quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Para além do ecossocialismo


Guillaume Suing [*]

A reconexão com a noção de progresso social e científico, que está no centro de todos os atuais ataques ideológicos burgueses pós-modernos, pressupõe um estudo sério da forma mais atual, e mesmo última, do “marxismo ocidental”:  o ecossocialismo. À distância, este ponto de vista, que equipara o ecossocialismo ao “marxismo ocidental”, pode parecer arrogante, uma vez que o ecossocialismo se apresenta como uma forma “radical” de anticapitalismo que incorpora um regresso bastante franco à vertente anti-imperialista da história do marxismo, à maneira “neoleninista”, diriam alguns (Andréas Malm, Frédéric Lordon), e portanto, à primeira vista, anti-ocidental. Mas isso não tem em conta o facto de que os ecossocialistas fundadores, que regressam à letra de Marx e a quem chamo, portanto, arqueomarxistas, são todos pensadores da esfera imperialista (Bellamy Foster e Bookchin são norte-americanos, Malm é sueco e Kohei Saito é japonês). De certa forma, como francês, não sou uma exceção; o meu país também está no topo da lista das actuais potências imperialistas. A objeção é justa, mas deveria ser possível responder, sem excessivo determinismo, que como intelectual marxista se pode trair a sua “esfera imperialista” tal como se trai a sua classe pequeno-burguesa, como Gramsci famosamente sugeriu. Presto aqui homenagem ao filósofo marxista Domenico Losurdo, ele próprio um ocidental, embora um grande crítico daquilo que ele próprio definiu como “marxismo ocidental” versus “marxismo oriental”:   ele partilhava mais do que uma pátria comum com o grande Gramsci. Voltarei à questão de que uma crítica séria do ecossocialismo não pode prescindir de uma tal distinção na história do marxismo.

A ideia aqui não é iniciar uma crítica detalhada do trabalho dos exegetas ocidentais de Marx que lançaram as bases do ecossocialismo. A sua tese geral é bem conhecida:  rever a obra de Marx à luz dos problemas ecológicos actuais, de modo a restaurar o seu estatuto de “profeta” anti-capitalista e a incluí-lo no movimento da ecologia política. Uma ecologia política que não é, certamente, exclusivamente ocidental, mas que, no entanto, tem origem e se centra neste domínio. Estamos a lidar com aquilo a que no século XX se chamava classicamente autores “revisionistas”, que “reviam” a teoria marxista a partir de uma perspetiva truncada. Os revisionistas históricos Kautsky e Bernstein distorceram Marx para fundamentar as suas teorias social-democratas ultra-imperialistas.

Os nossos ecossocialistas, pelo contrário, seguem o rasto da Escola de Frankfurt, igualmente ocidental, revendo Marx à luz das questões ecológicas, com um toque tipicamente anti-progressista inspirado no filósofo Walter Benjamin. Em ambos os casos, o anti-sovietismo dos autores é uma base comum indiscutível, um ponto de partida mesmo:  o campo socialista era “produtivista”, ou mesmo “capitalista de Estado” e “autoritário”, até ao fim. Não deve ser um modelo, mas um contra-modelo.

E o ecossocialismo não é apenas uma corrente de pensamento. Daí a importância de uma crítica séria e popularizável, que ainda está por fazer. Trata-se de uma ideologia que reúne muitos actores políticos da esquerda anti-liberal ocidental (trotskistas, Insoumis, Syriza, Die Linke, etc.). No entanto, enquanto corrente de pensamento, procura, sem o conseguir, casar um ponto de vista estritamente “marxista ocidental” (anti-soviético e anti-ciência) com questões ecológicas que, por seu lado, se colocam num campo explicitamente científico. Dois escolhos conduziram-no a um beco sem saída:  o seu anti-sovietismo ocidentalocêntrico e o seu pós-modernismo anti-ciência. Estas duas armadilhas estão, evidentemente, dialeticamente ligadas pela tendência da ideologia burguesa para dominar o “marxismo ocidental” histórico.

A primeira armadilha é o seu carácter anti-científico. É preciso dizer que isto é muito menos óbvio do que nos dias do freudo-marxismo ou do pós-estruturalismo althusseriano. A denúncia de futuras catástrofes ecológicas requer, de facto, um pouco de ontologia. O que não deixa de ser problemático para os nossos arqueomarxistas. De resto, nenhum deles é um verdadeiro cientista. Saito e Bookchin são filósofos, Foster e Löwy são sociólogos [1]. No entanto, é o interesse pronunciado de Marx pelas ciências, fonte de muitas das citações desenterradas, que aparentemente legitima o ecossocialismo como uma nova etapa do marxismo.

Mais uma vez, o interesse de Marx pelas ciências é obviamente central, mas tem sido tão frequentemente ridicularizado ou, pelo menos, desvalorizado pelos marxistas ocidentais que é surpreendente ver um tal renascimento do interesse. Felizmente, a hostilidade a Engels e à sua Dialética da Natureza mantém-se intacta. O ecossocialismo deve afastar-se de qualquer tentativa de “materialismo dialético”, esforçando-se por pensar a ligação sociedade-natureza com neologismos inúteis (“dupla determinação sociedade-natureza” como “unidade-diferenciada” ou “unidade-separada” [2]), sem recorrer simplesmente à “luta e unidade dos opostos” do reles Diamat soviético [3]. Há, evidentemente, uma tentação ontológica no revisionismo ecossocialista, mas ela é contrabalançada por uma rejeição da tecnologia que soa como uma velha hostilidade à ciência em geral.

É o termo Stoffwechsel de Marx, comummente traduzido por metabolismo em francês e inglês, que sustenta a ideia abusiva de que Marx se converteu ao “decrescimento” numa fase tardia da sua vida. Em biologia, o termo metabolismo é por vezes associado à ideia de uma circulação cíclica, estável e auto-regulada, nomeadamente em fisiologia. Mas não é esse o caso da biologia molecular, por exemplo, onde o metabolismo designa simplesmente um fluxo bilateral de construção (anabolismo) e de destruição (catabolismo) moleculares, sem ciclicidade obrigatória. Marx utiliza o termo metabolismo no sentido de circulação material, com a ideia de que, em particular na agricultura, existe uma reciclagem necessária dos sais minerais que fertilizam o solo, que a agricultura intensiva quebra. Liebig, um químico contemporâneo de Marx, tinha deixado isso claro, e Marx estava justamente convencido disso:  os recursos da natureza são limitados e a fertilidade do solo não é infinita.

Dito isto, a escolha de um léxico fisiológico, bastante estranho ao evolucionismo (e anterior a ele), não é insignificante por parte dos exegetas de Marx. Referir-se a um “metabolismo” que é comummente auto-regulado, na fisiologia ou, mais amplamente, nos ecossistemas (auto-regulações que são bastante reais, a propósito, e perfeitamente dialécticas no sentido marxista do termo), é preferir abordagens cíclicas e estáveis, “harmoniosas”, às abordagens mais evolutivas e dinâmicas que constituem o paradigma da biologia como um todo. O ciclo da água, o ciclo do carbono, o ciclo dos sais minerais – todos estes ciclos parecem estáveis na nossa escala de tempo, mas nunca foram estáveis na história do planeta, ou mesmo no decurso da história humana. A ênfase dada ao termo metabolismo em Marx para sugerir que ele baseou o seu materialismo histórico nas leis de uma natureza imutável e auto-reguladora é completamente contrária ao paradigma darwinista e ao próprio pensamento de Marx e Engels.

Afinal, o termo Stoffwechsel é composto por stoff (material) e wechsel (mudança):  não esconde em Marx qualquer indício de fixismo ou ciclicidade da natureza, como fantasiam os ecologistas. Marx utilizou-a para identificar tanto o que circula entre as pessoas (mercadorias) como o que circula entre as pessoas e a natureza (incluindo os recursos naturais). O capitalismo perturba obviamente o equilíbrio, como Liebig e Marx identificaram há dois séculos, porque se baseia na anarquia da produção, o que significa que é fundamentalmente impossível antecipar perturbações a longo prazo, enquanto o socialismo é suscetível de reequilibrar as trocas destrutivas. Mas, para além destas antecipações, a evolução das sociedades permanece paralela a mudanças ambientais incontornáveis, pelas quais nem sempre somos responsáveis, mas que teremos sempre de (tentar) ultrapassar. E esta forma de antecipação, ligada nomeadamente à manutenção dinâmica da biodiversidade e não apenas do clima, não é ajudada, para dizer o mínimo, pela fantasia de uma natureza feita apenas de autorregulação.

Apesar da sua aparente estabilidade, os organismos vivos, e mesmo a humanidade, sempre tiveram de superar perturbações destrutivas radicais e incontornáveis. Esta capacidade de adaptação, ou mesmo de emancipação permanente, é gravemente entravada pelo capitalismo, que limita a investigação científica em função dos seus próprios interesses a curto prazo. A emancipação permanente da humanidade face às convulsões naturais, capacidade que inclui a resolução dos desequilíbrios antropogénicos mais graves, não se limita certamente a estas e pressupõe um grande impulso à investigação científica e às tecnociências. Evidentemente, os ecologistas mal orientados, mesmo que sejam ecossocialistas, recusam-se a fazê-lo por definição.

Para Saito, que se emancipa de Marx no seu segundo ensaio, o capitalismo em crise efectua uma tripla transferência metabólica para sobreviver. As duas primeiras transferências não são novas:  uma é espacial (as consequências ecológicas nefastas da sobreprodução são transferidas para fora do Ocidente imperialista, para o Sul global), a outra é temporal (são também adiadas para as gerações futuras, de acordo com o adágio marxiano “Après moi le déluge” [4]). Mas a terceira é sem dúvida a principal, chamada transferência tecnológica:  esta revela um objetivo anti-tecnossolucionista, que pode ser legítimo até certo ponto, mas que conduz o autor à perspetiva de um “comunismo decrescente” hostil a toda a tecnociência, e nesta fase já não é o Ocidente que é visado, mas todas as potências concorrentes do Sul, a começar pela China. Chegamos assim ao cerne do revisionismo ecossocialista, à segunda armadilha.

Segunda armadilha:  o anti-sovietismo e o ocidentalismo pós-colonial. À primeira vista, não é fácil explicar que, sob o pretexto do anticolonialismo e do anticapitalismo, a denúncia de todo o crescimento fora do Ocidente como “capitalismo autoritário” (ou mesmo “capitalismo imperialista”!), incluindo a China e mesmo Cuba, deriva de uma mentalidade tipicamente ocidentalocêntrica. Para o compreender, é preciso, com Losurdo, olhar para os primórdios da história do movimento:  com Marx e Engels enterrados, os marxistas europeus tinham grande dificuldade em aceitar, em 1917, que a revolução não havia nascido no berço europeu da “civilização”.

Recorde-se que, para muitos ocidentais, marxistas ou não, a União Soviética era sobretudo menos europeia do que asiática (o que não seria errado, se isso não fosse um defeito para eles):  o sulista georgiano Estaline e mesmo Lenine, neto de um calmuque, confirmaram esta suspeita, antes de Mao, Ho Chi Minh e Kim Il Sung, quando se tratava de orientalizar a revolução socialista. E é, sem dúvida, esta forma de chauvinismo branco [5], de origem burguesa, mas que se insinua nos intelectuais de esquerda da época, que estará na base da teoria do “totalitarismo” soviético ou chinês, e talvez, por contraste, da pretensão da Alemanha, que produziu Marx e Engels, ou da França, que produziu Robespierre e a Comuna de Paris, de reivindicar a autoria do socialismo.

“A condenação de um 'marxismo oriental' adulterado em favor de um 'marxismo ocidental' autêntico teve [aqui] um vasto eco [...]”, diz Losurdo. “Esta avaliação tornou-se, hoje, um lugar-comum na 'esquerda'. Foi incorporada, explícita ou implicitamente, pelos autores que formam a nova geração do 'marxismo ocidental' após o fim do 'fim da história', promotores ou participantes daquele que pretende ver-se como o 'renascimento de Marx'” (D. Losurdo, ‘Marxisme occidental’ et ‘marxisme oriental’, une scission malheureuse in La Chine et le monde, développement et socialisme, Séminaire international -ouvrage collectif-, Le temps des cerises, 2013). Cita em seguida um velho marxista italiano, tal como nós teríamos citado os seus contemporâneos franceses Jules Guesde ou Léon Blum:  “O líder reformista Filippo Turati censura os partidários italianos do bolchevismo por esquecerem ‘a nossa grande superioridade em termos de evolução civil do ponto de vista histórico’ e por, consequentemente, se abandonarem a uma paixão pelo ‘universo oriental, por oposição ao mundo ocidental e europeu’. Não consideram que os sovietes russos são para os parlamentos europeus o que a “horda” bárbara é para a “cidade”. [...] Kautsky tinha sido ainda mais severo [...]. O que se passa na Rússia não tem nada a ver com o socialismo ou o marxismo. [...] “Na Rússia, estamos a fazer a última revolução burguesa e não a primeira revolução socialista”. Aos olhos de Turati, como aos de Kautsky, a Rússia soviética de 1919 não passava, em última análise, de um “capitalismo autoritário” sem democracia.” (id.) Releia a atual prosa anti-chinesa da “esquerda” à luz destas reflexões benevolentes...

A ideia de que os países em transição para o socialismo não passam, de facto, de capitalistas que copiam os ocidentais, menos a “democracia”, não é, portanto, nova, e também aqui cabe aos ecossocialistas ocidentais esclarecer o mundo, a começar pelo Sul global, sobre a importância de “compreender melhor Marx”. Esta arrogância ocidental explica também porque é que os progressos incontestáveis da China ou de Cuba no domínio da ecologia são incompreensíveis e sistematicamente ignorados pelos nossos exegetas:  as soluções estão nos textos, não nos factos ou na história real.

A injunção ao Sul para seguir a via do “comunismo decrescente” (Saito) inscreve-se também numa tradição ocidental, denunciada outrora por Marx e Engels entre os socialistas utópicos:  “Nada é mais fácil do que cobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista”, diziam no Manifesto (citado por Losurdo, id.). Losurdo acrescenta:  “Marx e Engels também assinalam que ‘os primeiros movimentos do proletariado’ são frequentemente caracterizados por um ascetismo geral e um igualitarismo grosseiro”. (id.). Isto resume mais ou menos a “partilha igualitária da miséria” que os ecossocialistas do decrescimento estão a vender ao Sul global, negando, consciente ou inconscientemente, o imperativo de crescimento implícito na corrida ao desenvolvimento tecnocientífico e económico para sobreviver ao cerco imperialista. “É precisamente por ter conseguido reduzir drasticamente as desigualdades – económicas e tecnológicas – a nível internacional que a China se encontra hoje em melhor posição para enfrentar o problema da luta contra as desigualdades a nível interno, graças, nomeadamente, aos recursos económicos e tecnológicos que entretanto acumulou”. (id.) Poderíamos acrescentar, na esteira desta lógica “NEP” [6], que o desenvolvimento técnico chinês é também essencial para resolver os constrangimentos ambientais e climáticos locais. Que não haja dúvidas de que estes avanços existem (na China como em Cuba) e que resultam de imperativos de desenvolvimento (e não de diminuição):  os recursos naturais locais, o solo, a flora, a fauna, todas estas preciosas riquezas são sobretudo consideradas nacionais e portanto vitais para a soberania, ou mesmo para a sobrevivência face ao cerco imperialista. A longo prazo, enquanto o imperialismo de curto prazo destrói os seus próprios recursos ou os das suas semicolónias, a China, que planeia o seu futuro, tem todo o interesse em preservar os seus próprios recursos para vencer pela resistência. Assim, podemos apostar no futuro dos países não alinhados que se distanciam do Ocidente imperialista, tendo como perspetiva o socialismo.

A relação com a ciência é completamente antagónica entre os dois “marxismos”, e penso que é isso que temos de ter em conta para o futuro:  enquanto um a vê como suspeitamente consubstancial ao capital e se afasta dele (neolyssenkismo queer, etc.), o outro vê-a como um recurso crucial para se emancipar dele. Losurdo gosta de citar os revolucionários Sun Yat Sen, Ho Chi Minh e o próprio Lenine para ilustrar esta contradição. “O futuro líder do Vietname permaneceu em França para aprender a cultura desse país e também a ciência e a tecnologia [sublinhado por D.L.].” Losurdo menciona ainda “o interesse dominante de Sun Yat Sen [futuro presidente da República Chinesa, que ficou em França:] o segredo do Ocidente, ou seja, a tecnologia em todos os seus aspectos [...]” (id.). Mas continua, sobre os revolucionários russos que foram primeiramente influenciados pelo Ocidente:  “Esta fé na ciência e na tecnologia não é partilhada no Ocidente. [Referindo-se a Bukharin, que viajou pela Europa e pelos Estados Unidos em 1911, cita-o, a propósito do aparelho de Estado capitalista no início da Primeira Guerra Mundial:] “Eis um novo Leviatã, perante o qual a fantasia de Thomas Hobbes parece uma brincadeira de crianças. [...] Toda a grande máquina técnica se transformou numa “enorme máquina de matar”. Tem-se a impressão de que uma tal análise tende a ligar demasiado estreitamente a ciência e a técnica, por um lado, e o capitalismo e o imperialismo, por outro.” (Id.)

“No Ocidente, a ciência e a tecnologia fazem parte do “novo Leviatã”, continua Losurdo, “porque são utilizadas pela burguesia capitalista [...]. No Leste, a ciência e a tecnologia são vitais para desenvolver a resistência contra a política de subjugação e opressão que o “novo Leviatã” está a implementar. Numa análise mais atenta, a diferença que nos preocupa não é entre o Leste e o Oeste, mas entre países, na sua maioria económica e politicamente atrasados, onde os comunistas estão empenhados em abrir novos caminhos na construção de uma sociedade pós-capitalista, e países capitalistas avançados onde os comunistas só podem desempenhar um papel de oposição e de crítica.” (Id.) O próprio Lenine não foi exceção a esta contradição entre os dois contextos:  “Nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de outubro, Bukharin e Lenine – exilados no Ocidente e afastados dos deveres de direção do Estado – aproximaram-se do ‘marxismo ocidental’, cada um à sua maneira. Voltados para a construção de um novo sistema social, defendiam então, cada um à sua maneira, posições semelhantes às dos comunistas vietnamitas e chineses, que tinham elaborado as reivindicações e as perspectivas da revolução anticolonial”. (Id.)

Os ecossocialistas moralizadores de hoje têm não só os reflexos de um Turati quando se trata de analisar o que se passa politicamente fora do Ocidente (a China como “capitalismo sem democracia”, por exemplo), mas também a postura infértil de desempenhar um simples “papel oposicionista e crítico” face ao capital destruidor do ambiente. Ignoram, ou querem ignorar, toda a história “ecológica” do comunismo soviético (essencialmente pré-Khrush) e depois do comunismo chinês e cubano. São – convenhamos – impotentes para abrir uma perspetiva que, de resto, o campo socialista abriu há muito tempo e na qual é urgente inspirar-se.

Por um lado, o “marxismo ocidental” ecossocialista apresenta-se como um anti-imperialismo que vem em socorro da periferia contra um centro poluidor e destruidor, quando se baseia num anti-sovietismo ocidentalizado de inspiração inteiramente burguesa. Por outro lado, apresenta-se como uma teoria do regresso à Natureza contra o Capital (o título do primeiro ensaio de Saito, aliás), enquanto a sua rejeição pós-moderna das “ciências naturais” é a base da sua nostalgia pré-industrial. Por um lado, vir em “socorro” da periferia, ainda que apenas ideologicamente, é um tipo de pensamento neocolonial totalmente contemporâneo, típico do “marxismo ocidental” descrito por Losurdo. Por outro lado, a rejeição das ciências naturais é, ela própria, típica de um “marxismo” essencialmente crítico:  a indiscutível explosão científica e técnica que marcou o Renascimento na Europa levou os nossos exegetas a acreditar que ciência e capitalismo são consubstanciais. E a rica história científica da URSS aparece-lhes ou como um prolongamento do mesmo produtivismo destrutivo num campo “falsamente socialista”, ou como uma falsa ciência que caiu no beco sem saída do “diamat” totalitário. Em ambos os casos, o chauvinismo pan-europeu explica – e isto é grave para o movimento marxista – a sua aversão às ciências naturais e à tecnologia, que são inevitavelmente mortíferas.

É tempo, pelo contrário, para nós, no Ocidente, e para todos os progressistas “de Leste” que lutam contra o polvo imperialista e os seus males (incluindo os males ambientais), não só de denunciar esta quinta-coluna decrescimentalista, como Lenine fez com o revisionista Kautsky, por exemplo, mas sobretudo de abrir, seguindo as pegadas de Lenine, uma perspetiva ideológica revolucionária capaz de resolver, passo a passo, numa luta sem tréguas, as inúmeras catástrofes em que o imperialismo nos está a mergulhar... com uma fé renovada na ciência e no progresso humano.


[1] Para ir mais longe, é de salientar que os biólogos estão, de facto, bastante silenciosos na arena do combate ideológico ecossocialista (ou do combate ecologista, já agora), mais um sinal do desconforto persistente no Ocidente que qualquer envolvimento da biologia na arena política provocaria. Os fãs do Youtube notarão, por exemplo, que a cena mediática está saturada de físicos como Aurélien Barrau, Jean-Marc Jancovici, Etienne Klein e outros, para além de “filósofos” no sentido estrito do termo.
[2] Kohei Saïto, Marx no antropoceno. 2023.
{3] Os soviéticos amantes de abreviaturas costumavam falar de Diamat para designar o materialismo dialético, a filosofia oficial do Estado, escandalosamente “ontológica”, “ossificada” ou “caricatural” para o marxista ocidental de gema.
[4] “Après moi le déluge! Este é o lema de todos os capitalistas e de todas as nações capitalistas”, Karl Marx, O Capital, Livro Primeiro, Capítulo 10: A jornada de trabalho.
[5] Um termo mais suave seria “pan-europeu”.
[6] A “NEP”, ou “Nova Política Económica”, lançada por Lenine para estimular o crescimento na Rússia, a fim de desenvolver as forças produtivas e, em seguida, construir o socialismo, inspirou a atual política económica chinesa, que começa ainda mais atrás no feudalismo do que na Rússia.

11/Agosto/2024

[*] Professor Associado de Ciências da Vida e da Terra. Autor de “Evolution: La preuve par Marx” (2016), ‘L'Ecologie réelle, une expérience soviétique et cubaine’ (2018), ‘L'origine de la vie: Un siècle après Oparine’ (2020), ‘Le profit contre la science: pour une épistémologie post-COVID’ (2022) publicados pela DELGA.
Este artigo encontra-se em resistir.info



 

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