Jair Bolsonaro, Abin, PF e atos golpistas (Foto: ABr | Reuters | Polícia Federal)
"A sociedade já sabe há tempos o que não quer de um serviço secreto. Já o que fazer está diante dos nossos olhos", escreve o colunista Roberto Numeriano
Roberto Numeriano
As notícias em torno da chamada “Abin paralela”, capitaneada pelo seu antigo diretor-geral (hoje deputado federal Alexandre Ramagem), evidenciam o lado criminal de uma metástase institucional que o serviço secreto brasileiro sofre há tempos. A “Abin paralela” é, a rigor, apenas um sintoma de sua degradação orgânica, efeito de uma Politização/Policialização cujas origens podem ser verificadas como desdobramento da antiga Militarização de um serviço dominado por quadros egressos do SNI.
Essa face sombria, entretanto, não esgota os termos daquela decadência e esgotamento de um modelo de Inteligência que não sobreviveu ao seu caráter híbrido civil-militar, imanente à própria origem da Abin: um monstro, um Leviatã estatal com baixa eficácia e alta vulnerabilidade político-institucional. Uma análise minuciosa do quadro de sua degradação vai revelar a existência de três “Abins paralelas”, na verdade.
Embora seja importante como objeto de estudo (pois contém uma evidente dimensão do uso da agência como uma “Polícia Política”), a face paralela criminal não será abordada, aqui. Vamos, pois, discorrer sobre as outras duas “Abins”, a saber: a) a Abin em sua face Policializada; e a b) a Abin em sua face radicalizada, em termos político-ideológicos.
Ambas as dimensões são efeito de um processo o qual chamamos de Politização, um fenômeno cuja origem está na omissão das várias gestões da elite do Poder Executivo (e do Congresso Nacional, em alguma medida) quanto a criar/aplicar uma agenda estratégica de Civilianização e Responsividade do órgão, além de atualizar a Doutrina de Inteligência num eixo político-institucional fundamentado no Conhecimento Crítico da realidade e sob um paradigma Preditivo.
A Policialização da Abin, como desdobramento da antiga Militarização, significa, para além do controle direto/indireto de uma visão e perspectivas policiais sobre a atividade de Inteligência, sua transformação em uma “reserva de domínio estratégico” da Polícia Federal (PF). Nesse sentido, a Abin institui-se como um órgão ancilar às políticas de Segurança editadas e operadas pela PF, relativamente às agendas da Política Nacional de Inteligência (PNI). Não por acaso, uma recente proposta em tramitação no Congresso dispõe que cabe exclusivamente a essa corporação policial as ações de prevenção ao terrorismo. Ora, pelo que é possível deduzir dessa canhestra proposta legal, à Abin será vetado acompanhar, analisar e produzir relatórios sobre alvos potencialmente terroristas.
Outro sinal trata da decisão do Executivo em centralizar, em Brasília, as informações de Inteligência obtidas pelas seções operacionais das Polícias Estaduais. Só essa decisão, em si mesma, demonstra como o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que nunca existiu de facto, também vai deixar de existir de jure. Mas há por aí quem há tempos acredite e escreva sobre essa mística... Esses movimentos esvaziam a Abin e suas funções já por dentro do aparelho de Estado, em nível corporativo.
Numa perspectiva mais ampla, o serviço secreto se deslegitima institucionalmente e enfraquece ainda mais sua baixa confiabilidade, em termos sistêmicos. De fato, não há como se fazer ouvir e influenciar as agendas da PNI se, sob controle direto/indireto da Polícia Federal sobre a atividade, a Abin não tem qualquer poder imperativo. Já a Abin em sua face radicalizada, em termos político-ideológicos, corresponde a um processo cuja origem está na Politização, fenômeno, por sua vez, decorrente da omissão das sucessivas gestões presidenciais sobre a necessidade de criar uma agência secreta calcada numa Inteligência de perfil estratégico e republicana. Isso implicaria enfrentar na atividade de Inteligência desafios em face a) da assunção e promoção de aventureiros, carreiristas e alienígenas; b) da sua radicalização político-partidária, à “esquerda” e direita; c) da errática condução de seus “temas de interesse”; d) do seu descolamento e deslocamento na apreciação da realidade social, política e econômica em um mundo em profunda transformação numa perspectiva multipolar; e) de sua baixa eficácia no provimento de informações estratégicas; e f) do crescente insulamento burocrático do serviço secreto na estrutura estatal.
A Politização, em essência, surge e se sustenta nesse descaso das elites políticas/governamentais. São dois os efeitos imediatos mais perniciosos observados na infiltração político-ideológica que contamina direta e indiretamente a carreira, quais sejam: a) nesse processo os quadros da Abin (oficiais e agentes de Inteligência, profissionais em geral dedicados e comprometidos com a atividade), são expostos e ficam vulneráveis a desvios verificados muitas vezes nos termos de uma ideologização da atividade e da carreira em si; e b) o serviço secreto não se constitui nem se instituiu nos marcos de uma identidade civil republicana, dado que as mentalidades, práticas e visões de mundo de caráter exógeno/exótico à atividade de Inteligência, seja militar ou policial, degeneram a carreira e suas agendas.
A soma dessas três “Abins paralelas” explica a situação terminal da agência brasileira. Não há saídas cosméticas. O Leviatã hobbesiano com o qual se depara a sociedade e a República precisa ser abatido. Quase um sinônimo do vocábulo “crise”, a Abin deve ser refundada. É claro que há o que aproveitar e inspirar em alguns dos seus bons trabalhos. Isso é indiscutível, numa análise isenta. Sua refundação requer visão e coragem políticas. A sociedade já sabe há tempos o que não quer de um serviço secreto. Já o que fazer está diante dos nossos olhos.
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