faz parte do movimento. O texto flexibiliza as normas de adoção de agrotóxicos no país, permite o registro de novos agrotóxicos e concentra no Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (Mapa) o poder de decisão sobre esses produtos, retirando atribuições de estados, municípios e dos ministérios da Saúde (MS) e do Meio-Ambiente (MMA).
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