1. “A verdade vos libertará”
O lado proibido do clã Bolsonaro vem à tona
BRASÍLIA, 20 DE OUTUBRO DE 2020
Os gritos que vinham do gabinete presidencial no início da noite deixaram os funcionários do terceiro andar do Palácio do Planalto apreensivos. Jair Bolsonaro espumava. Era fim de expediente, e ninguém entendia direito o que estava acontecendo. O presidente tinha cumprido a agenda. O último compromisso, por volta das cinco da tarde, foi com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
Passados mais de sete meses de pandemia, o Brasil, que fechava aquela terça-feira com um total de 154 888 mortos de covid-19 desde o surgimento do vírus, já estava entre os países com as piores estatísticas da doença. Apesar de tudo, aqueles eram dias de certa estabilidade nos casos e nos óbitos. O que o país precisava era se organizar para comprar as vacinas que estavam sendo produzidas — logo elas estariam prontas e seriam uma questão decisiva para muitos brasileiros. No Ministério da Saúde, havia quem soubesse dessa realidade. Por isso, naquele 20 de outubro de 2020 a pasta anunciou a aquisição de 46 milhões de doses da CoronaVac, o imunizante que estava sendo produzido em uma parceria entre o Instituto Butantan paulista e a empresa chinesa Sinovac.
As semanas eram tensas nos arredores do gabinete do presidente. Bolsonaro não queria saber de compra de vacina alguma e brincava com a saúde dos brasileiros defendendo o uso de medicamentos ineficazes como cloroquina e ivermectina. Só em junho de 2020, 92 servidores do palácio foram diagnosticados com covid-19.1 Uma pessoa que testasse positivo e recorresse ao serviço médico do prédio arriscava sair de lá com uma receita de cloroquina, apesar de o enorme contingente de cientistas em todo o mundo já ter descartado o uso desse medicamento para a doença. E nos corredores do terceiro andar, pobre de quem usasse máscara — certamente seria visto como um crítico de Bolsonaro. Quem não defendesse o governo, inclusive pondo a própria vida em risco ao dispensar a máscara, era malvisto e teria de enfrentar as consequências. Inclusive, perseguição.
No dia seguinte, 21 de outubro, o Senado iria sabatinar o primeiro indicado para o STF. De modo imprevisível, o presidente havia indicado o desembargador Kassio Nunes Marques, do TRF-1, deixando para trás um grupo de nomes conhecidos e bastante cotados. Ao mesmo tempo, inconsistências no currículo do candidato, entretanto, ameaçavam sua aprovação.
Mas as preocupações de Jair Bolsonaro eram outras. Dias antes ele recebera os filhos Flávio e Eduardo já nas primeiras horas da manhã. Os funcionários do palácio notaram que até no estacionamento havia um esquema de segurança diferente, enquanto na porta do gabinete dois Dragões da Independência, homens da cavalaria de guardas do Exército encarregados de proteger as instalações da Presidência da República, reforçavam a entrada para impedir o ingresso de algum desavisado. Café, água, telefonemas, nada disso interromperia a reunião. O motivo de tanto cuidado logo se espalhou pelos corredores: os três estariam discutindo a investigação que o Ministério Público do Rio de Janeiro estava fazendo sobre o primogênito.
Naquela tarde de 20 de outubro, a ira presidencial se dirigia aos promotores que haviam entrado com uma denúncia criminal contra Flávio e até com um pedido de cassação do mandato do primogênito de Bolsonaro. Na véspera, o MP-RJ protocolou no Tribunal de Justiça do Rio um documento de 291 páginas que apontava o senador como líder de uma organização criminosa que operava em seu antigo gabinete da Assembleia Legislativa. Além da papelada — um calhamaço que reunia uma série de depoimentos,
dados bancários e telefônicos —, havia um com vídeos e
documentos. Flávio era acusado de um desvio de 6,1 milhões de
reais dos cofres públicos do estado. A denúncia foi apresentada em
sigilo, mas, não se sabe como, o presidente teve acesso a ela.
Aquele momento era esperado havia meses, a despeito dos
esforços do presidente para evitar que ele chegasse. A investigação
era sobre o filho, é verdade, mas o pai esteve no comando o tempo
todo: opinou sobre a escolha dos advogados, com os quais discutiu
o assunto em várias ocasiões. Marcou um encontro da defesa com
os chefes da inteligência e do Gabinete de Segurança Institucional
da Presidência para estabelecer estratégias, e chegou a enviar
convites aos procuradores de Justiça do Rio de Janeiro,
responsáveis pela apuração do caso, para conversar com ele no
Palácio do Planalto.
Bolsonaro tentou de todas as maneiras evitar que o filho fosse
denunciado. Se, por um lado, o presidente não conteve a fúria
diante do círculo íntimo, por outro, não foi às redes sociais defender
o primogênito ou acusar o MP. A denúncia só veio a público mais de
duas semanas depois, em 4 de novembro de 2020.
Oitocentos e onze dias, ou seja, dois anos e dois meses: esse foi
o tempo que os procuradores de Justiça do Rio levaram para
concluir a investigação. Flávio Bolsonaro foi apontado como líder de
uma quadrilha que exigia cerca de 90% dos salários de seus
funcionários de gabinete. Foram apresentadas provas contra um
núcleo de doze pessoas, a maioria das quais nunca trabalhou para
o então deputado — eram o que o brasileiro conhece por
“funcionários-fantasmas”. Por uma mesada, essas pessoas
sacavam e entregavam praticamente todo o salário a Fabrício
Queiroz, subtenente da reserva da PM-RJ, ex-assessor de Flávio e
amigo de longa data de Jair. Com dinheiro vivo, o primogênito do
presidente pagava despesas pessoais, comprava imóveis e injetava
esses recursos no caixa de uma loja de chocolates de sua
propriedade em um shopping da Zona Oeste do Rio, para fazer a
lavagem do dinheiro.
Mas essa síntese não faz jus à história toda. Ao longo dos mais
de dois anos em que o caso esteve tramitando, as provas reunidas
eram tantas que elas passaram a ser deslocadas pelos corredores
do MP em um carrinho. A denúncia, minuciosa, apresentava Flávio
no topo da organização e rastreava todo o dinheiro, do pagamento
aos supostos assessores até o retorno para os bolsos do
parlamentar.
Quando li o documento, em novembro de 2020, senti que faltava
alguma coisa. Recebi um arquivo digital por e-mail, sigilosamente,
junto com outros colegas do jornal O Globo, onde trabalhava desde
o início de 2018. Eram dias de reportar de casa para prevenir a
contaminação do coronavírus e dependíamos da ajuda de fontes em
off, como nos referimos aos colaboradores anônimos durante as
investigações. Como a denúncia era sigilosa, só as partes
envolvidas tinham acesso formal à investigação.
Do ponto de vista jurídico, o documento podia atender aos
quesitos para denunciar os crimes de Flávio ao Judiciário. Mas a
história era maior do que aquelas quase trezentas páginas. Mesmo
que não fosse a intenção dos procuradores — já que por lei apenas
a Procuradoria-Geral da República poderia investigar o presidente
—, no carrinho com os autos existiam diversas informações que
indicavam o papel de Jair no esquema. Já havia muito que se
comentava, à boca miúda, a preocupação do mandatário com o
caso do filho. Corriam piadas de que ninguém podia acusá-lo de não
ser um bom pai. Pouco se observou, porém, que a preocupação de
Jair Bolsonaro era sobretudo consigo próprio. Ele mesmo dizia que
tudo aquilo era para atingi-lo. Por mais de uma vez, desde que
assumira a Presidência, havia vociferado que “não seria preso” após
deixar o cargo.
Mais do que o mandato de Flávio, o que parecia estar em jogo era
a revelação de uma face pouco conhecida do clã. Fatos com
potencial de fazer com que fosse por água abaixo o discurso de que
os Bolsonaro “defendiam a família”, combatiam a corrupção e
simbolizavam o “fim da mamata” para a imprensa e para os artistas
que recebiam recursos por meio da Lei Rouanet — bravatas que,
jogadas nas redes sociais, ajudaram o patriarca a chegar à Presidência da República. A realidade, sabida no círculo mais
íntimo, ameaçava o futuro político da família e de seu entorno. Em
meio à papelada sobre o senador, surgiram dados que conectavam
o esquema aos três casamentos do presidente, a quatro filhos, a
dezenas de parentes, a alguns ministros e à formação do patrimônio
dos Bolsonaro, que ultrapassa 20 milhões de reais. E também
apontavam para a proximidade da família com o ex-capitão do Bope
Adriano da Nóbrega, líder de uma milícia em Rio das Pedras,
acusado de uma série de assassinatos.
Todas as pessoas mais próximas de Jair Bolsonaro estavam de
um jeito ou de outro associadas a um esquema que tinha até nome
próprio. Por muitos anos, quem emprestava o nome e o número do CPF para figurar como assessor parlamentar de algum Bolsonaro
aderia automaticamente ao sistema que os participantes chamavam
de o “Negócio do Jair”. Funcionava como uma espécie de
corporação e permitiu ao clã forjar um estilo de vida e uma imagem
pública que levariam Jair ao cargo mais alto da República.
Em reportagens investigativas, coletivas ou individuais, procurei
seguir os rastros de um caso que tem muitos desdobramentos e
ramificações, além de lacunas ainda maiores, mas cuja origem é
bastante clara. Não é difícil entender que a real preocupação dos
Bolsonaro era de que o Brasil descobrisse a vida secreta da família.
Um personagem chamado Jair Bolsonaro
Conheci pessoalmente o então deputado federal Jair Bolsonaro por
acaso, em setembro de 2013. Duvido que ele vá se lembrar.
Naquela época eu trabalhava em O Globo e, com Chico Otávio,
colega do jornal, caminhava em direção ao Clube da Aeronáutica,
no centro do Rio.
Acredito que tenha sido perto da praça Marechal Âncora, a
poucos metros da portaria do clube, que avistamos Bolsonaro e dois
assessores. Eles atravessaram a rua e, ao nos identificar, pararam
um instante. Trocamos cumprimentos já que conhecíamos os
assessores do deputado havia algum tempo.
A conversa com o deputado durou menos de cinco minutos. Mas
foi o suficiente para me deixar com a impressão de que ele
interpretava um personagem. Lembro de ter achado bastante
inusitada sua reação cordial ao saber que estávamos apurando
detalhes sobre os militares envolvidos na morte de Stuart Angel,
líder do MR-8, desaparecido desde 1971. E falamos brevemente do
assunto porque seus assessores conheciam militares que diziam ter
informações sobre o Cisa (Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica), unidade responsável pela prisão de Stuart.
Chico Otávio e eu estávamos acompanhando alguns casos
investigados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e grupos
semelhantes, encarregados de esclarecer os crimes cometidos por
militares durante a ditadura, e sobretudo identificar os servidores
públicos responsáveis pela prática sistemática de tortura, execuções
e desaparecimentos forçados.
Alguns dias depois, em 23 de setembro de 2013, quatro membros
da Comissão da Verdade do Rio foram ao antigo DOI-Codi do Rio de
Janeiro para uma inspeção do local. O quartel da rua Barão de
Mesquita, na Tijuca, funciona até hoje como uma unidade militar e
foi sede de parte dos horrores da ditadura. Espancamentos, estupros, torturas com jacarés e uma jiboia, assassinatos… A lista é terrivelmente longa.
Com os desdobramentos da atuação da CNV, Bolsonaro encampou a defesa dos colegas de farda daqueles tempos. Ele já havia se aproximado de alguns dos militares envolvidos ainda nos anos 1980, quando entrou em atrito com o general Leônidas Pires Gonçalves e acabou caindo nas graças do general Newton Cruz, do ex-presidente João Figueiredo e, mais adiante, até do general Nilton Cerqueira.
Os integrantes da comissão chegaram ao local acompanhados de presos políticos e alguns parlamentares. A visita havia sido agendada com antecedência, vencendo a resistência do Exército, e Jair Bolsonaro não integrava a lista da comissão. Mesmo assim, ele foi e tentou forçar a entrada. Os senadores João Capiberibe (PSB-AP) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) o barraram, dizendo que ele não era bem-vindo.
“Olha só quem quer me impedir de entrar no meu quartel!”,
Bolsonaro retrucou. Depois chamou Rodrigues de “moleque”,
abaixou o corpo e lhe deu um soco no estômago, segundo o
senador. A confusão foi grande. Horas mais tarde, quando o
episódio já dominava o noticiário, Bolsonaro telefonou para uma
pessoa, ao lado de quem eu por coincidência estava, e a certa
altura comentou o episódio. Falava tão alto que não pude deixar de
ouvir: “Viu o que eu fiz hoje? Com aquilo ganhei uns 400 mil votos”.
Jamais esqueci esse episódio, que ilustra como as aparições de
Jair visavam conquistar espaço e visibilidade na mídia e na internet.
Já em 2018, quando ele seguia na liderança da corrida presidencial,
resolvi fazer uma apuração mais profunda sobre ele. O escrutínio da
imprensa em relação a candidatos presidenciais é uma tarefa
básica, mas o capitão não estava acostumado a isso e,
definitivamente, não gostava do procedimento. Gravava repórteres
durante entrevistas e depois apresentava os vídeos em suas redes
sociais de modo a instigar linchamentos virtuais contra esses
profissionais.
Bolsonaro não aceitava ser questionado. Nem achava que devia
satisfação sobre o uso que fazia de verbas públicas ou de como administrava seu gabinete na Câmara dos Deputados. A Folha de
S.Paulo fez uma série de reportagens mostrando que ele e os três
filhos mais velhos construíram um patrimônio, até 2018, de 15
milhões de reais com a política. A reportagem, publicada em 7 de
janeiro daquele ano, também revelava que ele havia recebido,
mensalmente, por anos, verba para alugar um imóvel em Brasília,
apesar de dispor de um apartamento na capital. Ele ainda mantinha
entre seus assessores Walderice Santos da Conceição, a “Wal do
Açaí”, uma mulher que morava em Angra dos Reis, no Rio de
Janeiro, e cuidava, junto com o marido Edenílson Nogueira, da casa
de praia e dos cachorros do então deputado. Demorou quase quatro
anos, mas o MPF propôs, em 2022, uma ação de improbidade
administrativa contra Bolsonaro devido à situação da caseira. Esses
eram alguns dos elementos que, já em 2018, colocavam em xeque
a imagem de político honesto que ele gostava de alardear.
Há quatro anos, eu já estava atenta a esses detalhes havia algum
tempo — um exame mais acurado da lista completa de assessores
do candidato indicava que Wal não era a única em situação, no
mínimo, irregular, e que os filhos dele reproduziam o modus
operandi do pai. Bolsonaro costumava dizer que eles agiam juntos,
que eram uma coisa só, na prática nem havia separação entre os
assessores dos gabinetes. Os filhos inclusive empregavam parentes
da segunda mulher do pai, a advogada Ana Cristina Siqueira Valle,
mãe de Jair Renan, o “04”, conforme é chamado pelo capitão, que
se refere aos filhos segundo a tradição militar de enumerar os
soldados. Personagem essencial e complexa em toda essa história,
a dimensão da importância de Cristina só viria à tona mais tarde.
Passei quatro anos pesquisando sobre ela e sinto que ainda não a
decifrei por completo.
Em 2018, início dessa apuração, transitei por esses episódios e
personagens com bastante dificuldade. Na tentativa de decifrar
Bolsonaro, passei meses à procura de quem me falasse dele. As
raras entrevistas que consegui ocorreram com militares que de
algum modo estavam ajudando na campanha do candidato. As
demais pessoas que sondei diziam ter medo, e muitas batiam a
porta ou o telefone ao ouvir a palavra “jornalista”. Enviei dezenas de mensagens com pedidos de conversa e comecei a pesquisar
documentos a respeito do capitão e do restante do clã.
Boa parte das tentativas ao longo daquele ano foram frustradas.
As coisas só começaram a fazer sentido a partir de dezembro de
2018, após a eclosão do que ficou conhecido como o “caso
Queiroz”, a investigação sobre peculato, lavagem de dinheiro e
organização criminosa no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na
Assembleia Legislativa do Rio. Pouco depois da eleição, o jornal O
Estado de S. Paulo publicou uma reportagem de Fabio Serapião
revelando a existência de um relatório que mostrava uma
movimentação bancária atípica de 1,2 milhão de reais na conta de
Fabrício Queiroz. Além de receber, mensalmente, repasses de
outros assessores de Flávio, o policial tinha feito depósitos de
cheques para a primeira-dama Michelle Bolsonaro ao longo de
anos.
Após a matéria, me dediquei a investigar a trajetória de Queiroz e,
à medida que fui avançando, algumas mensagens e contatos que
eu havia feito meses antes começaram a ser respondidos. Ao longo
desses quase quatro anos realizei mais de cinquenta entrevistas,
algumas mais de uma vez, e reuni mais de mil páginas em
documentos, além de vídeos e gravações de áudio. Este livro traz
tudo o que há de relevante nesse material, além de perfis,
bastidores da apuração e os caminhos para acessar as pessoas e
obter os dados.
Como não é raro acontecer em reportagens investigativas, a
maioria das fontes pediu para conceder entrevistas sob anonimato,
pelo temor de ter o emprego, a família ou a própria integridade física
ameaçados. Elas presenciaram e descreveram cenas aqui
relatadas, mas, para preservá-las, diversas situações e diálogos são
narrados sem identificá-las. Como obtive, também sigilosamente,
cópia dos autos da investigação criminal e cível feita sobre Flávio e
Carlos Bolsonaro, o livro traz menções a documentos que
complementam e corroboram esses relatos. São papéis que
constam dos arquivos do Judiciário brasileiro, mas também trechos
de mensagens e cartas de alguns protagonistas desta história. Por
exemplo, Andrea Valle, ex-cunhada de Jair Bolsonaro e uma personagem importante desse enredo, conta em áudios que
devolvia quase 90% de seu salário na Alerj após saques em
dinheiro vivo. Os dados financeiros dela obtidos pelo MP-RJ mostram
esses saques volumosos. Situações semelhantes ocorrem com
diversos outros personagens. Para manter o registro documental, as
citações estão reproduzidas da forma como foram escritas e
faladas, de acordo com as gravações, autos de processos e relatos
das testemunhas.
Uma pena não ter podido ouvir do presidente suas explicações:
ele nunca quis responder às minhas perguntas, tampouco aceitou
ser entrevistado — nem ele, nem Flávio, Carlos ou mesmo Eduardo
— ao longo dos últimos quatro anos.
Depois de todas as entrevistas e de ler boa parte da
documentação sobre Flávio e Carlos, lembrei da passagem do
Evangelho segundo João que o presidente gosta tanto de citar, o
versículo 32 do capítulo 8: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará”. Quando recorre a esse trecho da Bíblia, o que Jair
Bolsonaro quer é mostrar que a sua interpretação de qualquer
assunto é a que deve prevalecer e ser considerada “verdadeira”.
Mesmo que os fatos desmintam o que ele chama de “verdade”.
Ao investigar a vida do presidente e de sua família nos últimos
quatro anos, pensei muito no que significava conhecer a “verdade”
sobre Jair e a história do clã Bolsonaro. Em sua trajetória política, o
presidente negou diferentes fatos históricos: a escravidão, o golpe
militar, a prática de tortura na ditadura e, mais recentemente, as
orientações de cientistas de todo o mundo para prevenir e combater
a covid-19. Primeiro, ele negou a História. Depois, a Ciência. E,
desde que conquistou a cadeira da Presidência da República,
serviu-se de boa parte do poder para esconder seu passado: a
verdadeira história da sua vida privada e dos negócios que o
ajudaram a construir seu patrimônio e erguer tanto sua carreira
política como a de seus filhos.
As investigações sobre o clã Bolsonaro expõem a verdade de um
passado que o presidente e a família não têm interesse em revelar.
Os milhares de documentos, tanto os reunidos pelo Ministério
Público quanto os que obtive junto a fontes e nos registros públicos, mostram mais do que provas contra Flávio e Carlos: põem a nu
indícios que ligam à negociata pessoas muito próximas a Bolsonaro
— assessores, parentes, ex-mulheres e até a atual primeira-dama.
Os relatos e documentos indicam que o próprio Jair liderava toda a
família.
Mais do que acompanhar as investigações criminais sobre dois
filhos do presidente, me senti entrando em uma espécie de labirinto
da vida de Jair Bolsonaro — brigas, intrigas, traições, chantagens,
separações, divórcios, além de muitos imóveis e despesas quitados
com milhões em dinheiro vivo.
Será preciso tratar de diferentes aspectos da vida pessoal de Jair
Bolsonaro porque foi assim que ele moldou sua trajetória,
misturando o público e o privado, envolvendo os três casamentos,
os filhos e os assessores mais próximos em sua ascensão política e
na consolidação de seus bens. Além disso, os Bolsonaro ainda
construíram laços com policiais que se transformaram em milicianos
e matadores de aluguel, conectando-os, de algum modo, aos
gabinetes do clã.
Conforme avançavam as investigações sobre os filhos no MP-RJ,
Bolsonaro fez o que esteve ao seu alcance para encobrir o
processo, tanto no Judiciário como no Executivo federal. Por isso
incluí tudo o que pude apurar acerca das movimentações do clã nos
bastidores e como as instituições agiram ou ficaram paradas em
função das pressões dos advogados de defesa ou da própria família
Bolsonaro. Inclusive contra mim.
Ao final, penso ter mostrado Jair na intimidade, sem as várias
camadas do personagem que ele buscou construir para si ao longo
dos anos. E também como o agora presidente alavancou o
patrimônio e a vida pública do clã. Ao dominar os fatos, é possível
conhecer a verdade. A conclusão caberá a cada um.
*****
Quer apoiar?
O caminho é por aqui: PIX 143.492.051 - 87
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12