Por JORGE FELIX*
A morte do economista polonês ocorre justo quando o mundo assiste perplexo – mas bem avisado por ele – aos efeitos da catástrofe ecológica anunciada por décadas
A notícia da morte de Ignacy Sachs, em Paris, aos 96 anos, nos chega com a força de um evento extremo sobre o ambiente terrestre. Coincidência ou não, seu desaparecimento ocorre justo quando o mundo assiste perplexo – mas bem avisado por ele – aos efeitos da catástrofe ecológica anunciada por décadas. Não só esse tema se faz presente no momento. Outros assuntos aos quais Ignacy Sachs dedicou sua vida longa estão pautados pela decadência da diplomacia e da ciência diante da ascensão fascista impulsionada por um capitalismo de desconstrução revivido desde o fim dos anos 1970. Paz, desenvolvimento, fome, trabalho, inclusão, civilização foram as hashtags perenes na obra desse polonês cidadão do mundo.
Em seu A terceira margem, em busca do desenvolvimento, Ignacy Sachs relata o encontro com outro autor que insiste em se manter atual no século XXI para a infelicidade daqueles adeptos da fantasia de que é possível o mundo ir por ele mesmo. Trata-se de Josué de Castro. Talvez seja mais do que pertinente lembrar de um pelo outro nessa fase do Brasil e do planeta. Ignacy Sachs lembra um encontro em Genebra, em 1963, na Conferência das Nações Unidas sobre Ciência e a Técnica a Serviço do Desenvolvimento, quando Josué de Castro, então presidente da delegação do Brasil, solicitou a ele que ajudasse a organizar um apelo dos cientistas presentes ao evento em favor da paz. Josué de Castro pretendia levar o texto à conferência sobre o desarmamento que, simultaneamente, tinha lugar ali perto, no Palais des Nations.
Se reuniram, então, os dois com Michal Kalecki, presidente da delegação polonesa, Abba Eban, ex-ministro das Relações Exteriores de Israel, e Gabriel Ardant, acadêmico soviético. Foi nesse episódio que Josué de Castro tornou-se candidato ao Nobel da Paz. Não emplacou, como sabemos. Mas, em 1973, Josué de Castro já estava apaixonado pelo conceito do ecodesenvolvimento, elaborado por Ignacy Sachs. Em resumo, um conceito que desmente a possibilidade de solução dos problemas socioambientais pela tese do decrescimento, mas, sim, oferece maior ênfase à qualidade do desenvolvimento. Essa elaboração teórica de Ignacy Sachs, segundo ele mesmo, é um reencontro com o que há de mais inovador em Josué de Castro, ou seja, a combinação do social e do ecológico em seu Geografia da fome. De fato, até sua publicação em 1946, nenhuma literatura havia ousado em emprestar tamanha complexidade, na área das ciências sociais, ao analisar um objeto. E que objeto! A fome.
Ignacy Sachs mesmo escreveu em Caminhos do desenvolvimento sustentável que o conceito de ecodesenvolvimento, ou seja, a tentativa de definir estratégias de desenvolvimento que sejam socialmente úteis, ecologicamente sustentáveis e economicamente viáveis, inscrevia-se na linha direta da preocupação de Josué de Castro. Esse diálogo intelectual profícuo tem origem na concepção de ciência e de sua percepção para os dois. É Luiz Carlos Bresser-Pereira quem, ao resumir a obra de Ignacy Sachs em artigo publicado na Revista de Economia Política, logo destaca essa qualidade ao sublinhar que o economista polonês “jamais se deixou levar pelo belo canto da ciência” e deixar-se escabreado dos valores morais. “Nada de parar o crescimento enquanto houver pobres e desigualdades sociais gritantes; mas é imperativo que esse crescimento mude no que se refere a suas modalidades e sobretudo, à divisão de seus frutos. Precisamos de um outro crescimento para um outro desenvolvimento”, cita Bresser-Pereira, de A terceira margem.
Para Ignacy Sachs, diz Bresser-Pereira, a economia é teoria e é também forma de pensar associada à prática. “Quando nós deixamos de lado os modelos de teoria pura e nos voltamos para os mecanismos de ação mais ‘realistas’ de um sistema econômico particular em um quadro dado de circunstância, o uso de modelos se torna efetivo, e, na nossa opinião, recomendável”, ressalta Ignacy Sachs. Mas defende que a economia jamais pode se desvincular das Ciências Sociais, pois essas “têm essencialmente um valor heurístico de nos ajudar a pensar. Ajudam a fazer as perguntas certas, cuja pertinência e articulação não são nada evidentes e que não viriam ao espírito de um observador pouco experiente. Mas as respostas a essas perguntas só podem vir da práxis”.
É legítimo afirmar que a economia de Ignacy Sachs – alinhada a de Josué de Castro – reverbera em economistas da atualidade ao oferecerem pesquisas baseadas em metodologias das Ciências Sociais, como etnografia, observação direta ou participante, ou seja, muita mais um economista que está no lugar onde o fenômeno se dá do que o economista preso a telas de computador elaborando gráficos, modelos matemáticos ou exageradamente retesado por divagações teóricas. Josué de Castro teria sido esse precursor com Geografia da fome e Ignacy Sachs o seguiu em suas viagens e experiências profissionais por Índia, Brasil, sobretudo, França, enfim, mundo afora. Poder-se-ia citar aqui como contemporâneos seguidores bem-sucedidos dessa escola os prêmios Nobel Esther Duflo e Abhijit V. Banerjee, por exemplo, entre outros.
Em 2009, por ocasião da Conferência do Clima de Copenhague, conversei longamente com Ignacy Sachs sobre sua economia da biocivilização. Na época, eu integrava a cátedra que leva o seu nome instituída na PUC-SP. Ele acreditava que as gerações futuras, por dominarem um conhecimento maior, decorrência da amplitude de circulação da informação proporcionada pela web, seriam melhores e jamais deveriam ser percebidas como um retrocesso. Ignacy Sachs pouco conseguiu vivenciar intelectualmente a ascensão do novo fascismo. Ele, no entanto, apostava que o sistema produtivo, ao invés de incorporar a tese do decrescimento, poderia incorporar a produção de pequenos proprietários rurais no padrão sustentável e no processamento de biomassa, isso implicaria em recorrer a trabalhos intensivos em conhecimento, pesquisa & desenvolvimento e otimizaria recursos naturais. Ele, evidentemente, estava longe de ser ingênuo sobre os desafios de interesses financeiros sobre essa perspectiva. No entanto, transformar as ameaçadoras crises de alimentos e de energia em oportunidades para avançar rumo à biocivilização seria, para ele, inexorável.
Como lembra Bresser-Pereira, Sachs pensava o mundo como uma nave espacial, na qual, seguindo o conceito de antropoceno, muito em voga hoje em dia, seriam necessários cinco tarefas: o planejamento (bem diferente de planificação), a revolução energética, a revolução verde, a revolução azul (produção marítima) e a cooperação internacional. Duas pré-condições para executar essas tarefas, para Ignacy Sachs, seriam a melhoria do “controle social da economia social” e uma ressignificação do lugar do trabalho na vida cotidiana, às opções relativas à produtividade. “É preciso introduzir nessa discussão a questão da repartição equânime da carga de trabalho entre todos os que desejam trabalhar”. E completou: “O ‘lazer’, para aquele que trabalha, e o ‘ócio forçado’, para aquele que não encontra trabalho, não são, nem de longe, sinônimos”. Em resumo, defendia uma reorganização flexível dos tempos da vida.
Em termos macroeconômicos, essas tarefas só seriam possíveis se o mundo, que saiu da Segunda Guerra Mundial com a pauta do pleno emprego como objetivo social central, planejamento e “Estado protetor como complemento” promovesse um certo retorno “corrigido” ou “melhorado” os excessos de estatismo ou voluntarismo que dependeriam de frear as soluções tecnocráticas, muitas vezes, ou quase que hegemonicamente, homologadas pelas urnas, comprometendo um ambiente democrático – no sentido realmente coletivo e igualitário. A grande angústia de Sachs, porém, era que a nave Terra tinha pouco tempo para esperar por tudo isso: “A política dos pequenos passos não nos salvará”.
*Jorge Felix é jornalista e professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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