Ele devia estar contente, ser o dito cidadão respeitado, mas vive o mal-estar. Vende-se como super-homem, alguém que suporta pressão e é capaz de causar sofrimento aos outros. Analisado a partir de Fromm e Dejours, vê-se a raiz da banalização do mal
Por Fabrício Maciel
A teoria crítica sobre o capitalismo não pode se furtar de diálogos entre seus grandes intérpretes. Por isso, gostaria de esboçar neste texto um confronto inicial entre dois grandes autores, Erich Fromm e Christophe Dejours. Para tanto, selecionei duas de suas obras centrais, que considero vitais para uma compreensão sociocultural do capitalismo contemporâneo. Trata-se do livro Psicanálise da sociedade contemporânea (1970), de Fromm, e do livro A banalização da injustiça social (2006), de Dejours.
Meu interesse nestes autores e nestas obras não é por acaso. Há seis anos venho realizando uma pesquisa com executivos no Brasil. Minha ideia inicial era tentar mapear a origem de classe, o estilo de vida e o posicionamento político destes executivos. Com o tempo, constatamos tratar-se de uma “alta classe média” brasileira, com origem social privilegiada, estilo de vida marcado por uma mentalidade profundamente meritocrática e consequentemente um posicionamento político profundamente conservador, diante da grave desigualdade de classes no Brasil. Este cenário me levou à definição de um “habitus corporativo”, como conceito central para mapear as formas de pensar, agir e sentir de meus entrevistados. Recentemente, publicamos o E-book intitulado A ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo (Maciel, 2022), no qual apresentamos os resultados gerais da pesquisa até o momento.
Diante de tais resultados e especialmente a partir da leitura da obra de Erich Fromm, comecei a me perguntar, para além do habitus, que tipo de self é este, predominante entre pessoas que, sendo privilegiadas desde o berço, ainda assim se apegam fortemente a uma mentalidade profundamente meritocrática. Neste sentido, o sociólogo alemão Ulrich Bröckling (2007) apresenta algumas pistas interessantes com seu conceito de “self empreendedor”. Um dos aspectos que mais me marcaram nesta pesquisa, para além das evidentes dimensões socioeconômicas, foi exatamente a condição humana dos executivos. Predomina entre eles evidentemente um mal-estar. Esta questão é intrigante, pois estamos tratando aqui de indivíduos que são os principais vencedores do mundo corporativo e do capitalismo como um todo. Teoricamente deveriam ser as pessoas mais felizes e realizadas. Esta não me parece ser exatamente a situação.
Algo que constatamos, por exemplo, é que os executivos são vistos como e internalizam uma condição de “super-homens”, que precisam aguentar pressão, não demonstrar fraqueza e ser exemplo para seus subordinados. Aqui dialogamos com aspectos específicos relacionados à temática de uma psicopatologia do trabalho. Os executivos são as principais “estruturas estruturantes” e “estruturas estruturadas” do capitalismo contemporâneo, se usarmos a linguagem de Pierre Bourdieu. Percebe-se assim uma conexão direta com a função que eles vão exercer na construção e na legitimação da dominação social no capitalismo atual. Com isso, me parece urgente mobilizar as obras de psicanalistas como Fromm e Dejours. Não por acaso, o papel dos executivos na construção da “patologia da normalidade” (Fromm, 1970) é algo que foi percebido como fundamental na obra dos dois autores.
Por conta disso, minha ideia aqui é esboçar um diálogo entre o que nós podemos chamar de uma “antropologia filosófica” do capitalismo contemporâneo, na obra de Fromm, e uma teoria prática da dominação social atual, na obra de Dejours. Com isso, pretendo esboçar uma crítica cultural da dominação social nas sociedades atuais. Compreendo cultura de maneira diferenciada em ambos os autores. Na obra de Fromm, encontramos uma análise muito mais cultural do que econômica da vida nas sociedades capitalistas. É neste sentido que ele vai “psicologizar” o conceito de alienação de Marx, indo com isso também além de Freud. Para Fromm, a alienação não é apenas falsa consciência e nem condicionada por nossos instintos primitivos, mas determina-se especialmente pela existência social e cultural no capitalismo.
Não por acaso, seu conceito de “caráter social” procura mapear exatamente o tipo humano predominante na cultura capitalista contemporânea, imposto a cada um de nós. A partir de nossa pesquisa, podemos dizer que o caráter social predominante no capitalismo atual é ultrameritocrático, o que ficou claro em várias falas de nossos entrevistados. Neste sentido, é bastante pertinente a obra de Richard Sennett (2015), com sua ideia de “corrosão do caráter”. Com este conceito, o autor procura tematizar a incapacidade de construção de solidariedade e laços duradouros por parte dos indivíduos no que ele denomina como “novo capitalismo”. Não foi outra coisa o que encontramos em nossa pesquisa, ou seja, um individualismo exacerbado e uma crença quase religiosa na meritocracia. Esta realidade corrói o caráter do self corporativo contemporâneo e, ao mesmo tempo, o generaliza como sendo o caráter social exigido de toda a sociedade, se considerarmos a influência sistêmica que o mundo corporativo exerce sobre todas as interações sociais.
Retornando a Fromm, a própria ideia central de patologia da normalidade é de profunda importância para a compreensão da dominação social contemporânea. Para o autor, as sociedades modernas como um todo não são sadias, de modo que não se trata simplesmente de patologias individuais, mas coletivas. Com isso, o que encontramos em nossa pesquisa é que o mundo corporativo, através de seus executivos, constrói e impõe a todos metas morais e culturais quase inatingíveis, causando estresse, depressão e mal-estar em todas as camadas sociais. Para esta reflexão, um excelente livro do francês Alain Ehrenberg se chama, em alemão, Das erschöpfte Selbst (O self esgotado) (2015), onde não por acaso ele dialoga com Axel Honneth, que retomou em sua obra o tema das patologias sociais no capitalismo recente.
Entretanto, a análise de Fromm sobre a cultura do capitalismo permanece em um plano abstrato, que carece de constatações empíricas em diversos aspectos. É aqui que entra como complemento a interessante obra de Christophe Dejours. O autor vem construindo há muitos anos, na França, os campos da psicodinâmica e psicopatologia do trabalho. Sua questão central é a forma como o sofrimento e o medo se tornam uma regra naturalizada nas relações de trabalho como um todo. O autor percebe um aumento considerável da aceitação da injustiça social na França nos anos de 1990, o que ele vai definir como sendo a “banalização do mal”, adaptando aqui a clássica análise de Hannah Arendt sobre o fascismo. Entretanto, Dejours não está tratando da visível banalização do mal em relações autoritárias mediadas pelo Estado, mas sim deste tipo de banalização invisível na vida cotidiana das relações de trabalho.
Neste sentido, o autor nos apresenta uma “teoria prática” sobre a patologia da normalidade, nos permitindo ver como as grandes empresas desenvolveram uma verdadeira cultura do medo e do sofrimento, o que é fundamental para a prática da dominação social e a reprodução da desigualdade. Aqui, podemos compreender cultura em sentido prático, semelhante ao sentido empregado por Richard Sennett em sua análise sobre a “cultura do novo capitalismo”, marcada pela ideologia da flexibilidade e do trabalho em equipe. O que Dejours nos mostra é exatamente o contrário desta ideologia. O cotidiano do mundo corporativo é marcado pela naturalização do sofrimento e do medo, tanto por parte de quem inflige quanto por parte de quem é atingido.
Para o autor, uma questão central neste sentido é compreender como pessoas comuns, ou “cidadãos de bem”, podem ser coniventes e cúmplices de formas de injustiça inaceitáveis na França em períodos anteriores. No Brasil, a aceitação da injustiça social faz parte de nossa história desde sempre, considerando nossa profunda desigualdade estrutural entre as classes. Um forte exemplo de banalização da injustiça social, como definido por Dejours, pode ser visto nos crimes empresariais cometidos em Mariana e Brumadinho, tratados eufemisticamente pela mídia como “desastres ambientais”.
Quando alguns dos principais executivos da Vale e da Tüv Süd, empresa, alemã de consultoria responsável por relatórios e pareceres sobre a segurança do caso de Brumadinho, foram denunciados por crime doloso pelo Ministério Público de Minas Gerais, as duas empresas procuraram dissociar a sua imagem do crime em questão. Trata-se aqui de uma grave aceitação da injustiça e banalização do mal.
Para Dejours, trata-se de “tolerar o intolerável” e da construção da capacidade de aceitação do “trabalho sujo”, muitas vezes realizado pelos altos executivos, que deveriam ser responsabilizados. Em contrapartida, quando tratamos de tais temas com nossos entrevistados, estes desconversam, apresentando um discurso decorado do mundo corporativo em defesa do papel positivo das empresas na sociedade. Com isso, eles constroem um ideal de capitalismo do bem, politicamente correto, inclusivo e sustentável, em um processo de legitimação e justificação do “novo espírito do capitalismo”, conforme a bela análise de Boltanski e Chiapello (2009).
Na prática, mais uma vez, Dejours nos explica que esta construção de uma grande mentira no mundo corporativo só é possível através do que ele define como “estratégia de distorção comunicacional”, o que vem do alto escalão das empresas e é passado a todos os seus empregados. Ou seja, no interior das empresas se constrói sempre um discurso que melhor preserve a identidade delas, o que não necessariamente corresponde a sua realidade. Esta estratégia também é definida por Dejours como a “racionalização do mal”.
Com isso, o exercício necessário que precisamos fazer, a partir das ideias de Fromm e Dejours, é desnaturalizar a banalização do mal no capitalismo contemporâneo. Este é um passo indispensável para a construção de sociedades sãs, como diria Fromm. Para tanto, é preciso compreender que a banalização do mal é laica, fazendo parte de nossa vida cotidiana comum. Sua construção e legitimação depende diretamente do que, em minha pesquisa, defini como uma “moralidade ultra-meritocrática” defendida e vivida na prática pelos executivos.
Estes são apresentados para a sociedade como exemplos de sucesso, desempenho e honestidade, o que esconde o envolvimento de vários deles em casos de corrupção e de crimes empresariais. Além disso, a moralidade ultra-meritocrática é um dos aspectos essenciais de amparo à ascensão da extrema-direita em vários países do mundo. Basta ver os discursos profundamente meritocráticos de Trump e Bolsonaro, entre outros. Desta forma, a desconstrução de todo este pano de fundo moral e ideológico é fundamental para a construção de sociedades para além das patologias da normalidade.
BibliografiaBOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Éve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.BRÖCKLING, Ulrich. Das unternemerische Selbst. Frankfurt: Suhrkamp, 2007.DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 7ª Ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.EHRENBERG, Alain. Das erschöpfte Selbst. Frankfurt: Campus, 2015.FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.MACIEL, Fabrício (Org.) A ficção meritocrática. Executivos brasileiros e o novo capitalismo. E-Book. Campos dos Goytacazes: EdUENF, 2022.SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. 16ª Ed. Rio de janeiro: Record, 2015.
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