sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Elon Musk, neofilibusteiro

Imagem: Ahmet Olgun

Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JÚNIOR*

O cangaço não é a única modalidade de espoliação que voltou à moda

Nos últimos anos, com o aumento da importância econômica relativa das cidades de médio porte no Brasil, muito tem se falado sobre o fenômeno do Novo Cangaço, tipo de assalto no qual uma quadrilha, como faziam os cangaceiros de antanho, assume o controle de pequenas e médias cidades com o intuito de saqueá-las. O cangaço, no entanto, não é a única modalidade de espoliação que voltou à moda. Acontecimentos recentes apontam também para um renascimento muito mais grave da filibustaria, e o nome do neofilibusteiro-mor é Elon Musk.

O termo “filibusteiro” e seu cognato inglês, filibuster, tem suas origens no espanhol filibustero, que vem, por sua vez, do holandês vrijbuiter, com o significado de pirata, corsário ou, simplesmente, ladrão.[I] Apesar disso, é possível afirmar, sob grave risco de incorrer em lisonja desmerecida a figuras do naipe de Elon Mosca (sic), que o protótipo histórico dos filibusteiros do século XIX não foram os piratas e corsários ingleses do séculos XVI e XVII, mas sim figuras como Júlio César e Hernán Cortés, conquistadores cujas respectivas ações na Gália e no México foram recebidas em suas épocas de forma ambivalente pelo Senado de Roma, no caso de César, e pela Coroa Espanhola, então encabeçada pela Casa D’Áustria, na figura do sacro-imperador Carlos V, no caso de Cortés.

De forma semelhante a César e Cortés, e diferente dos corsários e piratas ingleses do início da Idade Moderna (para os quais o termo espanhol filibustero foi inicialmente concebido[II]), os filibusteiros do século XX e seus descendentes do século XXI possuem ambições muito maiores, e relações muito mais ambivalentes com os poderes oficiais do Estado. É importante ressaltar que conquista e pilhagem por si sós não configuram um filibusteiro, de modo que chefes de estado como Marco Aurélio e Filipe II jamais poderiam ser classificados como tal, nem mesmo com a liberdade do anacronismo.

Stricto sensu, o exemplo mais infame foi o americano William Walker, sujeito de corpo esquálido e rosto pré-pubescente que fez várias tentativas de estabelecer, com o auxílio de milícias privadas, uma colônia particular na região da América Central. Assim, é notável a precisão do nome do inquérito das milícias digitais, no qual Elon Musk passou a ser investigado, visto que os filibusteiros históricos nada mais eram do que milicianos.

Muitos são aqueles que criticam a romantização do passado, mas poucos deles pensam que podem estar errados, e que a história humana, de fato, perde gravitas conforme avança, ficando cada vez mais ridícula e escrachada. Cortés não era César, mas ele e seus semelhantes, como Pizarro e Alvarado, não deixam de ser figuras um tanto mais respeitáveis, por assim dizer, do que William Walker.

O que temos hoje em dia é uma espécie de café coado de quarta categoria. Nossos neofilibusteiros não têm carisma. São corpocratas sem rosto preocupados em assegurar o fluxo contínuo das commodities, engravatados pretensamente magnânimos que movem ações caríssimas financiadas por fundos de investimento obscuros, ou pior, bilionários espiritualmente desempregados com tempo e dinheiro demais nas mãos, que passam seus dias copiando e colando frases prontas sob as postagens de usuários em suas próprias redes sociais (se um dia a automação e o desemprego estrutural chegarem a eles, nada de valor será perdido).

Com cinco décadas de vida nas costas, compartilham memes que sequer compreendem, na vã tentativa de apelar para as sensibilidades estéticas das gerações mais novas. Pelo menos o figurino de Hernán Cortés era estiloso.

Com o passar do tempo, essas figuras também se tornaram cada vez mais apologéticas. Ao conquistar a Gália antes de tornar-se ditador de Roma, Júlio César tratou o empreendimento, de certa forma, como um fim em si mesmo (afinal, a conquista era o telos aristotélico romano), mas também como forma de sanar seus próprios problemas financeiros.

Não havia grande preocupação em forjar um discurso legitimador que escapasse de uma realpolitik quanto à segurança das fronteiras romanas. Em sua conquista do México, Hernán Cortés agia, supostamente, em nome da Coroa Espanhola, mas é amplamente sabido que suas ambições privadas de fama e fortuna colocaram-no várias vezes em oposição às ordens régias (ao contrário do que dizem os hispanistas de hoje, embriagados que estão por um imaginário neoconservador moralizante e completamente anacrônico, a preocupação humanitária com os sacrifícios humanos era no máximo um mero detalhe).

William Walker legitimava seus empreendimentos com os devaneios febris de um Destino Manifesto, muito em voga na época. Hoje, Elon Musk esperneia contra decisões judiciais brasileiras[III] fazendo uso da retórica de defesa da “liberdade de expressão”, apresentando-se como amigo e libertador das massas brasileiras que julga serem oprimidas pela folclórica “ditadura do judiciário”.

O fato é que vivemos em tempos muito apologéticos. Toda e qualquer ação imperialista hoje em dia exige aquilo que os israelenses chamam de hasbará,[IV] “explicação”, ou seja, é preciso fazer besteira primeiro e explicar-se depois, não necessariamente nessa ordem. Isso ocorre porque os poderes constituídos do atual status quo se enxergam sempre como bons moços. Seus eventuais conflitos têm sempre um teor paternalista, pedagógico e/ou humanitário.[V]

Todos sabem, por exemplo, que a invasão dos EUA ao Afeganistão foi feita com o único e exclusivo intuito de assegurar os direitos das pobres meninas e mulheres afegãs. Se por vezes essas meninas e mulheres são atingidas pelas balas, pelas bombas, ou mesmo pelos avanços sexuais indesejados dessas forças de intervenção militar beneficente, é apenas um fruto infeliz do acaso.[VI] Quaisquer inimizades schmittianas[VII] que o Ocidente venha a ter são prontamente disfarçadas pelo véu popperiano do “Paradoxo da Intolerância”: não se pode tolerar o intolerante. Mas é claro, o intolerante é sempre o outro.

Apesar de suas bravatas,[VIII] nem mesmo figuras erráticas como Elon Musk fogem desse padrão, devendo sempre deixar encobertos quaisquer interesses particulares escusos. Por isso mesmo, em seu discurso, a desobediência às ordens do judiciário brasileiro não é movida por desdém e ganância, mas por coragem e compaixão. Neofilibusteiros adoram apresentar-se como salvadores de pátrias que sequer são suas. Assim, VMusk não declara o povo brasileiro como seu inimigo, mas o gesto não deve ser recíproco. Contra certos inimigos, o caminho para a vitória não passa pela conciliação.

O final de William Walker foi bastante trágico. Ou não. Depende do ponto de vista. Após uma última tentativa fracassada de conquistar a América Central, William Walker foi capturado e fuzilado pela marinha britânica em Honduras. Anos antes, havia sido derrotado pelas forças do general hondurenho Florencio Xatruch, jurista de formação, um sujeito de cabelo e barba cheios e vistosos.

Elon Musk deveria aprender com o exemplo de William Walker. Assim como Deleuze imagina “um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo modo que uma Gioconda bigoduda”,[IX] não é difícil imaginar um novo Xatruch, brasileiro, literalmente sem barba e cabelo, pelo qual Elon Musk vem sendo derrotado.[X]

*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel em Direito pela USP.

Notas

[I] Tal é a etimologia oferecida pelo Oxford English Dictionary: https://www.oed.com/dictionary/filibuster_n

[II] A relação original do termo filibustero com os corsários ingleses, em especial o célebre Francis Drake, é explorada em: Alan Axelrod (2013). Mercenaries: A Guide to Private Armies and Private Military Companies. Sage. p. 206..

[III] Apesar desse atual chilique, Musk já cumpriu ordens de remoção de conteúdo do X em outros países, tais como Índia e Turquia, sem essas mesmas acusações de censura que levanta contra o judiciário brasileiro: https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/musk-cumpriu-centenas-de-ordens-de-remo%C3%A7%C3%A3o-de-conte%C3%BAdo-do-x-fora-do-brasil-sem-acusar-censura/ar-BB1ltgnK; https://edition.cnn.com/2023/05/29/tech/elon-musk-twitter-government-takedown/index.html; https://english.elpais.com/international/2023-05-24/under-elon-musk-twitter-has-approved-83-of-censorship-requests-by-authoritarian-governments.html. Isso sem falar no gritante viés sionista de Elon Musk (a afirmação de que Alexandre de Moraes segura Lula por uma coleira, pelo visto, é um claro caso de projeção, visto que Musk parece estar na coleira de Netanyahu), um estranho contraste com o antissemitismo que corre solto em sua plataforma: https://www.timesofisrael.com/elon-musk-in-chat-with-right-leaning-jews-says-antisemitism-isnt-a-problem-on-x/; https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2023/11/anti-semitism-netanyahu-zionism-elon-musk/676180/; https://www.presstv.ir/Detail/2024/02/10/719833/how-elon-musk-caved-in-zionist-lobby-allowed-palestine-censorship-x; https://www.presstv.ir/Detail/2023/12/19/716650/Elon-Musk-and-Israel-imposed-Palestine-censorship-on-X.

[IV] O conceito propagandístico de hasbará é elaborado em: Kouts, Gideon (2016). “From Sokolow to ‘Explaining Israel’: The Zionist “Hasbara” First “Campaign Strategy Paper” and Its Applications”. Revue Européenne des Études Hébraïques (18): 103–146.

[V] O fenômeno do teor “pedagógico” dos conflitos ocidentais foi explorado por Bruno Latour em: LATOUR, Bruno. War of the Worlds: What about Peace?, p. 26. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2002.

[VI] Note-se aqui a evidente ironia dessas afirmações.

[VII] Entenda-se por inimigo schmittiano aquele com o qual não há possibilidade de conciliação, isto é, um inimigo inveterado e absoluto, cuja derrota pressupõe sua aniquilação. Popperianos negariam-no com veemência, mas sua paradoxal “intolerância ao intolerante” nada mais é do que uma declaração velada de guerra schmittiana. Quanto à noção de inimigo em Schmitt, ver: SCHMITT, C. O conceito do político. Trad. de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992.

[VIII] Para os que têm memória curta, convém rememorar as insinuações deselegantes feitas por Musk na ocasião do golpe que derrubou Evo Morales na Bolívia em 2019: https://exame.com/negocios/daremos-golpe-onde-quisermos-diz-musk-apos-insinuacoes-sobre-a-bolivia/.

[IX] Esse trecho deleuziano, bastante curioso e caricato, incluído aqui para fins meramente poéticos e ilustrativos, pode ser encontrado em: DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. de Luiz Orlandi e Roberto Machado. p. 10. São Paulo: Paz & Terra, 2018.



Veja neste link todos artigos de



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12