domingo, 30 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 05 - "b" )

 


Normalizando a exceção: o conluio entre a grande mídia e a Lava Jato

 

No dia 17 de junho de 2017, arrisquei uma olhadela no programa Painel, comandado por WilliamWaack na GloboNews. Foi a mais perfeita introdução a esta conclusão do livro que eu poderia imaginar. Waack propõe a seus convidados a análise da conjuntura política nacional com base na crise entre os poderes da República. A partir daí cada um se esmera na análise de qual poder estaria invadindo a seara alheia. O mais importante, como sempre acontece na vida, no entanto, seria aquilo que não foi perguntado e, portanto, que não poderia ter sido respondido: seria perguntar quem mais ajudou para que a bagunça institucional entre os poderes e a crise atual do Brasil atingisse tamanhas proporções?

Pus-me, então, naquela posição que certamente o leitor também já deve ter se posto em diferentes ocasiões: e se eu estivesse lá respondendo às questões erradas montadas no perverso teatrinho global para fazer as pessoas de imbecis? Ninguém nasce imbecil, mas podemos ser feitos de imbecis, e a Rede Globo se especializou nesse trabalho. Bem, eu teria aproveitado cada segundo para desmontar a farsa para milhões, o que garante que jamais seria convidado para coisas assim pelo resto da vida na Globo. Eu teria respondido que quem mais contribuiu para a crise atual, tanto a econômica quanto a política, assim como também para a própria crise entre os poderes, foi a própria Globo, juntamente com toda a grande mídia, que ela comanda ao construir a pauta da mídia como um todo. Teríamos de começar por analisar seu papel no golpe e no pós-golpe, portanto, já que todo o descalabro foi efeito em consequência da mentira midiaticamente produzida. Seria interessante saber o que o jornalista William Waack faria: interromperia o programa? Faria de conta que não existo? Bem, deve ser por isso que ele só convida quem pensa como ele.


Por que a grande mídia, e muito especialmente a Globo, continua tratando a corrupção como se ela estivesse em todas as instituições menos nela? Até quando? E ainda se põem comentaristas e âncoras com ar de indignados com a situação moral do país, permitindo a identificação com a audiência imbecilizada? Por que os procuradores da operação Lava Jato, da boca para fora tão indignados com a corrupção quanto os âncoras da Globo, não tiveram o menor interesse de saber a efetiva participação da imprensa e, em particular, da emissora, nos esquemas de beneficiamento a empresas privadas que apenas a Odebrecht estava sendo acusada? Emílio Odebrecht em sua delação à Lava Jato, referindo-se às necessidades no Brasil de sua empresa, ressaltou que, além de aportar a engenharia dos projetos, tinha também de cuidar de sua viabilidade financeira. Assim ele declarou textualmente:

O que me entristece, e aí eu digo (em relação a) da própria imprensa, que a imprensa toda sabia, que o que efetivamente acontecia era isso. Por que agora é que tão fazendo tudo isso? Por que não fizeram isso há dez, quinze, vinte anos atrás? Porque isso tudo é feito há trinta anos... Por exemplo, na quebra dos monopólios, nós ajudamos a quebra dos monopólios, inclusive sobre a parte de telecomunicações, nós chegamos a montar uma sociedade privada com três ou quatro empresas... uma delas era até a Globo... para criar um embasamento acerca do que estava acontecendo no mundo... para que isso facilitasse aquilo que era decisão de governo, de quebra de monopólio das

telecomunicações, da parte do petróleo, e outras coisas...

Um procurador da Lava Jato, que está ouvindo a delação, interrompe o presidente da Odebrecht, não para pedir mais detalhes e abrir um fulcro na investigação que levaria ao elo mais interessante que uma investigação desse tipo poderia abrir. Não a mera associação com partidos políticos, mas a associação entre empresas privadas, imprensa e poder público, com o fito de enganar o público. Em vez disso, o procurador diz, candidamente, “sempre há um momento para começar”, se autojustificando em vez de aproveitar a revelação para inquirir e saber mais. Emílio Odebrecht não se faz de rogado com o desinteresse dos procuradores e volta com o assunto:


Mas é importante que haja compreensão disso, isso é uma realidade... Essa imprensa sabia disso tudo, e fica agora com essa demagogia... todos sabiam como funcionava e acho que todos deveriam fazer essa lavagem de roupa suja... pela omissão que tiveram durante todo esse tempo...

O empresário mencionou a existência de uma sociedade privada, com participação da Globo, com o objetivo de fazer lobby pela privatização da telefonia pública e pela quebra do monopólio do Estado no setor do petróleo e outros setores. Fernando Henrique Cardoso diria desse trabalho da mídia de enganar o público com as supostas vantagens da privatização, com um interlocutor privilegiado, que “o pessoal está até exagerando”.109 Apesar da relutância dos procuradores da Lava Jato, visivelmente constrangidos com a revelação, afinal, ela se referia não ao patrimonialismo do PT ou Lula, mas à associação de interesses entre a elite do atraso e da rapina e ao papel de sua imprensa de dourar a pílula ao saque das riquezas de todos em benefício de uma meia dúzia de ricaços, Emílio Odebrecht só desistiu depois de muito tentar chamar atenção dos paladinos da justiça.

Emílio Odebrecht queria contar, afinal ele sabia que a Globo e as outras mídias estavam mantendo uma imagem imaculada em um esquema de lesar a sociedade, ficando apenas ele e sua empresa com a conta. Ninguém gosta de ser tratado como tolo e ver seu parceiro de esquema se sair imaculado e sem culpa, e ainda tirando onda de “virgem no cabaré” e fazendo o teatrinho de enojado pela situação, como a Rede Globo e o restante da grande imprensa faz. A hipocrisia da Globo e da imprensa em geral era o que irritava e enojava Emílio Odebrecht. Por conta disso, o patrono da Odebrecht se referiu várias vezes ao fato, o que qualquer um pode conferir na sua delação que continua na internet, mas os procuradores da Lava Jato se mostraram tão seletivos no seu combate à corrupção quanto William Waack na escolha de seus interlocutores. Certamente, acharam que essa informação não viria ao caso, como costuma dizer o juiz Sérgio Moro quando as informações não se referem a Lula e ao PT.

Como a Globo conseguiu tamanho poder de, como Emílio Odebrecht insinuou, saber de tudo que acontecia e ainda tirar onda de vestal da moralidade nacional? E, com base no seu monopólio virtual da informação, manter uma sociedade imbecilizada e conscientemente desinformada, subjugar os poderes da democracia representativa e cooptar o aparelho judiciário-policial do Estado, e ajudar, como nenhuma outra instituição, o aprofundamento de uma crise sistêmica, sem perder a concessão pública? Tamanho feito requer governos autoritários e ditadura. Como a Globo conseguiu o feito em tempos de democracia formal?

A formação do que chamei de pacto antipopular entre uma ínfima elite do dinheiro, que encara a sociedade como um todo como espólio para saque financeiro, e os setores mais conservadores da classe média deu-se pelo que chamamos de colonização da esfera pública pelo poder do dinheiro. Se as classes populares são exploradas e reprimidas com violência e a questão social, até hoje, é tratada como questão de polícia e violência física, a classe média é mantida leal por outros motivos. Esse ponto é essencial para a compreensão do Brasil contemporâneo.

A servidão da classe média e de suas frações mais conservadoras à elite, que as explora e as usa para a reprodução de seu poder cotidiano, é conseguida por meios simbólicos. Em vez do cassetete da polícia, temos aqui a manipulação midiática das necessidades de autolegitimação da classe média transmutadas em defesa da moralidade estreita da suposta corrupção patrimonialista. A crítica da imaturidade das classes populares sob a forma do populismo fecha o pacote do acordo transclassista que se une contra qualquer forma de ascensão popular verdadeira.

O lócus, onde esse acordo entre desiguais se consuma, é uma esfera pública para inglês ver, colonizada pelo dinheiro e sem qualquer pluralidade de opiniões que permita a construção de sujeitos autônomos e com opinião própria. Contra a classe média, portanto, a violência da elite de proprietários que controla não só a produção material, mas, também, a produção intelectual e a informação, é uma violência simbólica. Um tipo de violência não percebido enquanto tal, posto que se vende como se fosse convencimento real.

O mecanismo principal desse tipo de dominação é uma imprensa desregulada e venal, que vende uma informação e uma interpretação da vida social enviesada pelos interesses do pacto antipopular. Isso acontece tanto porque é dependente de seus anunciantes quanto porque participa, ela própria, do mesmo esquema elitista dominante do saque e da rapina do trabalho coletivo. Como não houve aqui a criação do mecanismo da TV pública, que não se confunde com TV estatal, em uma sociedade com pouca leitura e pouca reflexão, a dominação simbólica mais violenta encontrou terreno fértil para se desenvolver.

A história da sociedade brasileira contemporânea não pode ser compreendida sem que analisemos a função da mídia e da imprensa conservadora. É a grande mídia que irá assumir a função dos antigos exércitos de cangaceiros, que é assegurar e aprofundar a dominação da elite dos proprietários sobre o restante da população. A grilagem agora não assumirá mais apenas a forma de roubo violento da terra dos posseiros pobres, mas sim também a forma da colonização das consciências com o fito de possibilitar, no entanto, a mesma expropriação pela elite. Substitui-se a violência física, como elemento principal da dominação social, pela violência simbólica, mais sutil, mas não menos cruel.

Nos últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais bem-sucedido empresarialmente, nem se esmerou tanto na tarefa de distorcer sistematicamente a realidade brasileira, em nome de interesses inconfessáveis, quanto a Rede Globo. Não que ela esteja sozinha ou seja muito pior que o resto da grande imprensa. Não, toda a grande imprensa se irmana no ataque à democracia e à soberania popular. Recentemente, a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, apenas para citar um exemplo entre milhares possíveis, mostraram a mesma foto de capa depois das manifestações no dia 24 de maio em Brasília contra o governo Temer, onde um vândalo ataca com pedras um prédio público.

Para quem viu, como eu, a manifestação inteira por filme que deixava claro o ataque e a provocação policial com cavalaria e com bombas de efeito mortal sobre os manifestantes então pacíficos, a violência simbólica, a mentira consciente e a fraude do público eram estarrecedoras. Uma imprensa em conluio com uma repressão antidemocrática e abusiva, em nome da distorção sistemática da informação, não é privilégio da Globo. A revista Veja, por exemplo, se esmera em matérias cuja finalidade é produzir ódio e informação enviesada e distorcida para seu público da fração protofascista da classe média. Mas a Globo levou a fraude e a distorção sistemática da realidade a níveis de ficção científica. E, pelo seu tamanho, influência e ousadia no último golpe, merece atenção especial. Além disso, os donos de jornal e revistas possuem uma empresa privada, enquanto a Rede Globo é uma concessão pública.

O começo do império da Globo foi construído à sombra da Ditadura Militar. Passando a operar em rede no país como um todo, ela passa a servir como porta-voz dos interesses do governo militar. O programa Amaral Neto, o repórter serve diretamente como propaganda ufanista do governo e suas realizações de modo acrítico. O Jornal Nacional, cuidadosamente monitorado, assume a forma “nacional”, como o nome já diz, e alcança toda a população com um mote caro aos militares no poder.

De resto, a Globo assume mimeticamente a dinâmica e a forma da época do “Brasil grande”. Excelência técnica passa a valer como símbolo do tipo de modernidade que chegava ao país e a própria empresa passa a explorar ao máximo os ganhos materiais e simbólicos que essa associação lhe garantia. Modernidade capenga certamente, posto que retirava da esfera pública sua característica principal e decisiva: a pluralidade dos argumentos em disputa. Vimos na reconstrução histórica inspirada por Habermas que “modernidade” efetiva e real é a capacidade de produzir informação plural e juízo autônomo. É fundamentalmente isso que a modernidade tem de positivo quando comparada com outras épocas históricas. O resto é secundário ou mais do mesmo que existia antes com outras máscaras. É isso que se perde com sua colonização pelo dinheiro: a capacidade de reflexão e aprendizado de todo um povo!

Nossa esfera pública tardia já nasce sob império da manipulação sem jamais ter conhecido outra experiência. Falta ao público brasileiro qualquer padrão de comparação para avaliar o que recebe em casa. A Globo vicejou nesse contexto. Males da época, poder-se-ia dizer. Não é verdade, já que, mesmo na redemocratização, o mesmo projeto é inclusive aprofundado. A partir daí, a Globo jamais deixou de se apresentar como um misto de TV estatal e pública, utilizando-se dos ganhos simbólicos e materiais que esse tipo de confusão consciente provoca no seu público cativo.

Essa confusão, que foi vital para o crescimento da empresa sob os militares, se revelaria ainda mais produtiva no contexto da redemocratização. Galvão Bueno e seu nacionalismo de fachada e exagerado são um símbolo dessa estratégia empresarial que procura confundir de propósito a empresa com a nação, o interesse particular e venal com o interesse público e universal. Quem não lembra, entre os mais velhos, do tema de Ayrton Senna a cada vitória e depois a volta triunfal envolto na bandeira brasileira, enquanto o locutor aos gritos comemorava mais uma vitória que era de toda a nação e sentida enquanto tal pelos telespectadores? Os exemplos práticos dessa estratégia de engodo volitivo e refletido são incontáveis.

Campanhas como Criança Esperança reforçam essa imagem de TV de interesse público, desviando o fito real da empresa. Mas, além dessa farsa inicial, que acompanha a empresa até hoje, a Globo também se especializou em veicular a farsa maior do capitalismo financeiro em escala mundial: esconder a superexploração do trabalho que ele implica e ainda se vender como crítica da sociedade. Assim, a defesa de minorias, desde que não envolvam repartição de riqueza e de poder social, é apoiada pela empresa, que pode posar de crítica e emancipadora. A glorificação da periferia das grandes cidades, desde que não envolva real incorporação das classes populares aos bens civilizatórios, o que exigiria a discussão de suas carências que são reais, também é defendida pela Globo. Inúmeras novelas, assim como o programa Esquenta, com Regina Casé, servem para esconder o engodo.110 Aqui se chama “favela” de “comunidade”, como se com isso a vida prática dessas pessoas pudesse melhorar pela magia da palavra bonita que espelha uma mentira.

A Globo é a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama a si mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos. A glorificação do oprimido não ajuda em nada que o cotidiano cruel e opressivo dos pobres seja melhorado, mas emula a necessidade de legitimação da vida que se leva quando as mudanças efetivas estão fechadas. O mais cruel é que as possibilidades de redenção real são tanto mais impossíveis quanto maior a influência dessa mensagem mistificadora produzida pela emissora. Como no golpe de 2016, a emissora ajudou a impedir a continuidade de um processo de ascensão social dos pobres que era real. O processo de manipulação social caminha sempre no sentido de extrair a riqueza de todos e concentrar o poder nas mãos de poucos – inclusive da família que manda na empresa –, dando a impressão de que se é defensor dos melhores valores da igualdade e da justiça. Mesmo toda a fraude golpista da moralidade seletiva é construída como se a TV fosse mero veículo neutro de informação.

Assim, no auge do desmantelamento do Estado, da economia e da democracia brasileira, a Globo mostra uma série de programas especiais que criticam o fascismo de Donald Trump, lá longe nos EUA, como se não estivesse acontecendo algo muito pior aqui com a própria Globo no centro do esquema de legitimação. E como se o fascismo descrito por George Orwell – o mote da crítica da TV a Trump – aqui não tivesse o dedo da empresa como um dado fundamental. A Rede Globo opera como uma TV falsamente pública, da Ditadura até hoje, sem qualquer mudança. Programas especiais são realizados para mostrar a corrupção como dado cultural e histórico do Estado e dos políticos, encobrindo o mercado e a ação da própria mídia. Programas como os de William Waack apresentam o populismo como grande farsa petista, confirmando nossa intuição de que esses dois elementos são as mentiras constitutivas da violência simbólica construída desde o século passado.

A colonização da esfera pública assume não apenas a forma de rebaixamento de todos os conteúdos para ampliar o público consumidor, ela assume a forma da confusão cevada e proposital do interesse privado sempre apresentado como público. Coloniza-se aí não apenas o consumidor do produto cultural, mas também coloniza-se nesse engodo e fraude deliberada o cidadão induzido em uma crença contra a qual se encontra literalmente sem defesa. É a partir dessa confusão deliberada, construída com maestria técnica e cuja expressão é corporificada por figuras bonitas, talentosas e charmosas, que a Globo assume um papel central e muito mais importante que todos os outros veículos e mídias de comunicação somados.111

A Globo é a mídia por excelência que fez reverberar na população indefesa o pacto antipopular que reconstruímos neste livro. O que foi produzido pelos intelectuais na construção da oposição entre mercado divinizado e Estado demonizado, quando ocupado por líderes populares, foi a ideia-guia da Globo e do jornal que existia antes disso, toda vez que fez política. Atacou de modo virulento e ajudou no episódio do “suicidamento” de Getúlio Vargas, apoiou o golpe de 1964 e se tornou com prazer e desenvoltura a voz da Ditadura. Também perseguiu Leonel Brizola – como sempre por dinheiro – e ajudou no desmonte dos CIEPS e dos investimentos em educação popular no Rio de Janeiro. Envolveu-se em fraudes explícitas na apuração de eleições para beneficiar Moreira Franco contra Brizola.112 Apoiou Fernando Collor de Mello contra Lula, utilizando-se dos recursos mais baixos que um jornalismo de latrina pode usar, com a edição maldosa do debate entre os concorrentes para favorecer Collor. Apoiou a venda e privatizações do patrimônio público, enganando seu público no governo FHC para facilitar o saque do patrimônio público.113

 

O envolvimento em episódios como a operação Lava Jato faz, portanto, parte do DNA da emissora. Foi a Globo que apoiou, juntamente com a mídia venal, a rejeição da PEC 37, desconhecida da população em geral, antes que o Jornal Nacional, na voz de William Bonner, recomendasse a sua turba dos “camisas amarelas” a sua derrubada em nome do combate à corrupção.114 A iniciativa, na verdade, era uma medida autoritária de interesse da fração corporativa dominante no Ministério Público, que queria aumentar seu poder e diminuir controles democráticos que são a regra em toda sociedade civilizada. A partir daí, uma série de vazamentos seletivos e ilegais, então criminalizando unilateralmente o PT, levou ao “golpeachment” da presidente eleita pelo voto popular. O conluio entre a Globo, comandando a grande mídia, e a farsa da operação Lava Jato tem aí sua semente, sua estratégia e seu alvo seletivo. Tudo descarado desde o começo, quando o próprio juiz Sérgio Moro já havia defendido explicitamente que o apoio da mídia é fundamental para deslegitimar o poder político.115 Poder político que um juiz, monocraticamente, decide ser digno de deslegitimação com alvo partidário seletivo e de uma parcialidade chocante.

Uma espécie de soberania judicial autoconstituída, levando o caso até a própria escuta ilegal da presidenta, o que em qualquer outro lugar onde as leis também se aplicam a juízes inflados por uma mídia venal teria que ter levado a sua prisão e destituição do cargo. Esse é certamente um caso único nas sociedades modernas: um grupo de mídia se intromete seletivamente na política, se alia a juízes com agenda própria e corporações com interesses particularistas, como o MP e a Polícia Federal, chantageia e ameaça juízes de tribunais superiores e políticos, usando a turba protofascista da classe média como massa de manobra, e consegue destronar um governo eleito democraticamente.

Não satisfeita, decide assumir a governança da sociedade em suas próprias mãos. Ajuda a eleger um governo que todos sabiam ser uma quadrilha de ladrões, hoje denunciada por todos, inclusive por ela própria, em nome do combate à corrupção. Apoia uma agenda recessiva e retrógrada que nunca teve apoio popular ao arrepio da vontade da maior parte da sociedade. Isso tudo como se estivesse apenas informando a realidade como ela é. Na realidade, coube à Globo o papel principal, sendo acompanhada, no entanto, por toda a grande mídia, na construção do estado atual de deslegitimação crônica das instituições democráticas acusadas de práticas que a Globo deveria ter sido a primeira a pagar. Com a instância política fragilizada, e a espada de Dâmocles do moralismo seletivo na cabeça da política como um todo, a Globo se alça à instância decisiva do projeto político em vigor. O objetivo, como sempre, é legitimar o saque da elite do atraso sobre a sociedade como um todo, da qual faz parte e da qual é também, por assim dizer, a sua boca.

Sua sanha se dirige ao PT e aos movimentos populares que o apoiam. A Lava Jato forneceu concretude ao ataque à democracia pelos vazamentos seletivos ilegais até as eleições municipais de 2016, fazendo crer a população que apenas o PT havia cometido ilegalidades. Com essa fraude, logrou dizimar o partido e fazer o PSDB renascer das cinzas nas eleições daquele ano. Tudo em nome da verdade e da democracia. A mentira institucionalizada pelas corporações do Estado, que deveriam zelar por aquilo que estavam destruindo, só há pouco tempo veio à tona. O que está em jogo, portanto, não é apenas o ataque à democracia e ao princípio da soberania popular. Mas também ao próprio princípio da igualdade social, que é a bandeira máxima do PT.

A soberania popular foi atacada constantemente desde 2013. É importante perceber aqui pressupostos importantes. Mesmo a sentença de um juiz, que não é eleito diretamente, só tem alguma validade jurídica posto que se pressupõe que foi ungido no cargo por delegação de competência, que pressupõe a soberania manifesta popular. Depois que a noção de soberania pelo direito divino dos reis com sangue azul perdeu validade, o único princípio que justifica e legitima o poder no Ocidente é a soberania popular consagrada pelo voto de todos os cidadãos.

Não existe saída ao tema da soberania popular como única forma legítima de exercício do poder político. A opção à soberania popular é a violência ditatorial. Não existe nada no meio caminho entre soberania popular e violência nua e crua, assim como não existe mulher mais ou menos grávida. Assim sendo, a Globo, no seu ataque à ideia de soberania popular, teve que se valer de uma fraude bem perpetrada: ao chamar seu público cativo às ruas, primeiro a fração protofascista e só depois, com os vazamentos seletivos só contra o PT, porções significativas das outras frações, a Globo fabricou a ilusão da soberania virtual.

A soberania virtual coloniza o potencial legitimador da soberania popular ao dar a impressão que a corrige em ato, com o povo nas ruas sob a máscara de uma democracia direta comandada pela Rede Globo, corrigindo o que se fez nas urnas, supostamente sem saber o que se estava fazendo. Sem isso, não se entende de onde a Globo e a grande imprensa a serviço da elite do saque retiraram legitimidade para realizar a lambança que fizeram no país, fazendo de conta que estavam interessadas no combate à corrupção. Sem a fraude gigantesca da soberania virtual não se compreende o que se passou de 2013 a 2016 sob a batuta dessa fábrica de mentiras institucionalizada, hoje literalmente tão sem controle quanto as instituições e corporações do Estado que a Globo liderou nesse massivo ataque à jovem democracia brasileira.

É claro que as empresas arriscam seu capital de confiança nesse jogo acreditando que podem fazer seu público de tolo o tempo todo. Um cálculo arriscado, mesmo se levarmos em conta a ausência de padrão de comparação do público brasileiro acostumado a ser usado como massa de manobra sem nunca ter tido acesso a uma mídia plural. A distorção sistemática da realidade nos últimos anos superou qualquer coisa que tenhamos testemunhado antes. A possibilidade de se perceber que as próprias empresas de comunicação fazem parte do jogo da elite do atraso na manutenção dos privilégios de uma meia dúzia em desfavor da população como um todo se torna, hoje, mais que nunca, um risco real.

Repare o leitor que jamais se reflete acerca de um sistema político construído para ser corrupto, ou seja, construído para ser comprado pela elite do atraso para manter seus privilégios econômicos. O ataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidos específicos. Isso acontece mesmo que esse tipo de manobra manipulativa, como vemos agora em meados de 2017, não tenha como se manter no decorrer do tempo, agora que o PSDB, o partido da elite financeira, está no centro dos escândalos. Mas entre 2013 e 2016 apenas o PT foi criminalizado e viu sua representação ser dizimada pelos vazamentos seletivos comandados pela mídia e por seus aliados no aparelho do Estado.

O crescente apoio popular à Ditadura, assim como as formas não democráticas também de sociabilidade e de ódio aberto que se instauraram no Brasil desde então, tem nessa fraude midiática gigantesca seu início. É que o ataque não se limitou à democracia. A Globo como que concentra o ódio secular e escravocrata ao povo e passa a expressar o pacto elitista e antipopular em ato. A perseguição seletiva e sem tréguas ao PT e aos movimentos sociais que o apoiam equivale a um ataque ao princípio mesmo da igualdade social como valor fundamental das democracias ocidentais. É que a luta contra a desigualdade do PT e de Lula foi tornada, pela propaganda televisiva, mero instrumento para a corrupção no Estado.

Como o PT foi o motor da ascensão social dos miseráveis e pobres em geral, atacá-lo como corrupto e como organização criminosa – sendo acompanhada pelos próprios agentes do Estado envolvidos na operação Lava Jato nesse ataque inescrupuloso – equivale a tornar suspeita a própria demanda por igualdade. É a igualdade que é tornada meio para um fim, no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade como valor, ou seja, como um fim em si. A Globo e a grande mídia – e sua aliada, a operação Lava Jato – não só contribuíram para o mais massivo ataque à democracia e ao direito de que se tem notícia, mas atacaram também, em uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta, a igualdade social como princípio, ao torná-la suspeita e mero instrumento para outros fins.

Depois, quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogio à tortura e à violência mais grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto, passam a representar ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais elementares, a Globo e a grande mídia agem como se não tivessem nenhuma responsabilidade. Esconde o fascismo que pratica diariamente e critica o resultado que produz sem assumir a menor responsabilidade pelo que faz. A Globo e a operação Lava Jato, no entanto, são os agentes principais dessa verdadeira regressão civilizacional que sacode o país deixado em frangalhos, econômica, política e moralmente, pela ação combinada desses agentes. Para sua audiência imbecilizada, no entanto, como a Globo critica Bolsonaro da boca para fora, sua ação a favor dos valores antidemocráticos, que é o que, na realidade, cria o campo de ação para os bolsonaros da vida, passa despercebida.

O resultado, que é o que importa na vida, é que a cruzada contra a corrupção dos sócios Globo e grande mídia e a Lava Jato, que seria uma piada ridícula e digna de riso e escracho se não fosse trágica, feriu de morte nosso jovem experimento democrático e ainda criminalizou e estigmatizou a bandeira da igualdade social. Nada mais vivificador do nosso ódio secular aos pobres do que isso. Existe algo mais fiel a nossa tradição escravocrata que isso? Tudo produzido agora simbolicamente, como se quisesse o bem dos necessitados, dourando a pílula por fora, que contém, no entanto, o mesmo conteúdo venenoso de sempre.

E não é apenas a participação da grande mídia nos esquemas da elite do atraso e do saque que não interessa aos paladinos da justiça entre nós, como vimos. O assalto à sociedade fraudada e enganada pode ser ainda muito pior. A grande mídia coloniza para fins de negócios, escusos ou não, toda a capacidade de reflexão de um povo, ao impossibilitar o próprio aprendizado democrático que exige opiniões alternativas e conflitantes, coisa que nunca ninguém viu acontecer em época alguma em nenhum de seus programas. Isso equivale a imbecilizar uma nação que certamente não nasceu imbecil, mas foi tornada imbecil para os fins comerciais de uma única família que representa e expressa o pior de nossa elite do saque e da rapina.

O que se perde aqui, como vimos em detalhe neste livro, é simplesmente o recurso mais valioso de uma sociedade, que é sua capacidade de aprender e de refletir com base em informações isentas. Distorcer sistematicamente a realidade social e mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso, fazer um mal incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira. É que o mal aqui produzido é literalmente impagável. O que se frustra aqui são os sonhos, os aprendizados coletivos e as esperanças de centenas de milhões. O que se impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um povo que é abortado por uma empresa que age como um partido político inescrupuloso. Isso apenas para que fique registrado a noção de mal maior em uma sociedade que tende a perder qualquer critério de aferição e de comparação de grandezas morais.

Mas o aspecto econômico do conluio entre a Globo e a Lava Jato também é estarrecedor. Uma empresa venal e politicamente radicalizada, agindo sob os auspícios de uma concessão pública, se junta com servidores públicos cegos por interesses corporativos, para promover a pior recessão econômica com milhões de desempregados frutos de sua ação direta. Pior ainda. Destroçando anos de trabalho em direção a uma inserção econômica internacional mais autônoma do país e menos dependente.

Não vamos ser ingênuos. O início da Lava Jato foi a perspectiva de se acabar com o sonho dos BRICS e dos brasileiros que aspiram a um país próspero para a maioria. Os americanos são os defensores de um status quo mundial onde o Brasil e a América Latina só entram como fornecedores de matéria-prima, sem acesso a progresso industrial e tecnologia de ponta. A tecnologia para a usina de Volta Redonda, por exemplo, antes sempre recusada pelos EUA, teve que ser conseguida como contrapartida da entrada do Brasil na Segunda Guerra.

O Brasil deveria e deve subsistir, para os americanos, como quintal empobrecido e mercado interno colonizado. O pré-sal e a Petrobras eram a carta na manga do país para uma inserção internacional menos dependente. Com um esquema de espionagem com acesso a todos os e-mails e a comunicação virtual de todo o mundo, como ficou provado nos escândalos envolvendo aliados como a Alemanha e a escuta da comunicação pessoal da primeira ministra Angela Merkel, só bastava a CIA municiar os inimigos do PT para dar início à operação desmonte.116 Afinal, se existe uma coisa que não muda na América Latina é que os EUA estão por trás de todos os golpes de Estado.

Esse foi o resultado real, independente do que juristas imaturos e açodados midiaticamente tenham na cabeça, do conluio Globo/ grande imprensa e Lava Jato. Aí se empobrece o Estado do Rio de Janeiro ao ponto do descalabro público e tem-se a pachorra de culpar os 3% de propina do Sérgio Cabral. Mas quem matou o Rio de Janeiro foi a ação da Globo à frente da imprensa golpista e da Lava Jato ao acabarem com a Petrobras, de quem o Rio de Janeiro é dependente, para vender o pré-sal aos saqueadores de dentro e de fora do país. Troca-se a corrupção real, que retira as chances de vida de centenas de milhões, para se culpar a “corrupção dos tolos”, a da propina dos políticos, que é obviamente nefasta, mas que equivale a dos aviõezinhos do tráfico de drogas.

Se compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, do qual ele não se separa a não ser por exterioridades, a política e os políticos são os aviõezinhos que sujam as mãos, se expõem à polícia seletiva e ficam com as sobras da expropriação da população. A boca de fumo são os oligopólios e os atravessadores financeiros, que compram a política, a justiça e a imprensa de tal modo a assaltar legalmente a população. Todas as reformas agora em discussão, apoiadas pela imprensa e pelo empresariado, visam o arrocho salarial e a opressão dos trabalhadores e aposentados, para aumentar ainda mais o lucro dessa meia dúzia.

Já a PEC 55, que congela os gastos com saúde e educação, garante o pagamento dos juros reais mais altos do planeta – um assalto ao bolso coletivo que só os feitos de imbecis não percebem – por um orçamento pago pelos pobres. Cinquenta e três por cento do orçamento é pago por pessoas que ganham até três salários mínimos, em um contexto onde os ricos ou não pagam imposto, ou o sonegam em paraísos fiscais. Esse é o assalto e a corrupção real, que a corrupção dos tolos – só dos políticos, como passa na Globo e na revista Veja e é percebida na Lava Jato – tem o papel de esconder.

Com o cidadão feito de completo imbecil, é fácil convencê-lo de que a Petrobras, como antro da corrupção dos tolos, só dos políticos, tem que ser vendida aos estrangeiros honestos e incorruptíveis que nossa inteligência vira-lata criou e nossa mídia repete em pílulas todos os dias. Com base na corrupção dos tolos, cria-se, na sociedade imbecilizada por uma mídia venal que distorce a realidade para vendê-la com maior lucro próprio, as precondições para a corrupção real, a venda do país e de suas riquezas a preço vil. Esse é o resultado real e palpável do conluio entre grande imprensa, com a Rede Globo à frente, e a Lava Jato: é melhor entregar de vez a Petrobras, a base de toda uma matriz econômica autônoma, aos estrangeiros honestos e bem-intencionados. O quanto se levou nessa tramoia só saberemos, como sempre, quando for muito tarde, tanto para os culpados quanto para as centenas de milhões de vidas empobrecidas e desempregadas.

O que se fez com a Odebrecht e a Petrobras foi algo que só uma sociedade completamente imbecilizada por uma mídia paga por saqueadores legalizados da riqueza de todos torna possível. Dos americanos pode-se dizer muita coisa, mas, nunca, que foram ou são imbecis que destroem a riqueza nacional e a capacidade produtiva nacional como a Globo e a Lava Jato ajudaram a fazer, passando-se por moralizadores da nação. Nos EUA, não só apenas pessoas são responsabilizadas, mas nunca empresas como um todo, como na Lava Jato. Para não provocar perdas na economia nacional, tudo é resolvido em secret settlements (acordos secretos), entre corporações e instâncias da administração.117 A Globo, em associação com a grande mídia a maior parte do tempo, e a Lava Jato fizeram o contrário disso e a nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram e legitimaram a corrupção real como nunca antes neste país das multidões de imbecilizados.

Como a condução do processo golpista é, em grande parte, externa, existe, inclusive, a bem fundada suspeita de alguns de nossos melhores jornalistas investigativos118 de que a Globo já esteja em mãos do serviço de espionagem americano que tudo sabe, posto que espiona, controla e tem acesso a toda informação trocada de modo digital no planeta. Tendo a Globo sido a emissora eleita para ser parceira da CBF e da FIFA durante décadas, resta ao cidadão, ainda não feito de completo imbecil, imaginar o que a CIA e a NSA têm na manga potencialmente contra a Globo, depois da devassa que realizaram nos negócios escusos da entidade maior do futebol mundial. Precisamente o futebol, o fundamento do lucro maior da Globo. Imagine a chantagem: apresentar a empresa que posa de defensora da honestidade nacional, uma verdadeira “virgem no cabaré”, em negócios que não ficam nada a dever aos Sérgio Cabral da vida?

Estaria o apoio da emissora à delação de Joesley Batista, que transferiria sua empresa para os EUA – como vimos nos EUA os órgãos de Estado protegem a economia nacional em vez de destruí-la como faz nosso Poder Judiciário –, dentro desse contexto? Talvez, mais uma vez, jamais o saibamos antes que seja muito tarde para achar os culpados. Parece que estamos nos especializando em perseguir por métodos jurídicos pouco ortodoxos os suspeitos da corrupção dos tolos, enquanto a corrupção real, do conluio entre mercado, mídia e corporações jurídico-policiais do Estado, pode passar impune.

O fundamento da confusão entre corrupção real e corrupção dos tolos é uma leitura enviesada e interessada da sociedade brasileira, a qual, no entanto, logrou confundir e enganar tanto a direita quanto a esquerda. É necessário aprender com a nossa catástrofe que é recorrente. As falsas ideias existem para fazer as pessoas de tolas, posto que apenas os feitos de tolos dão de bom grado e volitivamente o produto de seu esforço a quem os engana e oprime. Sem uma crítica das ideias, não existe prática social verdadeiramente nova. A ideia central que nos faz de tolos é a de que nossa história e a história de nossas mazelas têm sua raiz no patrimonialismo só do Estado. Foi por conta dela que a Rede Globo e a Lava Jato legitimaram seu ataque combinado à economia e à sociedade brasileira. É a pseudoexplicação patrimonialista que está no lugar da explicação pela escravidão e por sua herança de ódio e de humilhação dos mais frágeis.

É ela que legitima a corrupção dos tolos, que se regozija de ter recuperado a merreca de R$1 bilhão na operação Lava Jato, como fez Rodrigo Janot em artigo recente, isso ao preço de destruição de toda uma estrutura produtiva e milhões de empregos perdidos? Ou seja, à custa de nosso futuro. A corrupção dos tolos da farsa da Lava Jato e da Rede Globo e seus sócios da grande mídia comprada só existe para tornar invisível a corrupção real da qual são sócios. Exemplo da corrupção real é a recente operação do governo Temer, uma marionete da elite do atraso, que fez o país e a Receita Federal perderem R$ 25 bilhões em decisão suspeita em favor do banco Itaú. Só nessa operação, carregada de suspeição envolvendo denúncias de venda de votos,119 o país perdeu 25 vezes mais que o recuperado pela corrupção dos tolos da Lava Jato.

A cobertura da grande imprensa para esse tipo de transação suspeita é pífia por boas razões. Primeiro, os bancos são os maiores anunciantes, além de parceiros de negócios e negociatas. Depois, só em uma transação relativa aos direitos de transmissão da Copa de 2002, a Globo teria sonegado, segundo auditoria da Receita Federal, em intrincado esquema de ocultação em paraísos fiscais, R$ 358 milhões ao fisco.120 Outras grandes empresas de comunicação estariam na mesma situação segundo outras auditorias.121 Fica explicado por que esse tipo de corrupção jamais aparece na GloboNews.

A elite do atraso e seu braço midiático fazem parte, portanto, do mesmo esquema de depenar a população em seu benefício. É o que explica a constante necessidade de criar espantalhos para desviar a atenção do público do que lhe é surrupiado e explicar a penúria que seu saque provoca por outras causas. O espantalho perfeito é a corrupção dos tolos só da política, quando esses são meros lacaios de quem financia sua eleição para que protejam seus privilégios no mercado. Usa-se o desconhecimento da população, provocado pela distorção sistemática da realidade produzida pela própria mídia, para manipulá-la ao sabor da conjuntura que convém à elite do atraso.

Quem comanda o assalto à população é a fração financeira do capital e da propriedade por meio de uma dívida pública que só cresce e pelo mecanismo de transferência de renda via juros e controle do orçamento público. Como as outras frações dos proprietários, como a indústria, o comércio e o agronegócio, retiram o lucro grande também da especulação financeira, isso explica que o comando de todo o processo econômico e político seja exercido pela fração dos rentistas.

Que esse processo, por sua vez, representa um ataque direto à população como um todo por uma pequena elite do saque fica claro quando vemos que os grandes bancos lucram mais, precisamente, quando o país como um todo fica pior. Em meio à crise atual, por exemplo, em agosto de 2017, o Bradesco e o Itaú, os dois maiores bancos brasileiros, registraram lucros estratosféricos.122 Em 2015, quando o país afundava na maior crise de sua história, o Itaú teve seu maior lucro, somando R$ 23,35 bilhões ou 15,4% a mais em relação a 2014, ano em que já tinha batido o recorde anterior com mais de R$ 20 bilhões.123 O Bradesco veio logo atrás. Como isso é possível? Como tamanha transferência de renda é realizada sem que ninguém na grande mídia nos esclareça como ela acontece?

É importante, por conta disso, analisar a corrupção real e não apenas a dos tolos propagada pela grande imprensa. Certamente, nunca fomos tão feitos de tolos quanto na questão central da política nacional: a dívida pública. Todo o orçamento público e toda a arrecadação tributária, que é obtida onerando precisamente os mais pobres no Brasil segundo pesquisa do IPEA,124 foram capturados para o serviço dessa dívida de origem obscura. Primeiramente, para especialistas do porte de um Amir Khair, que estuda o fenômeno há décadas, as dificuldades fiscais do país não têm relação com as despesas conjuntas da população em educação, saúde e previdência, como a mídia informa, mas sim com os juros altos e a alta taxa Selic. A conclusão de suas pesquisas informa que 98% do déficit do setor público têm a ver com os juros mais altos do mundo e só 2% é déficit nominal.125 A balela de que as altas taxas de juro servem ao controle da inflação é desmentida pelo fato de que os componentes principais do IPCA têm impacto quase nulo na taxa de juros.

O Brasil, governado pelos lacaios do sistema financeiro, precarizou sua saúde, sua educação, sua capacidade de produção de tecnologia e de pesquisa, em suma, está comprometendo seu futuro e seu presente para engordar uma ínfima elite do dinheiro, esta sim, verdadeiramente, predadora e corrupta. Afinal, para seus mais dedicados estudiosos, como a coordenadora nacional da auditoria cidadã da dívida pública, a pesquisadora Maria Lúcia Fatorelli, a dívida pública é a verdadeira corrupção. O esquema criminoso foi tornado sagrado pela associação entre atravessadores financeiros, como os grandes bancos de investimento aqui e lá fora, e seus sócios menores no aparelho de Estado – as corporações jurídicas mais caras do mundo que recebem uma espécie de “propina de classe” da elite do dinheiro para defender seus interesses – e na mídia.

Para Fatorelli, que tem participado de auditorias de dívidas públicas em todo o mundo, o próprio início da dívida pública nos anos 1990, sob o governo do grande amigo dos bancos que foi Fernando Henrique Cardoso, é obscuro e existe a suspeita bem fundada de que dívidas já prescritas tenham sido o início da bola de neve que hoje nos tira o futuro e o presente. A taxa Selic de 45% ao ano, no governo FHC, turbinou uma dívida de origem suspeita até torná-la impagável como ela é hoje. Todo o orçamento público é usado para pagar juros apenas, sem que a dívida em si seja jamais diminuída. Uma dívida sem contrapartida, imoral, ilegal e que só engorda uma ínfima elite do dinheiro que comprou a política, a justiça e a mídia. Todos nós, que pagamos impostos, trabalhamos para esse esquema criminoso e inconstitucional que se torna invisível, porque fomos feitos de imbecis e olhamos para a corrupção dos tolos. Imbecis somos nós todos, ainda que em medida variável. O esquema se desdobra nos níveis estadual e municipal com a venda de ativos públicos e da própria arrecadação, muitas vezes sem contrapartida, diretamente para os atravessadores financeiros, como já está acontecendo nas grandes cidades brasileiras.126 É desse modo que o lucro desse pessoal aumenta enquanto a população fica cada vez mais pobre.

Isso tudo, caro leitor, sem contar os R$ 520 bilhões em paraísos financeiros, fruto da sonegação fiscal dos milionários, em um país em grave crise fiscal, depositados no exterior. Um dinheiro que resolveria a fabricada crise fiscal do Estado brasileiro, que estancaria a catástrofe do Estado do Rio de Janeiro – reduzido à miséria pela ação lesiva da Lava Jato e da grande imprensa para poder entregar a Petrobras aos estrangeiros honestos – segundo estudos do Tax Justice Network.127 E não esqueçamos que isso acontece em um contexto onde esses ricos já pagam muito pouco ou nada de imposto, se comparamos com os países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).128

Finalmente, caro leitor, não nos esqueçamos de que temos a maior taxa de juros do planeta, embutida em tudo o que compramos – quer compremos a crédito ou não. Créditos esses que somam 15% do PIB ou R$ 1 trilhão todos os anos, segundo dados do próprio Banco Central.129 Se separarmos a diferença entre os juros extorsivos, praticados aqui, com a média de juros internacionais, quantas centenas de bilhões pagamos todos os anos, sem qualquer motivo aparente senão a ganância do saque sobre uma população indefesa, para nossos rentistas? Certamente uma grandeza em torno de oitocentas ou novecentas vezes superior ao montante orgulhosamente recuperado pelos paladinos da justiça da Lava Jato, a farsa principal da corrupção dos tolos. Não nos esqueçamos de que esse saque via juros acontece todos os anos. Essa é a real “boca de fumo” do nosso capitalismo, que só se separa do narcotráfico por exterioridades. A fonte real do assalto à população, que se torna invisível posto que toda a atenção midiática é voltada aos aviõezinhos da política que ficam com as sobras. Os 3% dos Sérgio Cabral da vida permitem tornar invisível a corrupção e o assalto real.

Caro leitor, você conhece alguma sociedade que tenha sido feita de imbecil a esse ponto pela nossa corrupção dos tolos? Eu não conheço. O início para a recuperação de nossa inteligência, roubada por um mecanismo de distorção sistemática da realidade pela grande mídia, tem que ser pela admissão de que fomos todos, você e eu, feitos de imbecis. Não existe outro caminho. Não se aprende nada na vida sem a humildade e a coragem de admitir que não se sabia melhor e que se deixou enganar. Não existe outro caminho para refazer a vida.

O espantalho da criminalização da política só serve para que a economia dispense a mediação da política e ponha seus lacaios sem voto e que se vangloriam de sua impopularidade vendida como cartão de visitas para a elite do atraso, como garantia da obediência cega à elite na rapina da população como um todo. Já o espantalho da criminalização da esquerda e do princípio da igualdade social só serve para que a justa raiva e o ressentimento da população, que sofre sem entender os reais motivos do sofrimento, percam sua expressão política e racional possível. Foi assim que a mídia irresponsável possibilitou e pavimentou o caminho para a violência fascista do ódio cego dos bolsonaros da vida. O ódio fomentado todos os dias ao PT e a Lula produziu, inevitavelmente, Bolsonaro e sua violência em estado puro, agressividade burra e covarde. Agora, uma população pobre e à mercê de demagogos religiosos está minando as poucas bases civilizadas que ainda restam à sociedade brasileira. Essa dívida tem que ser cobrada da mídia que cometeu esse crime.

Em relação aos setores conservadores da classe média, também, sua arregimentação pela elite a partir da cantilena do populismo, que é a versão acadêmica do ódio aos pobres, apenas a torna agora muito mais explorada pela elite que defende, em troca da pífia manutenção da distância social em relação aos pobres. Que a classe média, assim como a mídia e as corporações de Estado que se envolveram no golpe, nunca deram a mínima para a corrupção fica empiricamente comprovado, agora, por meio de sua passividade total, enquanto a corrupção mostra sua face mais danosa e mais assassina. Onde estão os “camisas amarelas”? Onde estão as panelas? A conta do ódio aos pobres foi o empobrecimento de todos.

Será que valeu a pena tudo isso para pagar salários de fome às empregadas domésticas e não ver mais pobres nos aeroportos, nos shopping centers e, principalmente, nas universidades? Afinal, a educação, a saúde e a previdência, agora sucateadas pelo Estado capturado, abrem caminho para que essas áreas se tornem o novo negócio dos bancos, que controlam agora crescentemente essas áreas também. Aliás, já ficou tudo mais caro, não é mesmo, leitor? Quanto seu plano de saúde privado já aumentou este ano? Alguns chegaram a dobrar. Certamente, vai ainda ficar muito pior. Será que vale a pena tudo isso para manter os escravos no seu lugar? O amor de grande parte da classe média pela elite é amor de mulher de malandro.

Mas o instante de crise que nós vivemos torna, também, isso tudo claro como a luz do Sol. Essa é a grande oportunidade de mudança no meio das trevas em que vivemos hoje. Só não vê a verdade quem não quer ou quem perdeu de vez a capacidade de produzir sinapses no cérebro, o órgão mais adoentado e fragilizado pelo veneno diário de uma mídia que ganha dinheiro como fábrica de mentiras. A esperança de hoje tem que ser uma adaptação contemporânea do velho chamado aos explorados: os feitos de imbecis de todo o país: uni-vos! Recuperemos nossa inteligência, voltemos a praticar a reflexão autônoma que é a chave de tudo que a raça humana produziu de bonito e de distinto na vida da espécie. Afinal, tudo que foi feito por gente também pode ser refeito por gente.




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