Putin, Xi e Biden (Foto: Sputnik/Aleksey Druzhinin/Kremlin | REUTERS/Jonathan Ernst)
O tabuleiro geopolítico está em movimento perpétuo – e nunca tanto quanto em nossa incandescente conjuntura atual
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*Tradução de Patricia Zimbres
Um fascinante consenso vem se formando nas discussões entre estudiosos chineses – inclusive entre os que fazem parte das diásporas asiática e americana: não apenas a Alemanha e a União Europeia perderam a Rússia, talvez de forma irrecuperável, mas a China ganhou a Rússia, que tem uma economia altamente complementar à sua, além de sólidos vínculos com o Sul Global/ Maioria Global, que podem vir a beneficiar e a ajudar Pequim
Enquanto isso, os incompetentes analistas de política externa atlanticistas ocupam-se em tentar mudar a narrativa sobre OTAN versus Rússia aplicando rudimentos de realpolitik.
A nova versão é que seria "insanidade estratégica" da parte de Washington esperar derrotar Moscou, e que a OTAN vem sofrendo de "fatiga dos doadores" à medida que o capanga de camiseta de Kiev "perde credibilidade".
Tradução: é a OTAN como um todo que vem perdendo toda e qualquer credibilidade, agora que sua humilhação no campo de batalha ucraniano vem se tornando dolorosamente óbvia aos olhos de toda a Maioria Global.
Além disso, "fadiga dos doadores" significa perder uma guerra da maior importância, e perder feio. Como o analista militar Andrei Martyanov vem incansavelmente insistindo, "o 'planejamento' da OTAN é uma piada. E eles têm inveja, eles morrem de inveja e de ciúme".
Um caminho plausível é Moscou se recusar a negociar com a OTAN – um mero puxadinho do Pentágono – e oferecer aos países europeus, individualmente, pactos de segurança com a Rússia, o que tornaria redundante sua necessidade de pertencer à OTAN. Isso garantiria a segurança de todos os países participantes e aliviaria as pressões de Washington sobre eles.
Daria para apostar que as principais potências europeias aceitariam a proposta, mas não a Polônia – a hiena da Europa – nem os chihuahuas do Báltico.
Paralelamente, a China poderia oferecer tratados de paz ao Japão, Coreia do Sul e Filipinas e, a partir daí, uma boa parte do Império das Bases dos Estados Unidos poderia desaparecer.
O problema, mais uma vez, é que os estados vassalos não possuem autoridade nem poder para aceitar qualquer tipo de acordo de garantia de paz. Empresários alemães, em off, afirmam ter certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Berlim pode vir a desafiar Washington e passar a fazer negócios com a parceria estratégica Rússia/China, o que beneficiaria a Alemanha.
Mas a regra de ouro ainda não foi alcançada: se um estado vassalo quiser ser tratado como um estado soberano, a primeira coisa a fazer é fechar os principais braços do Império das Bases e expulsar as tropas americanas.
O Iraque vem tentando fazê-lo há anos, sem sucesso. Um terço da Síria permanece sob ocupação americana – embora os Estados Unidos tenham perdido a guerra por procuração contra Damasco graças à intervenção russa.
O Projeto Ucrânia é um conflito existencial - A Rússia foi forçada a lutar contra um vizinho e parente próximo, luta essa que ela não pode se permitir perder. E, como potência nuclear e hipersônica, ela não perderá.
Mesmo que Moscou saia estrategicamente enfraquecida, seja qual for o resultado, são os Estados Unidos – na visão dos estudiosos chineses – que talvez tenham cometido seu pior erro estratégico desde a criação do Império: transformar o Projeto Ucrânia em um conflito existencial, e comprometer a totalidade do Império e de seus vassalos com uma Guerra Total contra a Rússia.
É por essa razão que não temos negociações de paz, e recusa-se até mesmo um cessar fogo. O único resultado possível para os dementes neocon-straussianos que mandam na política externa dos Estados Unidos é a rendição incondicional da Rússia.
Em um passado recente, os Estados Unidos podiam se dar ao luxo de perder guerras localizadas, como a do Vietnã e do Afeganistão, mas não podem ser dar ao luxo de perder uma guerra contra a Rússia. Quando isso acontecer, o que já está no horizonte, a Revolta dos Vassalos terá graves consequências.
Já ficou claro que, de agora em diante, a China e os BRICS+ - cuja expansão terá início na cúpula da África do Sul, no próximo mês – irão turbinar o enfraquecimento do dólar dos Estados Unidos. Com ou sem a Índia.
Não haverá uma moeda BRICS em um futuro iminente – como apontado em algumas excelentes observações desta discussão. O âmbito das operações é enorme, os sherpas estão apenas nas fases iniciais dos debates, e o grande traçado ainda não foi definido.
O enfoque BRICS+ irá se desenvolver a partir do aperfeiçoamento de mecanismos de pagamentos transfronteiras – algo que todos, desde Putin até a presidenta do Banco Central Elvira Nabiullina vêm ressaltando – até que, mais adiante, se chegue a uma nova moeda.
Essa moeda, provavelmente, será um instrumento de comércio, e não uma moeda soberana como o euro. Ela será projetada para competir com o dólar americano em transações comerciais, inicialmente entre os países BRICS+, e capaz de contornar o ecossistema hegemônico do dólar dos Estados Unidos.
A principal questão é por quanto tempo a economia falsa do Império – clinicamente desconstruída por Michael Hudson – conseguirá se sustentar nessa guerra econômica de espectro amplo.
Tudo é uma 'ameaça de segurança nacional' - No front da tecnologia eletrônica, o Império partiu para o vale-tudo para impor uma dependência econômica global, monopolizando direitos de propriedade intelectual e, como observa Michael Hudson, "extraindo renda econômica dos altos preços cobrados pelos chips para computadores de alta tecnologia, comunicações e produção de armamentos".
Na prática, muito pouco vem acontecendo além da proibição do fornecimento por Taiwan de valiosos chips à China, e do pedido de que a TSMC taiwanesa construa, o mais cedo possível, um complexo de fabricação de chips no Arizona.
No entanto, o presidente da TSMC, Mark Liu, observou que a fábrica enfrentou uma carência de trabalhadores com o "nível de especialização exigido pela instalação de equipamentos em instalações de produção de semicondutores". Por essa razão, a tão celebrada fábrica de chips da TSMC no Arizona não começará a produzir antes de 2025.
A principal reivindicação da OTAN Império-Vassalos é que a Alemanha e a União Europeia imponham uma Cortina de Ferro Comercial contra a parceria estratégica Rússia-China e seus aliados, garantindo assim um comércio "com eliminação de riscos".
Como seria de se prever, a Terra dos Think Tanks pirou de vez, e os picaretas do American Enterprise Institute começaram a espumar e dizer que nem a "eliminação de riscos" é suficiente: o que os Estados Unidos precisam é cortar relações com a China.
Isso, aliás, se encaixa com o fato de Washington quebrar todas as regras do livre comércio internacional e também do direto internacional, e tratar todas as formas de comércio e de transações financeiras, bem como o SWIFT, como "ameaças à segurança nacional" e ao controle econômico e militar dos Estados Unidos.
O padrão que temos pela frente não é a China impondo sanções comerciais à União Europeia – que continua sendo um dos maiores parceiros comerciais de Pequim, e sim Washington impondo um tsunami de sanções contra os países que ousem romper o boicote comercial liderado pelos Estados Unidos.
A Rússia-Coreia do Norte se encontra com a Rússia-África - Nesta última semana, o tabuleiro de xadrez assistiu a duas jogadas que viraram o jogo: a prestigiada visita do Ministro da Defesa russo Sergei Shoigu à Coreia do Norte e a cúpula Rússia-África, em São Petersburgo.
Shoigu foi recebido em Pyongyang como um astro de rock. Ele teve um encontro pessoal com Kim Jong-Un. A boa-vontade mútua leva à forte possibilidade de a Coreia do Norte vir a se juntar a uma das organizações multilaterais que abrem caminho para a multipolaridade.
Seria possível dizer que isso seria uma União Econômica Eurasiana (UEEA) ampliada, que poderia começar com um acordo comercial UEEA/Coreia do Norte, como os já assinados com o Vietnã e Cuba.
A Rússia é a maior potência da UEEA, e pode ignorar as sanções contra a Coreia do Norte, enquanto os BRICS+, a OCX e a ASEAN ainda hesitam demasiadamente. Uma alta prioridade para Moscou é o desenvolvimento do Extremo Oriente, mais integração com ambas as Coreias e a Rota Marítima Setentrional, ou Rota da Seda do Ártico. A Coreia do Norte, então, seria um parceiro natural.
Conseguir que a Coreia do Norte se junte à UEEA faria milagres para os investimentos da ICR: um tipo de cobertura com que, por enquanto, Pequim ainda não pode contar quando investe na Coreia do Norte. Esse poderia se tornar um caso clássico de aprofundamento da integração ICR-UEEA.
Os escalões mais elevados da diplomacia russa estão fazendo todo o possível para aliviar as pressões sobre a Coreia do Norte. Em termos estratégicos, esse é um verdadeiro divisor de águas: imaginem o imenso e bastante sofisticado complexo industrial-militar norte-coreano aliado à parceria estratégica Rússia-China, virando de ponta-cabeça todo o paradigma Ásia-Pacífico.
A Cúpula Rússia-África em São Petersburgo, em si, foi um outro divisor de águas que deixou apoplética a mídia convencional do Ocidente. Tratou-se, nada mais nada menos, de a Rússia anunciar publicamente, em palavras e em atos, uma parceria estratégica ampla com toda a África, apesar de a totalidade do hostil Coletivo Ocidental lutar uma Guerra Híbrida – e de outros tipos – contra a Afro-Eurásia.
Putin mostrou que a Rússia detém uma fatia de 20% do mercado global de trigo. Nos primeiros seis meses de 2023, ela já exportou 10 milhões de toneladas de grãos para a África. A partir de agora, a Rússia irá doar a Zimbábue, Burkina Faso, Somália e Eritréia entre 25 e 50 milhões de toneladas de grãos cada pelos próximos 3 a 4 meses.
Putin detalhou a totalidade do programa, desde a aproximadamente 30 projetos de energia espalhados por toda a África até a expansão das exportações de petróleo e gás e "aplicações não-energéticas da tecnologia nuclear, inclusive na medicina", a inauguração de uma zona industrial russa próxima ao Canal de Suez, com produtos a serem exportados para toda a África, e o desenvolvimento da infraestrutura financeira africana, incluindo conexões com o sistema de pagamentos russo.
Também foi da maior importância Putin ter saudado o estreitamento de vínculos entre a UEEA e a África. Um painel denominado "UEEA-África: Horizontes de Cooperação", examinou as possibilidades, entre elas uma maior ligação do continente com os BRICS e com a Ásia. Uma avalanche de acordos de livre comércio pode estar sendo programada.
O âmbito do fórum foi impressionante. Houve painéis de "des-neocolonização", tais como o "Alcançar a Soberania Tecnológica por meio de Cooperação Industrial", ou o "A Nova Ordem Mundial: do Legado do Colonialismo até a Soberania e o Desenvolvimento".
E, é claro, o Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul (CITNS) também foi discutido. Grandes atores, como Rússia, Irã e Índia, tomaram a iniciativa de promover sua crucial extensão até a África, escapando das fronteiras marítimas da OTAN.
Longe da frenética atividade do fórum de São Petersburgo, o Níger passou por um golpe militar. Embora o resultado final ainda seja indeterminado, é possível que o Níger venha a se juntar a seu vizinho Mali na reafirmação de sua independência política com relação a Paris. A influência francesa também vem sendo pelo menos "ressetada" na República Centro-Africana e em Burkina Faso. Tradução: A França e o Ocidente vem sendo expulsos de todo o Sahel, passo a passo, em um irreversível processo de descolonização.
Cuidado com os Pálidos Cavalos da Destruição - Todas essas movimentações no tabuleiro de xadrez, da Coreia do Norte até a África e a guerra dos chips contra a China, são de importância tão crucial quanto a humilhação da OTAN na Ucrânia que se desenha no horizonte. Mas não apenas a parceria estratégica Rússia-China, como também muitos atores importantes de todo o Sul Global/Maioria Global têm pleno conhecimento de que Washington vê a Rússia como um inimigo tático, na preparação para a Guerra Total contra a China.
Nas atuais circunstâncias, a tragédia no Donbass, ainda sem solução, mantém o Império ocupado e longe da Ásia-Pacífico. Mas Washington, sob o comando dos dementes neocons-straussianos, se vê cada vez mais atolada no Beco do Desespero, tornando-se ainda mais perigosa.
Enquanto isso, a "selva" do BRICS+ turbina os mecanismos necessários para deixar de lado o "jardim" ocidental unipolar, à medida que uma Europa impotente é levada à beira do abismo, forçada a se separar da China, dos BRICS+ e do que de fato é a Maioria Global.
Não é preciso ser um meteorologista experiente para ver para que lado da estepe o vento sopra – enquanto os Cavalos Pálidos da Destruição pisoteiam o tabuleiro e o vento começa a uivar.
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