quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

A esquerda e o paradoxo Alexandre de Moraes

Imagem: Ekaterina Bolobtsova

Por EDUARDO BORGES*

Alexandre de Moraes será sempre um agente do Estado burguês agindo circunstancialmente dentro dos interesses deste mesmo Estado

Estou ciente de que na atual conjuntura este artigo tem potencial de gerar debates calorosos e controversos, mas vou seguir renitente em nome do bom combate de ideias. No século XIX, François Pierre Guillaume Guizot, um político francês liberal, mas com tendência bastante moderada, disse: “Quando a política penetra no recinto dos Tribunais, a Justiça se retira por alguma porta”.

Desde a Ação Penal 470 conhecida como “mensalão” que esta frase entrou na ordem do dia no Brasil. Começou a partir daí a saga dos juízes celebridades. Depois viria o “doutor” Sérgio Moro e seus procuradores amestrados instrumentalizando politicamente a Operação Lava Jato sob o beneplácito da mídia corporativa e de toda uma gama de liberais e reacionários, entre eles alguns que hoje reclamam de um suposto ativismo do ministro Alexandre de Moraes. Sérgio Moro fez política vergonhosamente e debochou da cara de todos nós. A frase de Guizot seguia colocando em dúvida nossas crenças na verdadeira virtude cega da justiça.

Em 2018 o bolsonarismo percebeu que havia uma forma alternativa de driblar a democracia para vencer uma eleição, bastava criar mentiras (também conhecida como fake news) e repeti-las à exaustão. Acertaram na mosca, venceram a eleição e se viram diante do desafio de sustentar durante quatro anos (preparando mais quatro) um arremedo de governo que optou claramente pelo deboche como estratégia de ação política. As fake news ganhavam sua institucionalidade.

O Brasil se transformou em um grande picadeiro com um palhaço medíocre encenando o papel de presidente com base na permanente ameaça ao Estado democrático de direito. Não precisava ser muito inteligente para perceber que o golpismo subiu ao poder com Jair Bolsonaro. Flertamos diariamente com falas e ações que desvirtuavam o jogo democrático e institucional. Em um ambiente político tão vulnerável como o criado pelo bolsonarismo seria necessário que os agentes do campo político institucional atuassem de maneira vigorosa em defesa da democracia e do equilíbrio entre os três poderes. Seria preciso que o sistema de freios e contrapesos funcionasse no sentido de afastar da República qualquer risco de ruptura institucional.

Contudo, o que entendo e pretendo refletir nas próximas linhas, é que falhamos nessa empreitada de manter o equilíbrio entre os poderes e a estabilidade institucional. Nos últimos quatro anos nos transformamos em uma “terra de ninguém”, com um presidente raivoso e golpista, um congresso refém de orçamentos secretos e um judiciário com vigorosos ensaios de iniciativas que flertaram tanto com a vaidade pessoal quanto com o autoritarismo. Essa receita certamente não daria um bom bolo.

Nos últimos anos um juiz da Suprema Corte vem se transformando em um personagem central da sociedade brasileira. Para alguns é um “filhote de ditador”, para outros, um “herói nacional”. Me refiro ao Ministro Alexandre de Moraes. Buscando uma análise a mais neutra possível (se é que isso é realmente possível) convido o leitor para acompanhar-me no desafio de buscar estabelecer uma narrativa sobre Alexandre de Moraes e seu papel na conjuntura atual da República brasileira.

Quando um juiz da suprema corte começa a se tornar famoso por excesso de ação (sem querer fazer juízo de valor sobre elas) alguma coisa está errada. Juiz ficar famoso não é bom em nenhuma circunstância. Juiz muito ativo é perigoso pelo fato de corremos o risco de naturalizarmos possível desequilíbrio entre os três poderes. O campo político já é ocupado pelos poderes legislativo e executivo, portanto, o bom senso manda que o judiciário haja com parcimônia ao ter que flertar com ações do campo político.

Mas estaria realmente Alexandre de Moraes agindo como um pequeno ditador como prega o ex-presidente e seus apoiadores? Estaria ele extrapolando o campo jurídico e entrando em questões políticas que não dizem respeito ao STF? Comecemos com uma interrogação básica: uma Corte constitucional é uma corte eminentemente jurídica ou também uma corte política? Por mais que se queira negar, uma corte constitucional é também um órgão político. E qual o melhor argumento para isso? Nossa própria Constituição. Ao prever a possibilidade de amplos setores da sociedade poderem recorrer ao STF, nossa Carta Magna transformou a Suprema Corte em uma instância última de apelação com função de responder a demandas políticas e criminais tanto de membros do Congresso Nacional, quanto de forças de segurança e de órgãos fiscalizadores da máquina pública.

Quanto aos apoiadores de Jair Bolsonaro, que reclamam do excesso de judicialização das questões políticas no Brasil, precisam ser lembrados que o STF só age quando provocado. Sobre isso se pronunciou, com razão, o ministro Luiz Fux: “Eu cada vez mais me conscientizo de que a judicialização da política e das questões sociais são uma expressão absolutamente equivocada. Porque a jurisdição não é uma função que possa ser exercida de ofício, é uma função provocada”.

Ou seja, o STF não age de ofício, só quando provocado. E quem tem provocado o STF nos últimos anos? Os parlamentares, cujas questões políticas foram eleitos para resolver internamente nas suas respectivas Casas legislativas, se não o fazem, alguém tem que fazer. Nos últimos anos, diversas decisões do ministro Alexandre de Moraes, foram tomadas com base em provocações tanto de parlamentares, como da Polícia Federal e da AGU, OAB ou PGR. Independente de qual tenha sido sua decisão ele esteve longe de agir como “ditador” como querem crer os bolsonaristas.

Durante a pandemia de COVID-19 Alexandre de Moraes tomou uma série de medidas que foram imprescindíveis para melhorar o caos social causado pelo vírus. Foi a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que ele suspendeu as restrições à Lei de Acesso a Informação. Em tempos pandêmicos é necessário esclarecer ao máximo a população sobre os fatos. Ainda vinculado à pandemia, Alexandre de Moraes, a pedido do próprio presidente Jair Bolsonaro, concedeu uma Medida Cautelar para afastar a exigência da Lei de responsabilidade Fiscal durante a Covid-19. Isso, certamente, ajudou de forma decisiva ao governo federal e não houve bolsonarista chamando-o de “ditador”.

Atendendo a uma solicitação que veio de vários governadores, Alexandre de Moraes suspendeu por seis meses as dívidas de diversos estados com a União. Consequentemente os recursos que os estados deixaram de usar no pagamento das dívidas foram destinados a ações de combate ao avanço do novo coronavírus. O Conselho Federal da OAB entrou em campo novamente atuando junto ao STF em defesa da sociedade. Diante dos desafios postos contra a pandemia seria necessário a autonomia dos Estados para agirem de forma mais rigorosa em relação ao isolamento social. Segue trecho da decisão de Alexandre de Moraes demonstrando clara preocupação com o respeito ao equilíbrio entre os poderes:

“Em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19”.

Porém, independentemente das ações tomadas durante a pandemia, um Inquérito de 2019, conhecido como “Inquérito das Fake News”, tendo Alexandre de Moraes como relator, teve o potencial de extrapolar o campo jurídico e colocar-se como fiel da balança da acirrada disputa política que se consolidou no Brasil com a ascensão de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Esse é o grande fato que coloca até hoje o ministro em julgamento por esquerdistas, direitistas liberais e bolsonaristas. O comportamento do ministro à frente do citado inquérito tem suscitado, corretamente, toda uma profunda reflexão não só sobre o ordenamento jurídico brasileiros, mas também como os poderes se equivalem e se respeitam em nome do equilíbrio democrático e da defesa do próprio Estado. Sem contar a porta que se abriu para o quase escatológico debate em torno dos limites da liberdade de expressão no Brasil.

Utilizado pelos bolsonaristas e pelo próprio Jair Bolsonaro como o grande motivo de suas ações de cunho golpista, o Inquérito das fake news também tem servido para colocar setores da esquerda diante do paradoxo de naturalizar a judicialização da política por parte de uma eminente representante do Estado burguês e de sua elite dirigente.

O Inquérito 4.781 (das fake news) caracteriza uma investigação impetrada pelo ministro Dias Toffoli (na época presidente do STF) em decorrência de denúncias de notícias falsas e caluniosas contra os membros do Supremo. Ao nomear o recém empossado Alexandre de Moraes como relator, Dias Toffoli cometeu, de partida, duas incongruências com potencial de contaminar todo o processo, a saber: (i) o Inquérito foi aberto de ofício contrariando o rito normal de que o STF, em casos como esses, deve ser demandado por órgãos como a Procuradoria Geral da República ou à Polícia Federal cabendo a eles a prerrogativa de iniciar as investigações; (ii) Ao nomear Alexandre de Moraes, Dias Toffoli quebrou outro protocolo quando a relatoria deveria ser resultado de um sorteio entre os magistrados.

Quanto ao fato do Ministério Público ou da Polícia Federal não terem tomado a iniciativa de apurarem as ameaças à Corte, não teria sido isso uma omissão desses órgãos que justificaria o ato de ofício por parte de Dias Toffoli? Ministros e seus familiares foram realmente ameaçados por parte de aliados do presidente Jair Bolsonaro, deveria o Supremo, pela ausência de iniciativa da PGR e da PF, não agir? Perceba que o debate sobre o tema é muito mais complexo do que nos faz ver as intrigas bolsonaristas.

Dias Toffoli justificou a abertura do Inquérito de ofício com base no artigo 43 do Regime Interno do STF. Eis o texto: “Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

Já temos aqui uma pequena polêmica de interpretação jurídica. Não teria forçado um pouco o ministro em sua interpretação sobre o artigo ao equiparar “ofensas com fake news contra ministros do STF” com “infração nas dependências do próprio tribunal”? Com a palavra os interpretes do Direito.

Certamente que algo que inicia com este grau de instabilidade corre o risco de ter que lidar, ao longo do tempo, com críticas de seus futuros réus. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo o procurador Fábio George Cruz da Nóbrega, esclarecendo ao que ele chamou de “vício de origem” do Inquérito das Fake News, afirmou: “Os ministros não podem concentrar diversos papéis, de vítima, investigador e julgador, porque isso quebra a imparcialidade do julgamento”.[i] Não vejo exagero na declaração do procurador. Contudo, em defesa do ministro Dias Tofolli, não custa lembrar que manifestaram apoio ao inquérito o Conselho Federal da OAB, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do trabalho (Anamatra).

Portanto, independentemente deste “vício de origem”, haveria espaço e necessidade na atual conjuntura política brasileira de abertura de um inquérito como este? Acredito que sim. Logo, o problema não está no conteúdo, mas na forma de como o inquérito partiu e vem sendo conduzido. Diante da avalanche de notícias falsas utilizadas na corrida eleitoral de 2018 (de kit gay a mamadeira de piroca) é incontestável que o sistema político e eleitoral brasileiro foi colocado à prova, sofreu sérios retrocessos e precisaria ser resguardado no pleito de 2022. Uma máquina de desinformação foi colocada, sem precedentes, em funcionamento no Brasil e o que vimos foi a naturalização de palavras de ordem contra o Estado Democrático de Direito e as instituições democráticas.

Um parlamentar, filho do presidente da República, afirmou o seguinte: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”. Em entrevista, esse mesmo parlamentar afirmou que a resposta do governo a uma suposta radicalização da esquerda seria respondida “via um novo AI-5”. Quando esse tipo de frase sai com naturalidade da boca de um agente tão próximo ao poder, é bom acender o sinal amarelo.

Mas como lidar com isso respeitando as normas do ordenamento jurídico e do devido processo legal assegurando a ampla e irrestrita defesa dos acusados? Essa é a grande questão a ser debatida: Na defesa do Estado e da segurança pessoal de seus agentes pode se usar um vale tudo jurídico? Afinal, não foi assim que agiu desde sempre os agentes do Estado burguês (ou aristocrático) desde os tempos da colônia? Não foi em nome da defesa do Estado ou de um anacrônico “princípio da Razão de Estado” que a ditadura instaurada em 1964 prendeu, torturou e matou? O fato de não ter contado com o apoio do Ministério Público órgão que, aliás, requereu o arquivamento dos autos mais de uma vez, não seria mais uma questão que se enquadra no tal “vício de origem” da parte do Inquérito das Fake News?

O ministro Edson Fachin foi bem cuidadoso sobre o tema quando propôs em seu voto algumas restrições ao inquérito. Segundo ele, o inquérito só poderia investigar manifestações que, “denotando risco efetivo à independência do Poder Judiciário, pela via da ameaça aos membros do Supremo Tribunal Federal e a seus familiares, atentem, assim, contra os Poderes instituídos, contra o Estado de Direito e contra a democracia”. Além disso, segundo Fachin, é necessário que o inquérito “observe a proteção da liberdade de expressão e de imprensa, nos termos da Constituição”. Nesse caso devem ser excluídos “matérias jornalísticas e postagens, compartilhamentos ou outras manifestações, inclusive pessoais, da internet, feitas anonimamente ou não, desde que não integre esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais”.

Edson Fachin buscou evitar conflitos que desdobrariam em polêmicas como as da rádio Jovem Pan e do youtuber Monark. Até o famoso jornalista norte-americano Glenn Greenwald entrou de gaiato na história e ao sair em defesa de Monark afirmou que “o Brasil estaria caminhando rapidamente a um autoritarismo”. Glenn Greenwald tenta reproduzir no Brasil uma lógica jurídica americana que não se respalda na tradição que se impôs depois da Carta de 1988. No Brasil as ideias que circulam na sociedade recebem mediações de valores presentes nessa mesma sociedade. Democracias também se constroem em torno de consensos civilizatórios e não somente em torno de uma imaginária hiper liberdade de expressão.

Temos, nesses citados casos, o grande paradoxo a ser encarado pelos progressistas. Em essência, a liberdade de expressão deve ser um dos pilares básicos de qualquer sociedade que se proponha democrática. Mas qual o limite dessa liberdade? Devemos ser tolerante com falas que incitem a violência ou coloquem em risco a democracia? Para isso o filósofo austríaco Karl Popper nos apresentou o chamado “paradoxo da tolerância”. Para ele, quando aceitamos os intolerantes (em nome de uma suprema liberdade de expressão) corremos o risco de destruir a sociedade tolerante.

A tolerância ilimitada torna as sociedades vulneráveis a ataques que podem efetivamente destruí-la. Quando sujeitos usam espaços de grande alcance de público para vomitar um volume de informações sabidamente equivocadas e cientificamente ineficazes confundindo setores vulneráveis da população, devem ser devidamente freados. Não podemos, entretanto, confundir algumas bravatas e destemperos de redes sociais, que não tenham potencial de colocar em perigo a ordem constitucional, com crimes contra o Estado. A linha pode até ser tênue entre uma coisa e outra, existe o código penal para quem se sentir ofendido, mas não é positivo flertarmos com uma sociedade em constante condição de insegurança jurídica.

Nesse caso, não nego que tem ocorrido certos exageros por parte de Alexandre de Moraes na condução do inquérito das Fake News. Entendo que medidas coercitivas sem ouvir a parte interessada não pode ser naturalizada como aconteceu em alguns casos. Como agente do Direito, Moraes não pode ofender aos direitos fundamentais da ampla defesa e do devido processo legal, previstos no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição. Não tenho razões para duvidar da reclamação de alguns advogados que afirmam estarem por muito tempo sem vistas e sem acesso à íntegra dos autos dos processos que sofrem seus clientes.

Por fim, cabe a pergunta: Temos que ser realmente condescendentes com sujeitos que pregam abertamente o golpe de Estado? Qual o limite civilizatório que equilibre a necessária liberdade de expressão com a disseminação de discursos que incitam o ódio e a violência contra poderes institucionais? Nesse momento, e até certo ponto de maneira correta, Alexandre de Moraes vem cumprindo um importante papel na defesa do Estado Democrático de Direito e da lisura de nosso sistema eleitoral. Nos últimos dias, os desdobramento dos fatos na vida real, a exemplo da tentativa de explosão de bombas, da invasão e destruição dos prédios dos três poderes (aliás, o bolsonarismo se mostrando bárbaro e fascista em estado puro) e da minuta golpista do ex-ministro Anderson Torres, confirmam que as ações do ministro Moraes, não obstante algumas filigranas jurídicas (que devem ser evitadas), se mostraram imprescindíveis para a manutenção de nossa democracia.

Tivéssemos um Ministério Público atuante e um Parlamento que deixasse de lado seu atávico fisiologismo corrupto e agisse incessantemente em defesa da democracia e do sistema eleitoral, que não precisaríamos de um Alexandre de Moraes exercendo tanto poder na República. Se não tivéssemos um ex-presidente medíocre e patologicamente golpista, que flertasse permanentemente com a ruptura institucional e que aceitasse de forma civilizada o resultado eleitoral, não precisaríamos de um Alexandre de Moraes exercendo tanto poder na República. O que o ministro Moraes faz é tão somente ocupar um espaço deixado pela incompetência dos outros dois poderes.

Quanto aos bolsonaristas que hoje esbravejam contra sua “liberdade de expressão”, seja em frente aos quarteis pedindo a ditadura militar ou apoiando projetos golpistas nos bastidores, a nova Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional foi criada justamente para cuidar de delitos que atentam contra o Estado democrático de Direito. Segundo a Lei, a pena para quem incita publicamente ao golpe militar e à intervenção militar é detenção de três a seis meses, ou multa. O mesmo vale para quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou animosidade delas contra os Poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.

Quando os grupos bolsonaristas foram às ruas protestar contra o resultado eleitoral, o Ministério Público Federal (MPF) enviou à Polícia Rodoviária Federal (PRF) e à Polícia Militar (PM) ofícios com orientações sobre os possíveis crimes praticados em ocorrências de interdição de espaços públicos.[ii] O que vimos foram as forças de segurança, incluindo as Forças Armadas (desde 1964 nunca estiveram tão ativos), em conluio com os golpistas. Tivéssemos uma polícia atuante e republicana, certamente não chegaríamos aos atos de 8 de janeiro e tampouco ficaríamos refém de decisões de um ministro do STF. Portanto, o poder hoje exercido por Alexandre de Moraes é principalmente um sintoma da fragilidade imposta à nossa democracia pelos quatro anos de um desgoverno golpista e autoritário.

Para a esquerda brasileira o grande desafio está em não cair na armadilha do oportunismo de ocasião. Não esqueçamos, Alexandre de Moraes será sempre um agente do Estado burguês agindo circunstancialmente dentro dos interesses deste mesmo Estado. Não se trata, portanto, em transformá-lo em vilão ou herói, mas em perceber que existe um paradoxo por trás das ações do ministro que deve ser acompanhado pela esquerda com a devida desconfiança de quem tradicionalmente está na condição de vidraça no contexto das relações de poder da sociedade burguesa e capitalista.

Não se trata, para a esquerda e para os progressistas do Brasil, de torcer como em um Fla-Flu (ou Ba-Vi) a favor ou contra um ministro do Supremo. Ele não é necessariamente um aliado só pelo fato de ser adversário de nosso adversário. A questão é muito mais complexa. É saber o que deixamos de fazer nos últimos anos que permitiu que chegássemos a essa situação em que um ministro da Suprema Corte possa (ou precise) exercer tanto poder na República. Teremos quatro anos pela frente para refletir sobre as necessárias reformas que efetivamente consolidem uma democracia sólida, igualitária e popular.


*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia. Autor, entre outros livros, de Golpe: o golpe como método político da elite brasileira (Kotter).

Notas


[i] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/inquerito-das-fake-news-no-stf-tem-vicio-de-origem-e-provas-contaminadas-diz-representante-de-procuradores.shtml

[ii] https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_paraiba/mpf-emite-orientacao-para-prf-e-pm-sobre-apuracao#:~:text=Incita%C3%A7%C3%A3o%20ao%20crime&text=A%20incita%C3%A7%C3%A3o%20ao%20golpe%20militar,a%20seis%20meses%2C%20ou%20multa

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