Faltavam poucas horas para o réveillon de 2021. Era quinta-feira, dia da live semanal de Jair. Ele curtia dias de descanso no forte dos Andradas, no Guarujá. A live é um momento em que ele defende o governo e convida ministros para posar ao seu lado, mas, sobretudo, faz uma espécie de talk show com comentários sobre o Brasil e o mundo. O cenário tenta forjar uma conversa informal e direta com as pessoas que acompanham suas redes.
Em geral, as lives são feitas na biblioteca do Alvorada, mas aquela foi filmada no Guarujá, depois de dias em que Bolsonaro alternou passeios, promoveu aglomerações em plena pandemia, participou de um jogo amistoso no estádio do Santos Futebol Clube. Na transmissão, ele vestia uma camiseta com a mensagem: “Lei do mandante: eu apoio”. Referência a um projeto de lei de interesse dos clubes de futebol para negociar seus jogos sem interferência do adversário visitante. Um tema que possui seu nicho de interesse, mas que, obviamente, estava longe das prioridades do Brasil naquele dia.
Nem a pandemia havia segurado Jair em Brasília. O mundo corria atrás de vacinas, mas ele não. Da Europa chegavam notícias de novos lockdowns e medidas de restrição devido às variantes do vírus que estavam infectando até quem já havia se contaminado. Os dados eram assustadores.
Dias antes, o presidente disse que os laboratórios é que tinham de correr atrás de um mercado como o Brasil, com 210 milhões de habitantes. Na cabeça dele, era necessário pechinchar o máximo pelo custo unitário da vacina. Nem lhe ocorria que todos os países do globo estavam atrás do produto e que a segunda onda da covid seria mortal para os brasileiros. Seis meses depois, o país iria registrar 500 mil mortos pela doença.
No início da live, ele mencionou a compra de vacinas como um expediente trivial. Citou dados da vacinação mundo afora. Disse que o governo estava esperando que as empresas apresentassem documentação à Anvisa para liberar as doses. Insistiu de maneira equivocada que seria responsabilizado em caso de efeitos colaterais da Pfizer e que “depois iam ver” quem precisaria da vacina, insinuando que nem todos teriam que se imunizar. E anunciou que ele próprio não pretendia se vacinar, pois já tinha se curado da covid e adquirira os anticorpos, ainda que especialistas em todo o mundo alertassem sobre o risco de nova infecção naqueles que já haviam contraído a doença.
Passara pouco mais de meia hora quando ele se pôs a reclamar da imprensa. Pegou os óculos na mesa e leu um papel que segurava com a mão esquerda. Citou uma reportagem da Folha de S.Paulo mencionando que ele fora nomeado “personalidade do ano” pela ONG Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), consórcio internacional de jornalistas investigativos.
Bolsonaro parecia ter roteirizado o momento. Citou a matéria e depois começou a lembrar da delação do doleiro Dario Messer e a menção que ele fez a uma suposta entrega de pacotes de até 300 mil dólares na Globo, que seriam para os irmãos Marinho. Messer não apresentou provas. Mas o que Bolsonaro realmente queria dizer vinha na sequência: “Vocês tão há dois anos falando do Queiroz. Ele tá em prisão domiciliar, nem prestou depoimento ainda. Está em discussão na Justiça, mas fica sangrando. Quase todo dia toca nesse assunto. Se ele errou, pague pelo seu crime”, reclamou, estendendo a mão sobre a mesa. Em seguida, veio o ataque. Bolsonaro olhou para frente e, sem consultar os papéis, disse: “Agora o MP do Rio, presta bem atenção aqui”, afirmou e respirou por um segundo. “Imagine se um dos filhos de autoridades do MP do Rio fosse acusado de tráfico internacional de drogas: o que aconteceria, MP do Rio de Janeiro? Vocês aprofundariam a investigação ou mandariam o filho dessa autoridade para fora do Brasil e procurariam uma maneira de arquivar esse inquérito?”.
Ele seguiu falando e gesticulando em círculos, com a mão direita: “Isso é um caso hipotético, vamos deixar bem claro. Se fosse um filho de vocês que tá na cúpula do MP do estado do Rio de Janeiro acusado de tráfico internacional de drogas, acusado pela Polícia Civil, esse caso seria apurado, deixando bem claro, caso hipotético, esse caso seria apurado, ou o filho de um de vocês providenciaria mandar pra fora do Brasil pra esfriar o caso e providenciaria arquivar esse processo? […] Fica aí com a palavra as autoridades do MP do Rio. Como vocês procederiam nesse caso hipotético?”, mencionou Bolsonaro, após muita ênfase ao citar, várias vezes, a palavra “hipotético”.
É claro que era um recado. Tudo soava como uma grande e perigosa ironia e se tornou o episódio derradeiro na crise entre a família Bolsonaro e o procurador-geral de Justiça fluminense, Eduardo Gussem. Dois meses antes, a equipe direta dele, o Grupo de Atribuição Originária, entregara a denúncia que acusava Flávio de liderar uma organização criminosa que desviou 6,1 milhões de reais dos cofres da Alerj. Gussem, porém, era o titular da investigação, e em 2018 também fora da equipe dele a responsabilidade de instaurar o procedimento que abriu o caso. Só que por seis meses a investigação não andou. Engatinhou quando a imprensa descobriu o relatório sobre Queiroz. Mesmo assim, apesar de sempre demonstrar certa hesitação perante o caso, Gussem foi visto como inimigo do clã.
Quem convivia com o procurador contava que ele não queria ser visto como os colegas da Lava Jato, sobretudo os do MPF de Curitiba. Ao mesmo tempo, Gussem lutava contra uma imagem de leniente do MP-RJ, em especial por conta dos crimes do ex-governador Sérgio Cabral, que passaram em branco no MP fluminense antes de seu comando na PGJ.
Essa situação deixava Gussem dividido, daí sua preocupação excessiva com a imagem. Apesar de delegar os casos de sua atribuição direta a uma equipe da Procuradoria, ele seguia com controle total. Ninguém podia agir sem avisá-lo ou sem seu consentimento. Inclusive nos grupos de atuação especializada, onde ele nem era o titular das investigações. Gussem sempre acompanhou os movimentos de casos tidos como midiáticos. Mas o principal sintoma de suas preocupações com a imagem era a escolhida para chefiar sua equipe de Comunicação: a promotora Gabriela Serra, sua mulher. Ela coordenava todo o atendimento à imprensa no MP, sobretudo as demandas que diziam respeito a Gussem, seu marido.
O procurador não queria que o vissem como um perseguidor da família Bolsonaro, mas o MP tampouco dava satisfações à sociedade sobre os avanços da investigação. O procurador não se importava que o trabalho do MP fosse considerado moroso. E, publicamente, outros casos sob sigilo do MP tinham um tratamento diferente. Quando, por exemplo, sua equipe prendeu Marcelo Crivella, então prefeito do Rio, em dezembro de 2020, os procuradores concederam entrevista coletiva explicando os motivos da ação. Em 19 de outubro, a mesma equipe de procuradores liderada por Gussem denunciou Flávio Bolsonaro ao TJ e nada foi comunicado. A informação só foi divulgada às 00h06 de 4 de novembro de 2020, duas semanas depois do protocolo da denúncia, quando o mundo inteiro acompanhava a apuração dos votos de Joe Biden e Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos.
Mesmo com esse comportamento titubeante, sem jamais ter feito uma avaliação pública das provas do caso de Flávio, o procurador não tinha a consideração de Bolsonaro, a quem interessam apenas os aliados. Era visto como um inimigo, e a referência ao filho de um integrante do MP acusado de tráfico de drogas era um recado. Uma tentativa de constrangê-lo, reavivando um episódio em que amigos de um dos filhos do procurador foram flagrados com drogas. Havia algum tempo que se cochichava essa história nos corredores do MP, sobretudo entre inimigos políticos do procurador. Quando surgiu, distorcida, na live do presidente, a instituição reagiu dizendo que Jair devia formalizar uma denúncia, se tivesse elementos para isso. Mas ele não voltou a tocar no assunto.
O EPISÓDIO DA LIVE foi o fim de um morde-assopra. Em 2020, Bolsonaro acionou alguns interlocutores pedindo que convidassem Gussem para uma conversa no Planalto. O assunto? Flávio. O procurador resistia. A agenda, porém, foi cumprida. Antes da denúncia, Marfan Martins Vieira, subprocurador-geral de Justiça de Relações Institucionais e Defesa de Prerrogativas do MP-RJ, se encontrou com o capitão e ouviu um longo rosário de reclamações sobre vazamentos da investigação.
Mais tarde, as 290 páginas da denúncia contra Flávio azedaram o clima de vez. Naquele momento, a instituição aguardava que o governador em exercício do Rio, Cláudio Castro, nomeasse o mais votado da eleição interna para ocupar a chefia do MP fluminense. Havia o temor de que ele não cumprisse a Constituição estadual, que obriga que o nome escolhido saia de uma lista tríplice. Tal nomeação difere da escolha do PGR, que não exige, por lei, uma lista. E Castro vinha enviando recados por meio de entrevistas, como quando em 16 de dezembro de 2020 ele disse à rádio que, antes de escolher, pretendia ouvir os candidatos: “Estou avaliando se vou chamar os cinco. Se houver alguma desistência… Se alguém renunciar, pode ser que algum deles entre na lista”.
Castro se referia a um dos derrotados da eleição que tinha a simpatia dos Bolsonaro. Ele mirava a quarta posição: o procurador Marcelo da Rocha Monteiro, que obtivera 143 votos. Mas Luciano Mattos, o vencedor, conseguira 546 votos, quase quatro vezes mais. E seus adversários haviam se comprometido a endossar a escolha do mais votado, tradição desde 2006. O único disposto a rompê-la era Monteiro.
Mattos chegou à vitória na cúpula do MP apadrinhado pelo ex-Procurador-geral Marfan Martins Vieira, que já havia dirigido a instituição por quatro mandatos e tinha apoiado justamente a eleição de Gussem. Mas, no período da eleição, Mattos ficou sem seu pilar principal: Vieira, que contraiu covid no fim de outubro de 2020, teve de ir à UTI. Tudo em meio à campanha e à eleição no MP.
Vieira só deixou o hospital no fim de dezembro. Mas desde que saíra do coma, voltara a acompanhar cada passo dos desdobramentos da situação. Em casa, depois de quase dois meses de internação, ele precisava tratar das sequelas da doença e necessitava de cadeira de rodas para se locomover. Mesmo assim, em 4 de janeiro de 2021 ele foi ao Palácio Guanabara entregar a lista ao governador. Da conversa, sabe-se um breve resumo. Castro queixou-se de Gussem na condução da instituição. Mencionou excessos contra a classe política e vazamentos de dados das investigações.
Havia algum tempo, comentava-se no mundo político que Castro mal dormia devido às apurações que envolviam desvios de dinheiro público no período em que ele era responsável pela Fundação Leão XIII, investigações que já tinham gerado operações, prisões e até colaborações premiadas. Em 2020, chegaram a vazar imagens de Castro com uma mochila depois de encontrar uma pessoa que mais tarde faria um acordo de delação. Segundo o colaborador, o político levou 100 mil reais em cash depois da reunião. O governador sempre negou o episódio e se queixou da exposição. Mas, nesse dia, a conversa entre Vieira e Castro não teria esmiuçado esses detalhes nem mencionado a situação do senador Flávio Bolsonaro. Esses tópicos sensíveis estavam nas entrelinhas.
E o encontro foi frutífero. Dois dias depois, em 6 de janeiro de 2021, Castro nomeou Luciano Mattos procurador-geral de Justiça fluminense. Na sexta-feira seguinte, 15 de janeiro, Mattos tomou posse. A surpresa, porém, veio na sequência. Eduardo Gussem não deixou apenas o comando do MP, mas pediu a aposentadoria. Aos 56 anos.
A notícia voou pelos grupos de WhatsApp de membros da promotoria e logo vazou na imprensa. Ele nega que tenha se aposentado devido ao episódio da live do presidente, mas também recusa qualquer entrevista sobre assuntos envolvendo o MP ou sua gestão. Diz que irá escrever um livro daqui a uns cinco anos.
Mais tarde, esses episódios e outros subsequentes terminaram por favorecer o clã Bolsonaro.
EM 30 DE DEZEMBRO de 2020, Eduardo Gussem assinou uma resolução proibindo, até segunda ordem, atos administrativos nos grupos de atuação especializada do MP-RJ. Todos os promotores foram exonerados. Seria um procedimento de praxe, pela troca na cúpula da instituição, que poderia promover uma alteração em cargos de confiança. Tudo seria revogado após a posse da nova administração do MP.
Depois que Luciano Mattos foi garantido no cargo, burburinhos sobre as mudanças vindouras foram ouvidos nos corredores do MP-RJ. O novo PGR vinha prometendo, desde a campanha, que daria mais força às promotorias. Nos anos anteriores, muitos casos vinham sendo delegados aos grupos de atuação especializada. Havia quem avaliasse que era até uma maneira de alguns promotores terem menos trabalho. Os grupos, porém, cumpriam a tarefa de organizar investigações mais complexas, difíceis de serem cumpridas por uma promotoria sozinha. Nos casos de corrupção e crime organizado, é até um meio de proteção para os titulares desses procedimentos, todos sabem disso. Entre os grupos, o mais ameaçado era o Gaecc. Não porque fosse dispensável, nem porque não houvesse mais trabalho. O problema eram seus êxitos, como no avanço do caso Flávio Bolsonaro e outros escândalos de corrupção envolvendo o governo do Rio.
Só que havia algum tempo reinava enorme desconfiança interna. Desde fevereiro de 2019, o servidor Ronan Chaves Azevedo e Silva era o titular da gerência de apoio à Procuradoria-Geral de Justiça do MP-RJ que ficava em Brasília. Ele é concursado pela Defensoria Pública fluminense, mas tinha sido requisitado para serviço no MP-RJ em 2017. Depois, cresceu internamente. Na hierarquia, tornou-se um dos assessores diretos de Marfan Martins Vieira. Ronan é filho do general Fernando Azevedo e Silva, na ocasião ministro da Defesa de Jair Bolsonaro. O escritório de Brasília funcionava como base para as ações do Rio que chegavam às cortes superiores. O espaço é pequeno e quando um promotor fluminense precisava trabalhar na capital federal, era preciso dividir até o computador, o que evidentemente causava desconforto nos promotores e procuradores que atuavam em casos que envolviam o clã. Pouco depois da posse de Mattos, foi publicado outro despacho. Para ajuizar ações, os grupos precisavam do aval do PGJ. E muita coisa na área do combate à corrupção ficou parada.
Naquele momento o Gaecc já tinha um documento pronto para pedir uma medida cautelar de quebra de sigilo bancário e fiscal de Carlos Bolsonaro, Ana Cristina Valle e uma série de outros investigados no gabinete dele. Também existiam delações, operações e ações de improbidade à espera do encaminhamento dos promotores. Ignorando o futuro do grupo, o Gaecc comunicou à nova administração da PGJ, já liderada por Mattos, as medidas que precisavam de sequência. Os promotores do grupo, porém, ouviram que era necessário aguardar uma avaliação da nova administração. Mas o que ocorreu alguns dias depois foi outra coisa: o Gaecc passou a definhar.
Se antes existiam 21 promotores dedicados aos trabalhos do grupo, passados trinta dias da nova administração, apenas um dos antigos integrantes foi renomeado. Sozinho, só lhe restava devolver às promotorias originais os casos que elas haviam encaminhado ao Gaecc. Assim, tanto pelas ações da defesa como pela falta de articulação interna, parecia que se aproximava um cerco sobre a denúncia contra Flávio, pronto para derrubar as provas antes mesmo que o TJ do Rio tivesse a oportunidade de analisar o que havia sido descoberto. No fim de janeiro, a relatora sorteada para análise da denúncia, a desembargadora Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo, tinha pedido ao Órgão Especial do Tribunal que marcasse uma sessão para discutir aspectos do caso. Entre eles, se ela seria realmente a relatora, já que Milton Fernandes, outro desembargador, cuidava de alguns habeas corpus relacionados e a denúncia chegou ao seu gabinete por sorteio porque Fernandes estava de férias, na ocasião do protocolo em outubro. Assim, a desembargadora também pretendia que o colegiado se manifestasse se aquele era o foro competente para o caso já que contrariava a jurisprudência do STF.
Nem deu tempo para o julgamento acontecer. Na sequência a defesa de Flávio correu ao STF, e logo obteve uma liminar cassando a análise da discussão inicial da denúncia. O ministro Gilmar Mendes decidiu e informou aos magistrados fluminenses que era necessário aguardar a decisão do Supremo sobre uma reclamação que o MP-RJ havia feito à Corte sobre a decisão do foro. Essa avaliação do STF já demorava seis meses e ainda demoraria outros mais. O ano de 2021 inteiro.
UM CHEIRINHO DE PIZZA também passou a ser sentido em Brasília no fim de 2020. Um sinal surgiu no dia 17 de novembro, quando a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça se reuniu para julgar alguns recursos de Flávio Bolsonaro. Logo que os habeas corpus começaram a chegar, em março de 2020, dizia-se que o futuro de Flávio no STJ seria duro. Na época da Lava Jato, a 5ª Turma era chamada de “Câmara de Gás” devido às recusas aos pedidos de réus e advogados. Com o sorteio do relator, o cenário para o senador piorou: o ministro Félix Fischer era bastante rígido. Mas em poucos meses tudo mudou. Essa transformação ocorreu especialmente pela atuação do ministro João Otávio de Noronha.
Na época em que os recursos foram protocolados, Noronha presidia o STJ e caiu nas graças de Jair, que a certa altura nem corou ao dizer que, quando o conheceu, sentiu “amor à primeira vista”. Isso foi em abril de 2020, momento em que o presidente promovia uma troca de ministros em função da briga e posterior renúncia de Sergio Moro. Na ocasião, Noronha nada tinha a ver com Flávio. Seu primeiro envolvimento com o caso ocorreu no plantão judiciário, em julho, quando concedeu prisão domiciliar a Queiroz e sua mulher, a então foragida Márcia Aguiar. Só que a medida era uma situação temporária e foi logo revogada pelo ministro Fischer, quando os trabalhos da Corte voltaram. A defesa teve que bater à porta de Gilmar Mendes, no STF, para garantir a domiciliar de Queiroz.
Noronha tornou-se, enfim, peça importante na história a partir de 1º de setembro de 2020. Após trocas internas, ele passou a integrar a 5a Turma. Assim, em 17 de novembro de 2020, era um dos magistrados a analisar os recursos do filho mais velho de Jair Bolsonaro, o homem que lhe confessara “amor à primeira vista”. O casamento de Anna Carolina Noronha, filha dele, ocorreu onze dias depois, e contou com as presenças nada constrangidas de Jair Renan e Cristina, que chegou a posar para fotos com o ministro responsável por um caso em que metade da família dela estava metida.
Quando o julgamento dos quatro recursos de Flávio chegou, Fischer, fazendo jus à sua fama, negou tudo que a defesa pedia. Noronha pediu vistas ao processo dizendo que tinha recebido um memorial dos defensores na véspera e queria analisar o conteúdo com cuidado. Fischer não pôde ler o seu voto e o clima ficou um tanto embaraçoso: “É o caso da Alerj, não é isso? O réu, o indiciado, é Bolsonaro, não é?”, insistiu Fischer.
Em uma tentativa de contemporizar, Noronha insistiu que o relator votasse quando o julgamento fosse retomado: “Eu estou pedindo vista porque recebi esse memorial ontem à noite. Então, é um caso complexo, de larga repercussão que me cabe examinar como juiz e sendo o julgador que vota imediatamente após vossa excelência. […] Mandaram memorial ontem. Não tive tempo de examinar”.
Após as vistas, logo começaram os rumores a respeito das críticas de Noronha às decisões do juiz Flávio Itabaiana, responsável pelo caso na primeira instância até junho de 2020. A principal era a concisão do magistrado ao escrever a decisão que autorizou a quebra de sigilo (aqueles dois parágrafos em que ele endossava o pedido dos promotores).
O cerco para tentar derrubar a denúncia ia se fechando.
A fim de fundamentar seu voto, Noronha chegou a trabalhar nas férias. Na segunda-feira, 25 de janeiro de 2021, ele pediu ofícios ao TJ do Rio para obter informações atualizadas do caso. Na semana anterior, Flávio Bolsonaro e Frederick Wassef haviam retomado as aparições públicas. Os dois viajaram de São Paulo para o Rio e foram vistos juntos no aeroporto do Rio de Janeiro no dia 22 de janeiro de 2021.
O questionamento sobre a quebra, cuja legalidade foi mantida tanto na primeira como na segunda instância no Rio, foi levado a Brasília pela advogada Nara Nishizawa, que trabalhava justamente na equipe coordenada por Frederick Wassef. No STJ, porém, apenas seu nome aparecia como advogada de Flávio no recurso.
Foi na terça-feira, 9 de fevereiro, que Noronha liberou os recursos da defesa de Flávio para a retomada do julgamento. Na ocasião, depois de vários meses afastado da defesa de Flávio após a prisão de Queiroz, Wassef reapareceu. Disse que nunca havia deixado a representação e que estava apenas dando continuidade ao seu trabalho. Todos que havíamos visto o senador anunciar publicamente a troca de advogados nos sentimos como se tivéssemos vivido uma realidade paralela. Ele se recusava a admitir que era um retorno aos holofotes. Mas era. Porque dos bastidores ele nunca havia saído.
Noronha anunciou que iria atender a defesa e Fischer pediu novas vistas para analisar o processo. A situação adiou o julgamento por mais duas semanas. Em 23 de fevereiro a análise foi retomada e outra tensão se instalou. Fischer leu seu voto acerca da legalidade da quebra de sigilo e negou o pedido da defesa de Flávio. Noronha iniciou seu voto na sequência. Mas o ministro revisor abordava os quatro recursos da defesa que continham pedidos diferentes e analisavam aspectos distintos. Fischer ficou furioso, pois ele não havia tratado dos demais pedidos: “Em mais de quarenta anos de tribunal, eu nunca vi o relator ficar para depois. Nunca. Em hipótese alguma. Isso não existe”.
“Eu não presido a sessão”, afirmou Noronha.
“Não é sua vez de votar.” O climão se instalou e os ministros decidiram analisar apenas o recurso sobre a legalidade da quebra de sigilo.
Fischer acabou vencido: os outros quatro ministros concordaram com a defesa, a decisão de Itabaiana não havia sido suficientemente fundamentada. Era um duro golpe para os investigadores, porque abria espaço para anular não apenas os dados financeiros, mas outras provas obtidas a partir dessas informações — como documentos e dados de celulares que ajudavam a corroborar a denúncia. Como uma prova ajudou a gerar os pedidos de busca das outras, tudo estava conectado. Era grande a chance de a defesa pedir a nulidade de tudo. Na semana seguinte, outro revés.
Em 3 de março de 2021, a cúpula do MP fluminense extinguiu o Gaecc. Mas a verdade é que ele nunca funcionou na gestão de Luciano Mattos. No anúncio da mudança, informou-se que as funções do grupo passariam para o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado, o Gaeco. Numa análise imediata, fazia sentido. Só que, como o tamanho da equipe conjunta era bastante inferior à soma de pessoas que atuavam nos grupos separadamente, uma equipe menor de pessoas teria que cuidar de um volume maior de trabalho. Ao longo de 2021, nenhuma das investigações dos casos dos deputados da Alerj teve maiores desdobramentos.
Dali a alguns dias, em 16 de março o STJ ainda iria avaliar que Queiroz estava preso havia muito tempo e decidiu conceder a liberdade a ele. Tudo sem que o TJ tivesse tido sequer a possibilidade de avaliar a denúncia apresentada pelos procuradores. Não se passou nem um mês e o policial voltaria a circular e tentaria emplacar uma filha na Casa Civil do governo do Rio. A vida seguia como se nada tivesse acontecido.
Queiroz, porém, não se viu totalmente livre do MP. Em março de 2021, dois promotores tocavam as duas investigações de autos de resistência em que Queiroz havia se envolvido entre 2002 e 2003, mas que em quase vinte anos nunca tinham sido realmente investigadas. Em uma delas, o promotor Claudio Calo, da 24ª Promotoria de Investigação Penal, o mesmo que se declarou impedido no caso da rachadinha por ter encontrado Flávio antes de a investigação vir a público, avaliou que existiam indícios de execução na morte de Anderson Rosa. Queiroz e Nóbrega admitiram ter disparado, na ocasião. Os casos seguem abertos, em apuração, mas também muito perto da data de prescrição. Um deles tem prazo final para conclusão em novembro de 2022 e o outro em maio de 2023.
QUANDO O STJ DECIDIU anular a quebra de sigilo, no fim de fevereiro de 2021, eu já estava no meio da produção de um podcast investigativo sobre toda a história para o portal UOL. Desde meados de 2019 eu sabia que havia um modo de mostrar que tudo aquilo desembocava em Jair: por meio das gravações que estavam de posse de Madalena. Ela, porém, tinha medo das consequências, caso fosse identificada. Ao mesmo tempo, aquele parecia o momento ideal para obter cópia de alguns dados de celulares de diversos investigados. Entre os autos existia um conjunto enorme de mensagens e áudios, sobretudo da família de Queiroz. Em agosto de 2020, eu tinha conseguido acessar parte do conteúdo com o auxílio de uma fonte. No entanto, não ficara com cópia de nada. A outra fonte também tinha medo de retaliações.
Em março de 2021, vários meses já haviam se passado desde os primórdios da investigação. Mas a decisão do STJ instaurara uma calmaria entre os investigados. Pairava a sensação de que o MP-RJ estaria abandonando o caso. Os procuradores até tinham recorrido da decisão do STJ sobre a quebra. A possibilidade de que tudo fosse anulado, inclusive as demais provas obtidas com os dados financeiros, era grande. No futuro, o interesse de tudo aquilo seria apenas jornalístico. Já não serviria como prova no processo.
Além disso, nenhum dos promotores ou procuradores que estiveram à frente do processo por mais de dois anos permaneceu na condução da investigação, que acabou se desdobrando em duas partes. A primeira se referia à lavagem de dinheiro por meio da loja de chocolates de Flávio. O MP afirmou ao TJ do Rio que o sócio da Bolsotini Chocolates e Café, Alexandre Santini, era usado como laranja, tanto que os dados bancários mostraram que Flávio pagou sozinho os 200 mil reais do capital inicial. Além disso, o primogênito declarou à Receita que o negócio valia 50 mil reais, enquanto a compra da loja lhe custara 400 mil reais. E mais: a Bolsotini declarou ter arrecadado 6,5 milhões de reais entre 2015 e 2018, enquanto o shopping onde a loja funcionava auditou um valor de 4,8 milhões de reais em vendas da loja, no mesmo período. A diferença no caixa, 1,7 milhão de reais, foi creditada pelo MP como lavagem de dinheiro.
Essas evidências, somadas à suspeita acerca de Victor Granado Alves, foram destinadas a uma apuração à parte. Os promotores queriam saber do senador quem dera a ele a ideia da compra da franquia — eles não ignoravam que Granado fosse dono de duas lojas de chocolate na cidade, uma das quais ficava ao lado do MPF, no centro do Rio.
Uma segunda parte da investigação que foi desmembrada dizia respeito ao núcleo de Resende, de funcionários-fantasmas e indícios de lavagem de quase 4 milhões de reais. Tudo isso ficou parado, independente das novas informações que surgiam e podiam permitir que o MP fizesse um novo pedido de quebra de sigilo para ter uma vez mais as principais provas que embasaram a denúncia contra Flávio, Queiroz e os demais.
Provas importantes constavam entre os documentos da Operação Gárgula, deflagrada em 22 de março de 2021, a pedido do Gaeco, para investigar a lavagem de dinheiro feita a partir do espólio do capitão Nóbrega. O principal alvo do grupo era a viúva do miliciano, Julia Lotufo, que teve a prisão determinada pela 1ª Vara Criminal Especializada, mas não foi localizada nesse dia. Um ano depois, eu soube que nesse dia ela estava em Brasília e ali começou a procurar novos advogados. Para acusá-la, o MP enviou diversas provas ao juiz. Mas entre os anexos enviados ao TJ, havia também uma gravação em que ela falava do envolvimento de Danielle, a primeira mulher de Nóbrega, no esquema de rachadinha no gabinete de Flávio. Em uma interceptação telefônica,1 em julho de 2019, Julia disse: “Ela [Danielle] foi nomeada por onze anos. Onze anos levando dinheiro, 10 mil reais por mês para o bolso dela. E agora ela não quer que ninguém fale no nome dela?”. Ainda disse: “Ela sabia muito bem qual era o esquema. Ela não aceitou? Agora é as consequências do que ela aceitou”.
A gravação, obtida com autorização judicial, podia ser compartilhada com a investigação de Flávio desde que a PGJ assim pedisse, o que não ocorreu em mais de um ano. Mas essa não foi a única prova ignorada pelo MP em 2021 que poderia embasar outro pedido de quebra de sigilo e dar novamente ao MP acesso aos dados financeiros do senador e de Queiroz. Julia daria ao grupo de promotores e procuradores da cúpula do MP mais oportunidades de contar o que sabia além do que foi mencionado no telefone.
Depois de Julia ficar 34 dias foragida, em 26 de abril sua defesa, a cargo do advogado Délio Lins e Silva, conseguiu um habeas corpus para que ela pudesse cumprir a ordem de prisão em casa. Foi só então que ela se apresentou ao TJ do Rio. E pôs em ação a segunda parte das instruções que Nóbrega lhe havia deixado. Ao pensar estratégias de defesa, os advogados sugeriram que ela negociasse uma colaboração premiada a partir das informações que Nóbrega compartilhou com ela nos onze anos em que viveram juntos. Julia concordou.
Na estratégia montada inicialmente, Julia se pôs à disposição para falar do que sabia sobre o envolvimento de Danielle e Vera no esquema da rachadinha. Com isso, o foro do caso iria subir para a PGJ, visto que dizia respeito a Flávio. Além disso, ela decidiu contar o que sabia dos homicídios em que Adriano participara e apontar locais usados pela contravenção e por milicianos como cemitérios clandestinos para a ocultação de cadáveres. E ainda tinha supostas informações sobre a execução da vereadora Marielle Franco.
Assim, depois que ela já estava em prisão domiciliar, o advogado Délio Lins e Silva procurou integrantes da Assessoria de Atribuição Originária da Procuradoria-Geral de Justiça do Rio de Janeiro, ou seja, o grupo de promotores e procuradores que auxilia o procurador-geral fluminense Luciano Mattos. Busca vã. O advogado então soube da Coordenadoria de Investigações de Agentes com Foro da Polícia Civil (Ciaf/Pcerj), que trabalha dentro do MP–RJ em apoio exclusivo à Procuradoria-Geral de Justiça, e solicitou à delegada Ana Paula Marques de Faria, chefe da Ciaf, uma reunião para falar de um cliente. Não mencionou quem era.
Alguns dias depois, na reunião com a delegada e sua equipe, o advogado disse que representava a viúva de Adriano da Nóbrega e estava avaliando linhas de defesa para ela. Mencionou a possibilidade de sua cliente fazer um acordo de colaboração que envolvia pessoas com foro. Ela, contudo, temia ser executada e gostaria de responder ao processo fora do Brasil. A delegada explicou que a condução de uma colaboração deveria ser feita junto com o MP e que as tratativas teriam de esperar uma posição da Procuradoria. Os advogados pediam que a próxima reunião, na presença da cliente, fosse no local onde ela cumpre prisão domiciliar, e reiteraram o perigo que ela corria se os inimigos de Nóbrega soubessem de sua intenção de fazer uma colaboração premiada.
A delegada levou o conteúdo dessa conversa ao conhecimento da Procuradoria-Geral do MP-RJ. A cúpula do MP não concordou em encontrar Julia fora do prédio da instituição, mas autorizou a delegada a ir ao local para uma reunião prévia. A cúpula da Polícia Civil também deu sinal verde. O encontro ocorreu em um condomínio de luxo e se estendeu por horas.
Na ocasião, a viúva falou parte do que pretendia contar na delação. Disse que conhecia detalhes sobre os pagamentos que elas recebiam e saques. Segundo Julia, Adriano queria que Danielle tivesse um emprego formal para um dia também poder se aposentar junto ao INSS. Nas palavras dela, o miliciano queria “tirar essa mochila das costas”, financeiramente falando. Então, o que vinha da vaga dela no mandato de Flávio funcionava como uma espécie de pensão, ou seja, ela não ficava apenas com uma mesada de cerca de 10% como os demais e havia necessidade de um complemento. Por isso, às vezes, quem inteirava os valores da rachadinha para Queiroz entregar a Flávio era Nóbrega. Isso ocorreria de diferentes maneiras, inclusive por meio das pizzarias que estavam no nome da mãe dele, Vera. Os promotores tinham rastreado nas contas de Queiroz um total de 69,2 mil em transferências ou cheques dos restaurantes e mais 91,7 mil em depósitos não identificados de uma agência na mesma rua desses estabelecimentos. O próprio verificou nas quebras de sigilo que Danielle devolveu apenas 19,3% de seu salário para o ex-assessor de Flávio. Diferente de Vera, por exemplo, que, entre depósitos a Queiroz e saques, se desfez de 94,6%.
Julia também sinalizou aos policiais que tinha informações sobre homicídios ligados ao bicheiro Bernardo Bello e outros crimes que envolvem a máfia da contravenção no Rio. Queixou-se que sua prisão foi decretada sem que ninguém do MP tivesse tentado ouvi-la e reiterou sua intenção de colaborar. Ela disse aos policiais que nunca participou dos crimes e sabia muita coisa porque fuçava no celular dele. Nóbrega, segundo ela, era reservado sobre ações do grupo em Rio das Pedras e junto à contravenção. Ao final, marcaram uma segunda conversa nos mesmos moldes com a delegada e a equipe da Ciaf.
Algum tempo depois, a delegada relatou à Procuradoria seu encontro com a viúva de Nóbrega. A equipe do MP avaliou que as informações de Julia sobre a rachadinha eram um testemunho indireto, já que ela não havia participado do esquema nem acompanhara diretamente a entrega de dinheiro. Ela era uma espécie de “colaboradora-testemunha”. Por lei, uma delação premiada implica a admissão de crimes e a apresentação de provas para corroborar o depoimento. Julia só podia fazer isso em relação a uma das acusações que lhe foram imputadas sobre lavagem de dinheiro do companheiro. No restante, o que ela sabia era o que Nóbrega lhe contara.
Na semana que iniciou em 17 de maio de 2021, ocorreram novas reuniões com o MP-RJ nas dependências da Ciaf para tratar da colaboração. Em uma delas, participaram Eduardo Giraldes Silva, novo companheiro de Julia, Délio Lins e Silva, a promotora Olimpia Maria Lupi e o procurador Luciano Lessa, chefe do grupo criminal que assessora o PGR. Depois de muita conversa, o marido e a defesa de Julia foram informados de que a proposta de delação deveria ser apresentada por escrito, mas a promotoria já adiantava que não tinha interesse no que Julia pretendia relatar sobre o gabinete de Flávio porque considerava já ter o suficiente por outros meios de prova. A equipe de procuradores e promotores disse ainda que vislumbrava algum interesse da força-tarefa do caso Marielle no MP, que investiga o assassinato da vereadora em 2018, uma vez que Julia tinha informação sobre milícia e homicídios envolvendo bicheiros. Ao saber do retorno da reunião, Julia disse ao marido que se sentia, em parte, aliviada, pois sabia da pressão que poderia sofrer, especialmente de Wassef.
Assim, o MP não tomou o depoimento que a viúva de Nóbrega estava disposta a conceder e que poderia se tornar um elemento adicional em um possível novo pedido de quebra de sigilo de Flávio. Meses antes seu testemunho talvez acrescentasse pouco à investigação, mas depois que o STJ anulou diversas provas, qualquer nova informação era crucial para dar seguimento no caso. Inclusive porque, com esse relato, muito semelhante ao conteúdo das interceptações telefônicas da própria Julia, o MP já teria elementos para comprovar o que ela estava informando. Não seria um relato sem corroboração.
Mas e o que dizer das informações a respeito da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes? Após a recusa da PGJ, a proposta de delação foi encaminhada até as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile, titulares da força-tarefa que investigava o assassinato de ambos. E lá causou novos atritos em junho de 2021. Instalou-se um clima de desconfiança por elas não terem participado do início das negociações com a viúva. As promotoras ficaram com a sensação de que existia alguma interferência para que Julia não falasse tudo que sabia em um eventual acordo de colaboração. Num primeiro momento, Sibilio e Emile decidiram não ouvi-la; um tempo depois, concordaram e fizeram uma reunião preliminar com ela e sua defesa na sede do MP. A conversa chegou a ter momentos de cordialidade. As promotoras chegaram a perguntar se ela tinha informações sobre pessoas com foro e Julia mencionou que poderia existir algo. No entanto, souberam que, antes daquela conversa, a PGJ tinha dito que não tinha interesse. As investigadoras estranharam, mas tomaram notas. O depoimento da viúva, na visão delas, tinha contradições. No entanto, não descartaram dar continuidade às tratativas.
Só que, de uma hora para outra e sem que elas soubessem, a PGJ do MP decidiu que quem iria conduzir as negociações da colaboração seria o promotor Luís Augusto Soares de Andrade, que acompanhava a instrução criminal do processo da viúva de Nóbrega na 1ª Vara Criminal Especializada. Luciano Mattos também decidiu que a Ciaf iria dar auxílio nas tratativas da delação da viúva e, por isso, ampliou as atribuições do órgão policial dentro do MP, que até então só atuava em casos com foro em auxílio à PGJ. O aditivo foi assinado em 23 de junho de 2021.
Depois de todo o vaivém, Julia já estava com outro advogado, o ex-senador Demóstenes Torres. Acompanhada dele, em 8 de julho de 2021, a viúva gravou o depoimento para a delação. Falou dos assassinatos do Escritório do Crime e mencionou que o haras de Nóbrega, além de uma área em Campinho, na Zona Oeste do Rio, era usada como cemitério clandestino para desova de cadáveres. Devido aos problemas na primeira fase das negociações pela delação, Julia decidiu não falar dos pagamentos de Nóbrega a Queiroz e do que sabia sobre Vera e Danielle no gabinete de Flávio Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, Sibilio e Emile tomaram conhecimento de que a delação tinha prosseguido e estava sendo conduzida por outro promotor sem que elas tivessem sido sequer comunicadas. O episódio foi a gota d’água no ambiente de desconfiança interno e fez com que as promotoras deixassem a força-tarefa que apura o assassinato da vereadora Marielle. Na renúncia, elas entregaram um relatório à PGJ e retomaram suas funções anteriores. Nunca falaram publicamente do episódio, mas a crise acabou conhecida os corredores da instituição e ganhou os jornais.
Contudo, após o depoimento e a crise com as promotoras, a homologação do acordo entrou em novo limbo no MP. A defesa informou que Julia havia lembrado de fatos que diziam respeito a uma pessoa com foro junto ao STJ e no fim de julho de 2021 a colaboração chegou a ir para a PGR, devido à menção a um desembargador. Em 2017, disse Julia, Nóbrega levantou 1 milhão de reais para comprar a soltura de um comparsa junto ao desembargador Guaraci de Campos Vianna, do Tribunal de Justiça do Rio. Quando a citação veio à tona, Vianna negou irregularidades, mas já tinha sido afastado do cargo por venda de sentenças, e é investigado pelo CNJ. A viúva também citou como informante do grupo de Nóbrega o então promotor Homero das Neves Freitas Filho, que participou da primeira fase da investigação, bastante criticada, do assassinato de Marielle Franco. Freitas Filho, hoje está aposentado do serviço público. Dias depois da gravação do depoimento de Julia, Homero fez contato com Demóstenes Torres. Telefonou algumas vezes e enviou mensagens se apresentando como “ex-colega do MP-RJ”, sem que o advogado de Julia tenha retornado para saber das intenções daquele diálogo. Devido à menção na proposta de acordo, Torres chegou a comunicar o Judiciário sobre o contato do ex-promotor.
Após analisar o caso, a PGR decidiu declinar da delação para a Justiça fluminense novamente. Avaliou que já tinha os elementos que a viúva pretendia relatar. Após a devolução, o promotor da 1ª Vara Criminal Especializada do TJ-RJ que conduzira o depoimento para a delação, e seu colega, decidiram pedir à PGJ que encaminhasse as tratativas ao Gaeco, responsável por anteriormente ter denunciado e pedido a prisão de Julia. Com isso, eles declinavam das negociações para a homologação da delação.
Em 3 de novembro de 2021, o coordenador do Gaeco, promotor Bruno Gangoni, emitiu um parecer indeferindo a colaboração de Julia por “absoluta ausência de utilidade” — as informações “já são de conhecimento do Gaeco ou são destituídas de elementos de corroboração”. Disse ainda que Julia tentou “impressionar” os primeiros negociadores. Em um dos trechos mais duros, o promotor escreveu: “A análise cuidadosa de toda a tramitação do presente procedimento preparatório deixa transparecer a inequívoca intenção da requerente de trazer para a mesa de negociação promotores de Justiça e delegados de polícia cuja atuação ordinária não guarde relação direta com a investigação da miríade de crimes perpetrados pelas milícias da Zona Oeste da cidade e sua intrínseca relação com a criminalidade que orbita a glamourizada contravenção do ‘jogo do bicho’, provavelmente por acreditar que tais negociadores seriam mais facilmente impressionados por seus superficiais relatos do submundo do crime organizado”. A petição com a negativa da delação ainda contém a assinatura de Roberta Laplace e Fabiano Cossermelli Oliveira, subcoordenadores do Gaeco.
Assim, no início de 2022 a colaboração foi rejeitada. Quem analisar os detalhes da decisão do Gaeco poderá se perguntar sobre um trecho que diz: “Julia afirma desconhecer qualquer fato relacionado ao presidente Jair Bolsonaro”, mas o Gaeco não poderia investigar Jair Bolsonaro, pois não possui atribuição para isso. Se a viúva fosse mencionar o presidente, a questão deveria ter sido registrada e prosseguido em Brasília, na PGR. E não há, na decisão do MP, menção a Flávio. Também pensei se seu depoimento não poderia ser tomado como testemunha para alguns casos. Na própria denúncia de Flávio Bolsonaro consta uma colaboração desse tipo. A ex-assessora Luiza Souza Paes fez um depoimento para obter benefícios de redução de pena. O MP já tinha diversas provas dos crimes em que ela estava envolvida, mas acordou para obter o depoimento e mais uma prova para somar à acusação. Verdade que Luiza participara ativamente, enquanto Julia iria relatar dados que soube por Adriano ou por conviver com ele.
Mesmo assim fiquei intrigada com o modo como ocorreu a recusa, sobretudo por que, em mais de um ano, não se investigou se havia corpos enterrados no antigo haras de Nóbrega. Com a negativa, tudo, até os corpos de vítimas da máfia da contravenção e da milícia, enterrados em covas clandestinas, correm risco de acabar no esquecimento. Também me surpreendeu muito a recusa no acordo ao saber que, originalmente, Julia tinha intenção de falar dos dados que sabia a respeito do gabinete de Flávio. O depoimento dela poderia ajudar em um novo pedido de quebra de sigilo do caso Flávio, crucial para a retomada das investigações da rachadinha depois que o STJ anulou a decisão que permitiu o acesso aos dados financeiros. Sem poder utilizar as informações bancárias e fiscais, os procuradores não têm como prosseguir com as acusações de que Flávio desviou 6,1 milhões dos cofres públicos. Por isso, qualquer prova ou indício para embasar um novo pedido que faça o Judiciário autorizar é essencial. Tentei entrevistar o procurador-geral, Luciano Mattos, diversas vezes. Mas ele afirmou que não podia falar devido ao sigilo dos casos.
Até maio de 2022, a Procuradoria-Geral do Rio não fez novo pedido de quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro para mais uma vez coletar as principais provas que embasaram a denúncia criminal feita em 2020. Já no caso cível contra o senador, quem tentou foi a 3ª Promotoria de Tutela Coletiva da Capital, comandada pelo promotor Eduardo Santos de Carvalho. Ex-integrante do Gaecc, ele chegou a fazer um novo pedido para quebrar os sigilos de Flávio e dos demais investigados em setembro de 2021. O objetivo era instruir o caso de improbidade administrativa que já tramitava por ali, antes mesmo de ele retornar à promotoria após a extinção do Gaecc. No entanto, a juíza Neusa Regina Leite, da 14a Vara de Fazenda Pública, negou o pedido, dando a entender que, mesmo sem os dados, o MP já tinha o suficiente para ajuizar uma ação de improbidade.
É PROVÁVEL QUE AS CENAS dos próximos capítulos do clã Bolsonaro ainda reservem espaço para as informações que Julia sabe. Em 28 de abril de 2022, tentei acompanhar o depoimento que Julia prestou na 1ª Vara Criminal Especializada. Era o interrogatório dela para concluir o processo pelo qual foi acusada de lavar dinheiro e integrar o grupo criminoso do ex-companheiro. Como o juiz Bruno Ruliére decretou sigilo, não fui autorizada a acompanhar. Mas depois apurei uma boa parte das coisas que a viúva falou na audiência.
Julia contou no TJ que chegou a trabalhar na Alerj, entre 2016 e 2017. Tinha um cargo como assistente na Subsecretaria-geral de Recursos Humanos da Casa. Por isso, recebia um salário de 3,4 mil. A nomeação, na ocasião, foi assinada por Jorge Picciani, ex-presidente da Alerj, preso na Operação Cadeia Velha, braço da Lava Jato no Rio de Janeiro. Na versão de Julia, mesmo como “mulher do capitão Adriano” ela trabalhava, fazia questão de ter o seu próprio dinheiro e não se envolvia nos negócios do ex-companheiro. Julia também deu a entender que se sentia perseguida já que seu processo era moldado, em grande parte, pela acusação de lavagem de dinheiro por meio de um restaurante que não chegou a ser aberto e do qual ela foi sócia junto com Nóbrega, dois de seus irmãos e o pai de sua filha, Rodrigo Bittencourt.
Nóbrega deu início às tratativas do Lucho Comércio de Bebidas LTDA em 14 de maio de 2019 e lá investiu cerca de 200 mil, valor obtido por meio dos crimes da milícia em Rio das Pedras e da máfia da contravenção. A ideia original era expandir o restaurante pela capital e usá-lo para lavar o dinheiro sujo de Nóbrega. Só que ele morreu em fevereiro de 2020 e os planos não saíram do papel. No TJ, Julia fez questão de ressaltar sua distância dos negócios de Adriano e também de mencionar como o MP passou longe dos negócios em que Vera, mãe de Nóbrega, aparecia como titular, mas com ajuda dele. Segundo Julia, também foi a sogra quem ficou com a “herança” do miliciano.
Na cabeça de Julia soa como uma grande injustiça que ela tenha ficado sob prisão domiciliar e monitorada por meio de tornozeleira eletrônica enquanto Vera, que possui desde 2011 um restaurante com Nóbrega, permaneça sem nenhum questionamento do MP. Julia costuma recordar as “coincidências” nos empreendimentos de Vera com o grupo criminoso do filho, em Rio das Pedras. Os dados são, inclusive, públicos. Em agosto de 2019, uma reportagem do jornalista Hudson Corrêa revelou que no mesmo endereço de uma das pizzarias de Vera, o Boteco e Brasa, no Rio Comprido, funciona um outro CNPJ.2 Ele verificou a coincidência ao obter a nota fiscal do estabelecimento. Com o documento, notou que os donos do segundo CNPJ eram Júlio Cesar Serra e Daniel Alves de Souza, ambos denunciados na Operação Intocáveis junto com Adriano por formação de organização criminosa. Segundo a promotoria, Júlio atuava no controle da movimentação financeira do grupo e Daniel era gerente da milícia na Muzema, comunidade na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ambos foram, depois, condenados pelo TJ-RJ.3
Uma investigação sobre os negócios de Vera, na realidade, já existiu e estava no meio da apuração sobre como o senador Flávio Bolsonaro obtinha grande parte dos salários dos funcionários de seu gabinete. Mas o STJ anulou o acesso aos dados financeiros de Flávio e, por consequência, aos da mãe de Nóbrega e dos demais investigados. Resta saber se o MP vai tentar de novo e se terá êxito sem o depoimento recusado de Julia.
MAS, SE NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2021 havia resistência das autoridades, a guarda dos envolvidos ficou mais baixa à medida que o assunto causava menos temor e pressão. Se o MP não avançaria, nada impedia que nós, da imprensa, continuássemos investigando. E, depois de tudo que eu havia apurado e investigado desde 2018, sentia que um aspecto central ainda não ficara claro o suficiente: o papel de Jair Bolsonaro no cerne da história. Tão importante quanto as provas reunidas para denunciar Flávio pela prática ilegal da rachadinha e a lavagem de dinheiro foi constatar como diversos detalhes mostravam um aspecto de que Bolsonaro falava com frequência: seu gabinete e os dos três filhos eram uma coisa só.
Papéis, gravações, histórias do clã — tudo revelava uma faceta proibida que o presidente queria ocultar. Era preciso apenas organizar e explicar os fatos que vieram à tona. Em fevereiro de 2021, avaliei que era o momento de mais uma vez tentar a autorização para liberar as gravações da família Queiroz. Tive uma primeira conversa com minha fonte ainda em fevereiro, e depois falamos praticamente todos os dias durante o mês de março e o início de abril para marcar um encontro para a entrega de uma cópia das gravações. Não foi uma operação simples, mas deu certo. Para extrair os dados, o MP utiliza um software israelense chamado Celebritte. O material fica todo arquivado em um hardware e devido à quantidade de itens — mensagens, áudios, vídeos etc. —, o programa funciona muito devagar. Na primeira vez em que fiz cópias do arquivo e passei o material para um pen drive, os arquivos corromperam. Nem sei o motivo. Tive que repetir toda a operação e testei um a um para garantir que tinha dado certo. Fiquei quase seis horas fazendo isso. Cheguei em casa no fim daquele dia quase como se tivesse uma fortuna na bolsa, morrendo de medo de ser assaltada no caminho.
Com as gravações em mãos, pedi uma conversa com Madalena e relatei tanto o projeto do podcast como a liberação dos áudios. Só que para contar a história inteira era necessário o conjunto de gravações de Andrea Siqueira Valle, em posse de Madalena. Prometi que a íntegra permaneceria em sigilo e apenas os trechos de interesse público seriam publicados. Madalena ouviu, pensou e concordou.
Nós avançando numa ponta e o Judiciário fazendo o caminho inverso na outra. Em maio de 2021, surgiram os primeiros sinais de que o tão aguardado julgamento do STF, para definir o juiz do senador Flávio, seria realmente favorável ao clã Bolsonaro. Em primeiro lugar, o ministro Kassio Nunes Marques concedeu um voto, em maio de 2021, no qual dizia que parlamentares não deveriam perder o foro especial ao trocar de Casa Legislativa. Era um caso de um senador que fora deputado federal, tudo no âmbito do STF, situação diferente do caso de Flávio, que tinha deixado um mandato de deputado estadual para ir ao Senado. Mesmo assim, era um indicativo do voto que Nunes Marques daria poucos meses depois. Na sequência, o ministro Marco Aurélio Mello anunciou sua aposentadoria para julho de 2021, o que modificou a composição da 2a Turma, responsável por essa análise.
Em 5 de julho, estreamos o teaser do podcast A vida secreta de Jair, mostrando os indícios do envolvimento direto de Bolsonaro no esquema da entrega de salários nos gabinetes. No conjunto de gravações, aparecia a fisiculturista Andrea Siqueira Valle dando a temperatura exata de como funcionavam as coisas nos bastidores. As reclamações que ela própria fazia por ficar com 10% do salário, os detalhes de quem recebia das mãos dela o dinheiro e ainda o episódio em que o irmão, André, se recusou a devolver “o dinheiro certo que tinha que devolver”.
Naquela mesma semana, o plenário do STF julgava o trancamento de uma investigação pedida pelo advogado Ricardo Bretanha, para apurar os fatos que envolviam os cheques depositados por Queiroz para Michelle Bolsonaro. A PGR, como em quase tudo relacionado ao clã Bolsonaro, solicitou o trancamento.
O podcast, porém, chegou a Bolsonaro, que tomou conhecimento de tudo e se fechou no palácio. O primeiro reflexo do clã foi, por meio de nota, atacar a fonte. Cobrar detalhes sobre quando as gravações foram feitas e a íntegra dos áudios divulgados. Coisas que eu não podia detalhar para proteger Madalena. No restante da semana, enquanto o material repercutia, o clã agia nos bastidores mas mantinha-se calado em público.
A reação só veio na sexta-feira, 9 de julho, às 18h34, por meio de uma mensagem ameaçadora do advogado Frederick Wassef para o meu celular. Ela dizia o seguinte: “Queria te entrevistar. Voce e socialista?? Comunista???? Soldada da esquerda brava??? E daquelas comunistas gauchas guerreira??? Voce acredita mesmo que este sistema politico e bom para a sociedade e as pessoas???? Por que voce nao vai realizar seu sonho comunista em Cuba, Venezuela, Argentina ou Coreia do Norte??? Por que nao se muda para a grande China comunista e va tentar exercer sua profissao por la???? Faca la o que voce faz aqui no seu trabalho, para ver o que o maravilhoso sistema politico que voce tanto ama faria com voce. La na China voce desapareceria e nao iriam nem encontrar o seu corpo”. Ainda fui chamada de “inimiga da pátria e do Brasil” e ele fez comentários sobre o que pensava da minha sexualidade.
Posteriormente, representei o caso no MP-SP junto com cópias registradas em cartório das mensagens enviadas por ele. Também movi, aconselhada por organizações de liberdade de imprensa, um processo cível por danos morais devido ao episódio. Em junho de 2022, na primeira instância, o juiz Fábio Coimbra Junqueira, da 6ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, condenou Wassef por danos morais em 10 mil reais devido ao trecho em que ele tece comentários de cunho sexual. No entanto, o magistrado me condenou também em 10 mil reais por divulgar a mensagem intimidatória de Wassef, avaliando que ela seria “particular” e não reconheceu a ameaça. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Federação Nacional dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa e o Comitê de Proteção aos Jornalistas, sediado em Nova York, repudiaram a decisão. “Grave violação ao exercício do jornalismo, abrindo precedente perigoso para as liberdades de expressão e de imprensa no Brasil”, escreveu a Abraji. “Esta decisão estabelece um precedente perigoso para a imprensa brasileira, desencorajando jornalistas a denunciar ameaças e alimentando o crescente abuso on-line contra mulheres jornalistas no Brasil”, avaliou em Nova York a coordenadora do programa para a América Latina e Caribe do CPJ, Natalie Southwick.
EU RECORRI DA DECISÃO AO TJ-SP. Pouco antes de saber da sentença, em maio de 2022, Marcelo Nogueira me contou o que Wassef fazia na semana em que me ameaçou, cerca de um ano antes.
Na manhã do dia 5 de julho de 2021, dia da estreia da teaser do podcast, Cristina viu as reportagens e ouviu os áudios da irmã. Desesperada, fez com que na mesma hora Jair Renan acionasse o pai e Wassef. Exigia ajuda e providências de apoio no caso.
Cristina estava morando em Brasília desde fevereiro de 2021. Tinha se mudado com o propósito de ajudar o filho a cuidar dos negócios. Pouco antes da chegada da mãe, Jair Renan, na cola dos irmãos, já estava sendo investigado pela PF e MPF. Era apontado por tráfico de influência: ele arrumava encontros com ministros e funcionários do governo a empresários que externavam sua gratidão sem lhe cobrar por serviços prestados. Quem conhece o rapaz garante que ele não tem tanta perspicácia para, sozinho, se articular tanto.
Cristina chegou com ganas de disputar uma vaga de deputada distrital em Brasília e arrumou um emprego como assessora da deputada Celina Leão (PP-DF). E se pôs a agendar encontros para moldar esses planos para as eleições de 2022, mesmo que atualmente Cristina tenha nacionalidade norueguesa, o que pode barrá-la. A lei brasileira só permite que brasileiros, e para alguns cargos, portugueses, concorram a cargos eletivos do país. Mas esse problema só o círculo íntimo dela sabe. No DF, Cristina deixou para trás os parentes que viviam lhe pedindo para resolver a situação da defesa deles nos casos de Flávio e de Carlos. Acreditou que os problemas diminuíram devido às decisões no STJ. E aí vieram à tona as gravações de Andrea.
Naquela segunda-feira, Wassef orientou Cristina a levar o irmão para Brasília para evitar a imprensa. Depois, André chegou a postar fotos tocando violão na mansão. A mesma orientação chegou a Adriana Teixeira, ex-sócia de Cristina, que morava no Rio. Ainda na noite de 5 de julho de 2021, os dois chegaram à casa da ex-mulher de Bolsonaro no Lago Sul. O advogado também se reuniu com Cristina naquela mesma noite. André ficou pouco mais de uma semana com a irmã esperando a poeira baixar. Já Adriana Teixeira foi embora no dia seguinte. Ela se queixava de dívidas de quando as duas mantinham uma empresa de seguros que funcionava no mesmo local do antigo escritório de advocacia de Cristina, ainda na época do casamento da ex-sócia com Jair. Reivindicava dinheiro para pagar dívidas trabalhistas. Cristina costumava dizer em casa, especialmente a Marcelo, que a ex-sócia cobrava pelo silêncio dos bastidores do esquema. E não era de agora que as duas vinham se estranhando. Ainda em fevereiro, Cristina entregou 10 mil reais em dinheiro vivo a Adriana. Segundo Marcelo, Renan obteve 20 mil junto a Wassef e Flávio. As duas se encontraram na rodoviária de Resende para a entrega do montante e depois Cristina guardou a outra metade. Adriana disse que foi um empréstimo, Cristina, o pagamento de um silêncio.
Por isso, quando os áudios de Andrea vieram à tona, Wassef temeu que a imprensa chegasse a Adriana. Foi isso que o fez orientar Cristina a levar Adriana para Brasília. Ele sempre lida com as crises da mesma maneira: tirando as pessoas de circulação dos lugares onde elas são conhecidas. Adriana disse que foi a Brasília na expectativa de um emprego, mas, quando viu que isso não iria ocorrer, voltou ao Rio. Alguns dias depois, trocou mensagens com Marcelo Nogueira, o antigo funcionário de Cristina. Adriana tinha ouvido falar que pessoas ligadas a Flávio estavam atrás dela. Foi então que descobriu que Marcelo Nogueira e a advogada tinham rompido e que ele havia pedido demissão do emprego justo naquela semana em que os áudios foram ao ar. Marcelo tinha deixado a vida em Resende a pedido da ex-patroa e, segundo ele, Cristina estava se recusando a pagar o salário combinado. Os dois discutiram feio e ele prometeu denunciá-la no Ministério Público do Trabalho.
Passados alguns dias, em 23 de agosto, Adriana perguntou a Nogueira quem estava atrás dela, e ele respondeu em uma mensagem de texto: “Foi o Flávio. Ele queria que eu tentasse saber com você o que tinha de provas contra eles e se além dos 20k que a Cristina falou que você estava pedindo e que ele mandou te dar, se você teria a intenção de pedir mais. Mas falei que não iria me meter nisso”. A resposta dela foi indignada: “Gente, eu não pedi nada”.
Na semana seguinte, Adriana ia descobrir que ela, Cristina e Carlos Bolsonaro estavam com o sigilo bancário e fiscal quebrados por decisão da Vara Criminal Especializada no Combate do Crime Organizado do TJ do Rio. Era o resultado da medida cautelar que o Gaecc tinha feito no fim de 2020 e não pôde apresentar devido às mudanças na cúpula do MP. Mas, quando o caso voltou à 3ª Promotoria de Investigação Penal, a petição foi apresentada ao Judiciário e o pedido foi autorizado. No documento, um enredo muito parecido com a história de Flávio Bolsonaro. Núcleos de funcionários-fantasmas, lavagem de dinheiro com imóveis e empresas. Era como se o filme se repetisse. Dessa vez, com Carlos e a inclusão de uma protagonista da vida de Jair Bolsonaro: Cristina.
Não adiantava fugir. De todos os lados, a história voltava. Poucos dias depois da notícia sobre a quebra de sigilo, Marcelo Nogueira resolveu romper o silêncio em várias entrevistas sobre o período em que conviveu com o clã. Primeiro, para o jornalista Guilherme Amado, do Metrópoles. Ele admitiu que entregava para Cristina 80% do salário que recebia como assessor de Flávio. Falou que ela havia usado laranjas para comprar a mansão de 3,2 milhões de reais onde está vivendo no Lago Sul, em Brasília, e a denunciou por trabalho escravo.
As reportagens saíram e Cristina passou a dizer aos mais próximos que Marcelo tinha tentado chantageá-la pedindo 200 mil reais. Na versão de Nogueira, a mensagem com o valor fez parte do contexto da briga dos dois. Ele pretendia fazer um acordo pelo tempo de trabalho como doméstico, pois nunca acreditou que ela fosse lhe pagar alguma coisa. Mas insiste que tudo que relatou de fato aconteceu. Marcelo ainda questiona o fato de que Cristina jamais o acusou na polícia ou tomou providências contra ele após as entrevistas porque sabe que é verdade e que ele até pode provar.
O clã, bastante tenso com o tanto que Nogueira falou, ficou só observando. Preocupado, o ex-funcionário se resguardou montando uma rede com diversas pessoas de confiança a quem entregou documentos sobre Cristina e uma lista de contatos. Outra vez aparecia uma testemunha que podia ajudar o MP do Rio a refazer as provas do caso de Flávio. Mas Nogueira não foi chamado para depor até julho de 2022.
O Judiciário continuava aqui e ali dando decisões favoráveis a Flávio, que iam tirando as bases legais do caso. Em novembro, o STJ reviu parte do julgamento de março e, de uma vez, decidiu anular todas as decisões de Itabaiana. Com isso, anulava todas as provas obtidas a partir das buscas autorizadas pelo juiz. Era a revisão de uma decisão que tinha sido totalmente diferente meses antes, quando a maioria dos ministros entendeu que o foro de Flávio tinha mudado depois das decisões, e a jurisprudência vigente na época das cautelares que Itabaiana assinou fazia dele o juiz competente do caso.
Mas o STJ mudou de posição após um julgamento do STF reconhecer por oito votos a três a manutenção do foro na Corte no caso de um deputado federal que se tornou senador, situação de Márcio Bittar (MDB-AC), em maio de 2021. Na ocasião, alguns ministros restringiram a manutenção a parlamentares federais. O ministro Kassio Nunes Marques foi mais abrangente. Em seu voto, disse que o foro deveria ser mantido a todos os parlamentares que tiveram sucessivos mandatos “sendo irrelevante para tal que ele tenha mudado de Casa Legislativa”. Essa era justamente a tese da defesa de Flávio Bolsonaro, uma vez que ele saiu da Alerj para o Senado, e um indicativo de que o ministro Nunes Marques votaria a favor. Assim, a defesa argumentou outra vez que, reconhecido o foro especial, o juiz não era competente. Anulam-se as decisões e, portanto, as provas. A argumentação jurídica do STJ serviu para a mudança no STJ e foi aplicada para anular as provas.
Em novembro de 2021, o STF finalmente pautou a reclamação do MP-RJ sobre o foro competente e concedeu foro especial a Flávio, além de criticar o MP por ter perdido o prazo para o recurso. O relator foi o ministro Gilmar Mendes, mas Nunes Marques era, nesse julgamento, presidente da 2ª Turma, e também foi decisivo para o êxito do clã Bolsonaro. Com as decisões do STF e do STJ, a investigação voltou à estaca zero. Não chegou a ser totalmente anulada, mas ficou com o revés de exigir que se produzisse de novo todas as provas financeiras que mostraram o caminho do dinheiro dos assessores até Flávio. Procurei o ministro Nunes Marques algumas vezes para falar de sua relação com Bolsonaro e Wassef, mas ele não quis conceder entrevista. Ao ser questionado sobre encontros com Wassef e Bolsonaro, em dezembro de 2018, Nunes Marques me respondeu apenas que conheceu Jair em Brasília. Não quis detalhar.
NO SEGUNDO SEMESTRE DE 2021, Fabrício Queiroz já vinha circulando aqui e ali, retomando contatos e a vida social de antes, sonhando em reassumir sua posição junto ao clã. Mas foi no 7 de setembro que ele botou a cara na rua. Saiu cedo com o filho em direção a Copacabana, para participar dos protestos de ataque ao STF. Seria um teste para o ex-policial, que, cansado de ser coadjuvante, já planejava disputar uma vaga no Parlamento em 2022. E, no meio dos bolsonaristas, andou como se jamais tivesse sido acusado de operar um esquema criminoso. Inclusive bateu continência para uma imagem de Roberto Jefferson, dirigente do PTB preso pouco antes por ordem do STF, acusado de atacar a Corte. E, se Queiroz se sentia livre para ir às ruas, quem não achou seguro acompanhar o protesto in loco, num trabalho tantas vezes trivial, fui eu. Naquele dia, os ânimos exaltados dos manifestantes e a preocupação de ser identificada me fizeram dar expediente de casa.
Os passos seguintes de Queiroz foram algumas viagens a Brasília para negociar sua candidatura. Em novembro ele deu a primeira entrevista. Ao SBT, é claro. Mais uma vez disse ter se escondido por medo de ameaças de morte. Negou crimes, mas sempre que precisava esclarecer alguma coisa dizia que o processo corria em sigilo. Falou que tinha um sonho: reaproximar-se de Jair Bolsonaro.
Sabe-se que Flávio e Queiroz haviam voltado a se falar com frequência, nos bastidores. Inclusive por motivos, digamos, profissionais: Queiroz estaria entrando em contato com ex-assessores da Alerj para “mantê-los na linha”. Depois das entrevistas de Nogueira, Queiroz o procurou por semanas, e tanto fez que conseguiu seu telefone. Ligou e quis saber quais eram as intenções do ex-funcionário de Cristina e Jair. Sua questão era apenas com a ex-patroa, disse Nogueira, pelo tempo em que se sentiu explorado. Queiroz não o incomodou mais. Mas o policial voltaria a procurar outros assessores.
Depois que o STJ anulou as quebras de sigilo, a decisão deu margem para que se contestasse grande parte das provas coletadas na investigação. Porém ainda existia um elemento bastante perigoso: a colaboração espontânea de Luiza Paes junto ao MP. Em dezembro Queiroz e Flávio discutiram a situação em uma chamada de vídeo. É como o senador se sente mais seguro para falar de coisas sigilosas. Flávio pediu a Queiroz que cuidasse do assunto, encontrasse um modo de Luiza voltar atrás. Em fevereiro de 2022, eu soube dessa chamada e dos planos de Queiroz para se candidatar a deputado federal pelo Rio.
Resolvi procurar Queiroz e Flávio para saber se eles admitiam que haviam voltado a se falar. Ambos confirmaram. Quando perguntei a Queiroz a que partido pretendia se filiar, ele me escreveu uma mensagem no WhatsApp dizendo que tinha prometido à família que nunca falaria comigo devido às minhas reportagens desde 2019. Apesar da promessa, ele ainda disse: “Você é terrível, Ju. Boa jornalista. Faz bem seu trabalho”. A mensagem irônica me soou como uma admissão tácita de tudo que foi reportado até aquele momento. Depois, ele recusou os pedidos de entrevista para este livro.
Fiz contato com o advogado Caio Conti Padilha, advogado de Luiza, para saber se ela concordaria em falar do episódio. Ele disse que não. “Sobre qualquer fato relacionado à minha cliente Luiza Souza Paes eu só me manifesto nos autos dos processos e dos procedimentos investigatórios, que tramitam em sigilo, e, por isso, não posso comentar.”
A liberdade com que Queiroz e Flávio voltaram a atuar está relacionada ao atual estágio das investigações do caso. Depois que o STJ anulou as principais provas, sobretudo os dados financeiros, o MP não tinha outra escolha a não ser pedir o arquivamento da denúncia que já tinha sido apresentada em outubro de 2020 e estava repleta daquelas informações. Esse movimento foi necessário até para que novos atos possam ser feitos no procedimento que apura o caso. Assim, em 16 de maio de 2022, o Órgão Especial do TJ-RJ arquivou a denúncia e a PGJ fluminense ficou com o caminho livre para retomar as investigações e um eventual novo pedido de quebra de sigilo de Flávio, Queiroz e dos demais envolvidos. Embora, nos bastidores, o que comentaram comigo é que as chances de isso ocorrer antes do resultado das eleições, em 2022, são mínimas.
Mesmo assim, o presidente já expressou algumas vezes a preocupação com o que pode lhe acontecer depois do fim do mandato caso não seja reeleito. Tanto que tenta se cercar de todas as maneiras, proibindo acesso até a informações básicas da transparência como a de quem o visita no Planalto ou na Alvorada. Dados que eram públicos em governos anteriores agora possuem cem anos de sigilo.
Jair Bolsonaro e
seus filhos temem que as pessoas conheçam quem eles realmente são, sua vida e
seus empreendimentos secretos. Mas a história proibida da família Bolsonaro não
será apagada. Mesmo depois de quatro anos investigando a história do “Negócio
do Jair”, sei que ainda há muito para ser revelado. O passado assombra o futuro
do presidente e do clã Bolsonaro.
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