Imagem: Alexey Demidov
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No último ano foram resgatadas 739 pessoas em situação de servidão no estado de Goiás
Dados do Ministério do Trabalho e Emprego, divulgados na segunda semana do mês de janeiro de 2024, apontam que o estado de Goiás lidera o ranking do trabalho análogo ao escravo no Brasil. Os números levantados no último ano, a partir dos registros de libertação de pessoas em cativeiros, por parte dos fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, evidenciam que em solo goiano foram resgatadas 739 pessoas em situação de servidão, em seguida aparece Minas Gerais com 651 pessoas e, fechando o nefasto podium, surge São Paulo com 392 pessoas.
Ainda em 2023, estive no Rio Grande do Sul, na região de Bento Ribeiro, onde trabalhadores foram resgatados do cativeiro após um daqueles conseguir fugir e denunciar a existência do servilismo na colheita da uva e na produção do vinho, bebida que é uma das principais mercadorias produzidas na região da Serra Gaúcha.
O crime de submeter uma pessoa ao trabalho análogo ao escravo é descrito no artigo 149 do Código Penal Brasileiro como sendo “caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto.” A lei determina que é crime submeter alguém à condição de trabalho análogo à escravidão e que também é punível por norma jurídica qualquer pessoa que atue para impedir o direito de ir e vir do trabalhador que esteja nessa condição.
Além do Código Penal Brasileiro, a portaria 1.293 de 2017 do Ministério do Trabalho e Emprego também traz esclarecimentos acerca da definição e punição no tocante ao trabalho que se assemelha a escravidão no país. Veja o que diz o texto: “Também é punido com as mesmas penas aquele que, com o fim de reter o trabalhador: (a) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; (b) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho; ou (c) retém documentos ou objetos pessoais do trabalhador.”.
O conceito de trabalho tem sido um tema que tem ocupado um bom tempo das minhas leituras e pesquisas. As referências que farei aqui de forma mais direta para uma melhor fluidez do texto estão em David Ricardo e também em Karl Marx, que afirma que o trabalho é uma dimensão ineliminável da vida humana, isto é, uma dimensão ontológica fundamental, pois, por meio dele, o ser humano cria, livre e conscientemente, a realidade, bem como o permite dar um salto da mera existência orgânica à sociabilidade. O trabalho é fundamental para constituição do ser humano como ele é. Ou seja, a humanidade e o mundo como o conhecemos é construída e mediada dentre outras dimensões pelo trabalho, produzindo a vida social e a individual. Mas se o trabalho é algo indissociável da humanidade, o trabalho escravizado ou aquele análogo ao escravo não.
Memórias da plantação
Eu tive contato com a realidade do trabalho análogo ao escravo ainda na adolescência, quando morava no Sul do Mato Grosso, lá estive num cativeiro, onde se encontravam trabalhadores/as submetidos/as ao servilismo. O local ficava sob a coordenação do meu pai, que exercia a função de gato, individuo responsável pelo recrutamento de trabalhadores/as para a servidão. Naquele lugar pude ver de perto a situação de desumanização dos seres humanos pelo trabalho.
O campo brasileiro lidera o número de resgatados desse tipo de servidão, evidenciando os traços da chamada modernização conservadora no país. O capitalismo agrário brasileiro e latino-americano são democráticos quando o assunto é manutenção da escravidão ou situação que se pareça com isto. De acordo com os dados, o cultivo de café, com 300 pessoas, seguido pelo plantio de cana-de-açúcar, com 258 indivíduos foram os dois setores em que mais pessoas foram libertadas do julgo da escravaria. Vale ressaltar que, os relatos de abuso não se resumem ao campo, pois há registros de que o trabalho análogo ao escravo acontece também nas casas de classe média, em fábricas improvisadas, condomínios de luxo, provando que aquele tipo de trabalho ainda é recorrente no Brasil.
“Arbeit macht frei”
Em “Boa esperança”, composição de Leandro Oliveira, mais conhecido como Emicida, ele relata que “O trabalho liberta” (ou não)… Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu – extinção”. Com a ideia de que o trabalho edifica o ser humano é possível perceber como a ideologia do modo de produção social capitalista, captura as mentes e os corpos das pessoas, que muitas das vezes ignoram o fato de que o Estado brasileiro é campeão no quesito trabalho análogo ao escravo.
Traços de modernização conservadora
Foi o sociólogo estadunidense Barrington Moore Junior o responsável por elaborar o conceito de modernização conservadora. Moore buscava as raízes do modelo de desenvolvimento capitalista na Alemanha e no Japão, caracterizando que as revoluções burguesas nesses países teriam se dado de cima para baixo. Para o cientista social e historiador, o que houve nessas nações foi um pacto político entre a burguesia e os terratenentes, para que houvesse uma modernização na configuração do Estado sem alterações estruturais na classe dominante.
Em tempo, vale destacar, conforme apontam Pires, M. J. de S., & Ramos, P. (2017), que os pensadores nacionais utilizam o termo modernização conservadora, na maioria das vezes sem as devidas mediações históricas e críticas, por isso é preciso cautela ao transpor um conceito gestado a partir de uma dada realidade social para outra, com características específicas, como é o caso brasileiro. Feita a ressalta, fica claro que, a forma como se deu o desenvolvimento do capitalismo racial no Brasil, de base dependente, desigual e combinado, manteve a estrutura fundiária, gestada ao longo dos séculos, consolidado juridicamente pelo Estado por meio da Lei de Terras (1850), mantendo-se a concentração fundiária mormente nas grandes unidades de exploração agropecuária.
Esse pacto criminoso entre o Estado, os terratenentes e a nascente burguesia local não configurou uma mudança nas relações de poder político do Estado nacional. Essa situação, que é inaugurada durante o processo de “escravidão plena” (1530 -1850) e também no decorrer do “escravismo tardio” (1850 -1888) (Clóvis Moura), evidencia que a existência de trabalho análogo ao escravo é fundamental para o regime de acumulação capitalista, especialmente na forma específica do capitalismo racial brasileiro.
Importante destacar que não há crítica moral ao capitalismo, pois a crítica deve ser material. A superexploração de pessoas por meio do trabalho análogo ao escravo, e ao ler tanto Marx quanto Ruy Mauro Marini (1969), fica claro que a intensidade do trabalho, o prolongamento da jornada (medida efetivada seja pela manutenção forçada da trabalhadora na casa dos patrões ou do trabalhador no campo, sem receber nada por isso) e a apropriação feita pelo capital do fundo de consumo do labor, configuram um aumento da taxa de exploração da força de trabalho, da forma como conceituou o próprio Karl Marx (2013) em O capital.
O trabalho análogo ao escravo é perpetuado por meio de uma brutal exploraçãoe manda as favas qualquer ideia de humanidade. Por isso não se vê notas de repúdio por parte das entidades representativas dos setores dominantes da sociedade, como a FIEG (Federação das Indústrias do Estado de Goiás) ou da Sociedade Rural Brasileira, sobre o aumento exorbitante no índice de trabalhadores/as resgatados/as do trabalho análogo ao escravo. Na lógica do capitalismo racial brasileiro de desenvolvimento desigual e combinado, tudo é mercadoria, em especial a força de trabalho, sendo assim se essa for escravizada, melhor para o regime de acumulação.
Fica claro que como aponta Angela Davis, não há liberdade quando existe necessidade. Pois as pessoas que são levadas para serem submetidas a servidão, estão na maioria das vezes numa situação de extrema necessidade, que até propostas de emprego que se mostram perigosas para própria vida delas são aceitam.
O meme abaixo é uma ilustração disso:
Tanto Ruy Mauro Marini como Karl Marx fazem análises concretas da situação concreta, ambos trazem apontamentos que possibilitam uma visão crítica dos dados do Ministério do Trabalho e Emprego, porém há uma particularidade para se pensar o caso brasileiro: o capitalismo racial de desenvolvimento desigual e combinado que se instaura nos trópicos, que agudiza ainda mais as relações de exploração, desembocando numa superexploração da força de trabalho, e essa categoria de superexploração tem ainda no corpo negro o alvo preferencial, pois são pessoas negras, as que mais estão submetidos/as ao trabalho análogo ao escravo.
Fica evidente com isso que, em termos econômicos, o racismo é uma valiosa arma na efetivação da superexploração do trabalho no Brasil. E as histórias raciais num país de capitalismo racial de base dependente, com desenvolvimento desigual e combinado, não passam de superestrutura, uma cobertura, uma surda emanação ideológica revestindo numa realidade econômica, social, política e psíquica. (FANON, 2022).
Por fim, fica límpido e transparente que, a força motriz do capitalismo racial não foi a mão invisível do mercado, mas sim as correntes visíveis da violência sancionada pelo Estado, que permanecem até hoje nas formas “modernas” de trabalho em Goiás e no Brasil. A pergunta que eu sempre faço é, até quando?
*Edergênio Negreiros Vieira é doutorando em sociologia na Universidade de Brasília (UnB).
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