(Foto: Reprodução/ANSA)
Por Pepe Escobar
(Tradução de Patricia Zimbres)
É tentador interpretar os resultados eleitorais deste último domingo como uma cena em que os eleitores alegremente atiram pratos de papardelle com ragu de javali selvagem bem na cara insossa da tóxica euro-oligarquia não-eleita sediada em Bruxelas
Bem, é complicado.
O sistema eleitoral da Itália centra-se em coalizões. A troika de centro-direita Meloni-Berlusconi-Salvini certamente irá amealhar uma maioria substancial em ambas as casas do Parlamento - a Câmara Baixa e o Senado. Giorgia Meloni lidera o Fratelli d’Italia ("Irmãos da Itália"). O notório Silvio “Bunga Bunga” Berlusconi lidera a Forza Italia. E Matteo Salvini lidera La Lega.
O cliché que corre pelos cafés da Itália é que Giorgia é a franca favorita para o cargo de primeiro-ministro: afinal, ela é "loura, de olhos azuis, baixinha, cheia de vivacidade e charme". E uma comunicadora de talento, além de tudo. O exato oposto do sócio da Goldman Sachs e antigo mandachuva no Banco Central Europeu Mario Draghi, que parece um daqueles imperadores sanguinários da decadência de Roma. Durante seu reinado como primeiro-ministro, ele foi alvo de grandes caçoadas – fora dos círculos financeiros/politicamente corretos – sendo chamado de líder do "Draghistão".
No front financeiro, aquela entidade fantasmagórica, a Deusa do Mercado, o equivalente pós-verdade do Oráculo de Delfos, aposta em que a primeira-ministra Giorgia insistirá na velha estratégia de sempre: estímulos fiscais financiados por dívida, o que fará explodir a dívida italiana (já imensa, de 150% do PIB). Tudo isso mais o colapso ainda maior do euro.
A grande pergunta, portanto, é quem será o Ministro das Finanças da Itália. O partido de Giorgia não tem ninguém que preencha os requisitos de competência para o cargo. O candidato escolhido, portanto, será "aprovado" pelos suspeitos de sempre, como uma versão light do mandachuva do Draghistão. Draghi, por sinal, já disse que está "pronto para colaborar".
Fora as maravilhas gastronômicas, a vida na terceira maior economia da União Europeia é uma coisa muito chata. As perspectivas de crescimento no longo prazo são como uma miragem no Saara. A Itália é extremamente vulnerável no que se trata de mercados financeiros. Então, a possibilidade de um sell-off desenfreado é dada como praticamente certa.
No caso de uma – quase inevitável – guerra financeira do tipo briga de gatas entre o Time Giorgia e Christine "vejam minha nova echarpe Hermés" Lagarde no Banco Central Europeu, o Banco irá "esquecer" de comprar títulos italianos e então, Auguri! Bem- vindos a um novo round da crise da dívida soberana da União Europeia.
Na trilha de campanha, a saltitante Giorgia comprometeu-se incessantemente a manter sob controle a dívida maciça. Isso somado à mensagem de praxe destinada a aplacar a politicamente correta cripto-"esquerda" e seus banqueiros neoliberais: apoiamos a OTAN e o envio de armas para a Ucrânia. Na verdade, todo mundo – de Giorgia a Salvini – apoia o envio de armamentos, tendo assinado uma carta, na legislatura anterior, em vigor até o final de 2022.
Desconstruindo uma "semifascista"
A esfera atlanticista politicamente correta/neoliberal, como seria de se esperar, está furibunda com o advento da Itália "pós-fascista": ah, essa gente sempre votando errado. A confusa turma dos think tanksaponta para a mais recente de um ciclo de ondas populistas na Itália, sem sequer saber o que "populista" significa. Mas eles não podem ficar histéricos demais porque, afinal, Giorgia é um produto do Instituto Aspen.
Giorgia é um caso complexo. Ela, em essência, é uma transatlanticista. Ela abomina a União Europeia, mas adora a OTAN. Na verdade, ela gostaria de solapar Bruxelas de dentro para fora e, ao mesmo tempo, assegurar que a União Europeia não venha a cortar aqueles cruciais fluxos de verbas para Roma.
Por isso ela confunde os primitivos "especialistas" da cripto-"esquerda" americanos, que a acusam, na melhor das hipóteses, de "semifascismo" – e, portanto, mais perigosa que Marine Le Pen ou Viktor Orban. E então ela alcança a redenção imediata porque, pelo menos vocalmente, ela proclama ser anti-Rússia e anti-China.
Mas então, novamente, a tentação de queimá-la na fogueira se torna forte demais: afinal, ela é admirada por Steve Bannon, que proclamou há quatro anos: "coloque um rosto razoável no populismo de direita que você será eleito". E ela está em péssima companhia: Berlusconi é descartado pelos americanos politicamente corretos/neoliberais como "amiguinho do Putin" e Salvini, como um "nacionalista agitador".
É imperativo sorver uma forte dose de realidade para formar uma imagem clara de Giorgia. Então, recorramos a um ótimo intelectual e escritor de Turim, Claudio Gallo, que hoje se beneficia do fato de estar distante da névoa tóxica da mídia convencional italiana, em sua maior parte um feudo da odiada família Agnelli/Elkann.
Aqui vão algumas das principais conclusões de Gallo.
Quanto à popularidade de Giorgia: seu apoio em meio às classes trabalhadoras é um fato. Vemos isso em cada pesquisa de opinião. Mas essa não é uma tendência nova, ela começou na época de Berlusconi. No presente momento, a classe trabalhadora passou a votar em partidos de direita. Mas creio que essa tendência não se limite à Itália. Se você olhar para a França, verá que a maior parte dos representantes das classes trabalhadoras votaram em Le Pen, não nos partidos socialistas. Trata-se de uma tendência europeia".
Sobre a "agenda Draghi": "Você pode imaginar o tipo de governo que tivemos como uma troika europeia de um só homem - Mario Draghi. Eles propuseram as reformas econômicas mais brutais, inspiradas em Bruxelas, tais como extrema flexibilidade e austeridade fiscal. Essas políticas afetam principalmente as classes médias e os pobres (...) o governo Draghi reduziu os gastos com seguridade social em 4 bilhões de dólares para o próximo ano e outros 2 bilhões de dólares nos dois anos seguintes. O que significa que, daqui a dois anos, 6 bilhões de dólares deixarão de ser destinados à saúde pública. Houve cortes também no sistema educacional. As pesquisas de opinião mostram que mais de 50% dos italianos não apoiavam Draghi e seu programa. Draghi vem do estrato mais poderoso da sociedade, o setor bancário. Na grande mídia italiana é impossível encontrar críticos dessa agenda".
Quanto a uma possível jogada de poder de Berlusconi: "Ele tem um público bem enorme. Acredita-se que ele tenha cerca de 8% dos votos. Depois de todos esses anos e todos os seus problemas com a justiça, isso ainda é muito (...) é possível imaginar uma situação na qual Meloni, poucos meses após as eleições, seja forçada a renunciar por não ser capaz de lidar com um inverno severo (custo de vida fora de controle, agitação social ). Essa vai ser a hora de uma Grosse Koalizion salvar o país, e Berlusconi, com sua forte postura em relação à OTAN e à Europa, estará pronto para usar seus trunfos. Berlusconi seria a peça-chave nessa nova coalizão. Ele está sempre pronto a fazer qualquer concessão".
Sobre o "agitador" Salvini: "Ele é o líder de um partido muito dividido. Ele, antes, tinha uma agenda populista, mas na cúpula de seu partido pode-se encontrar algumas figuras tecnocráticas, como Giancarlo Giorgetti, um convicto defensor dos interesses da Confindustria do Norte da Itália. Salvini vem perdendo aprovação em meio à sua base eleitoral, e Meloni roubou seus votos com o Movimento Cinque Stelle. Seu partido está dividido entre os antigos políticos que sonhavam com algum tipo de federação para fortalecer a autonomia das regiões do Norte, e outros políticos mais inspirados pela direita de Marine Le Pen. É uma mistura volátil".
Sobre Giorgia estar sob pressão: "A pressão das questões econômicas, da inflação, do preço do gás etc. provavelmente farão com que Meloni, uma política durona, mas não uma estadista experiente, venha a renunciar. Na Itália, há um impasse político. Como em todas as outras regiões do Ocidente, a democracia não funciona corretamente. Todos os partidos são mais ou menos a mesma coisa, as diferenças sendo cosméticas; qualquer um pode entrar em aliança com qualquer outro, sem a menor consideração por princípios ou valores".
"Quanto mais as coisas mudam...": "O homem por trás da política externa do Fratelli d’Italia é um ex-embaixador nos Estados Unidos e em Israel, Giulio Terzi di Sant’Agata. Não consigo perceber diferença entre suas opiniões e as de Draghi. A mesma origem neoliberal e atlanticista, o mesmo curriculum tecnocrata. Meloni está simplesmente capitalizando o fato de que ela não ter participado do último governo, embora não ofereça uma alternativa. Meloni repete que nada irá mudar: enviaremos dinheiro e armas [à Ucrânia]. Ela manda montes de sinais para a OTAN e a União Europeia, insinuando que eles podem contar com ela no que se refere à política externa. Acredito que ela seja sincera: ela está cercada de pessoas que farão isso acontecer. Hoje, a situação é muito diferente da de uns dois anos atrás, quando Meloni publicou um livro no qual afirmava que precisamos ter uma boa relação com Putin e construir uma nova ordem europeia. Hoje ela mudou completamente sua posição. Ela quer ser vista como uma futura primeira-ministra confiável. Mas as pesquisas de opinião mostram que entre 40 e 50% dos italianos não gostam desse envio de armas à Ucrânia e apoiam todas as medidas diplomáticas visando ao fim da guerra. A crise do custo de vida irá fortalecer essa posição em meio à população. Quando você não consegue aquecer sua casa, tudo muda de figura".
A verdadeira luta na jaula
Ninguém jamais perdeu dinheiro apostando em que a oligarquia da União Europeia sempre iria se comportar como um bando de gente metida a besta, teimosa e arrogante, que jamais foi eleita. Eles nunca aprendem. E sempre culpam todo mundo, exceto a si mesmos.
Giorgia, seguindo seus instintos, tem uma chance razoável de enterrá-los ainda mais fundo. Ela é mais calculista e menos impulsiva que Salvini. Ela não será a favor de sair do euro, e muito menos de um Italexit. Ela não irá interferir nos assuntos se seu ministro das finanças - que terá que se haver com o Banco Central Europeu.
Mas ela continua sendo "semifascista" e, portanto, Bruxelas irá querer seu escalpo – na forma de cortar as dotações orçamentárias da Itália. Esses eurocratas jamais ousariam agir assim com a Alemanha ou a França.
O que nos leva à conformação política do – supremamente antidemocrático – Conselho Europeu.
O partido de Giorgia é membro do bloco dos Conservadores e Reformistas Europeus, juntamente com apenas dois outros membros, os primeiros-ministros da Polônia e da República Tcheca.
O bloco dos Socialistas e Democratas tem sete membros. E o mesmo se dá com o Renova Europa (os anteriormente "liberais"): que inclui o presidente do Conselho Europeu, o supremamente medíocre Charles Michel.
O Partido do Povo Europeu, de centro-direita, tem seis membros, inclusive Ursula "Meu Vovô era Nazista" von der Leyen, a dominatrix sadomasoquista que hoje comanda a Comissão Europeia.
A melhor luta de gatas na jaula, na verdade, é Giorgia versus Ursula, a dominatrix. Mais uma vez, bravatas mediterrâneas contra os tecno-bárbaros teutônicos. Quanto mais Bruxelas atacar Giorgia, mais ela contra-atacará, com total apoio de suas legiões romanas da pós-verdade: os eleitores italianos. Preparem seus italianíssimos Negronis e Aperol Sprits: o espetáculo vai começar.
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