Foto: Mahesh Kumar A./AP Photo
Após a independência, políticas públicas e avanço técnico eliminaram as grandes fomes do período colonial. No entanto, a pobreza rural persiste e a crise climática castiga o campo. Campesinato mobiliza-se contra as “reformas” que governo Modi e mercado tentam impor
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O texto a seguir integra a edição nº 7 (setembro de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser lida ou baixada aqui.
Em 1943, quase dois milhões de pessoas pereceram de inanição na Índia. Já nos anos de 1966-67, uma severa estiagem precipitou uma fome crítica, particularmente severa no estado de Bihar, um dos mais empobrecidos da nação indiana. Essa crise resultou em milhares de mortes. Desde essa época, embora a fome e a desnutrição permaneçam como problemas persistentes, o país não sofreu mais de fomes em larga escala. Conforme destaca Amartya Sen, após a conquista de sua independência em 1947 e a consolidação de um regime democrático que assegura a liberdade de imprensa, a Índia tem se livrado, em grande medida, das grandes fomes que a assolavam no período da dominação britânica.
Na sequência do conflito com o Paquistão em 1965, seguido pela fome de 1966 e pela diminuição do auxílio alimentar dos Estados Unidos – em represália à postura da Índia durante a Guerra do Vietnã -, o governo indiano optou por implementar em larga escala variedades de trigo e arroz de alta produtividade. Aliado ao emprego de fertilizantes e ao incremento de sistemas de irrigação, esse conjunto de medidas desencadeou um substancial crescimento na produção e na eficiência agrícolas, fenômeno que ficou conhecido como Revolução Verde. No período compreendido entre 1968 e 1980, a Índia observou um incremento de aproximadamente 50% na produção de arroz, ao passo que a produção de trigo mais que triplicou. Tais conquistas foram decorrentes do aumento na produtividade agrícola, aliado a políticas de crédito favoráveis, de preços e de compras públicas – desde a institucionalização da Food Corporation of India (FCI) em 1965, o governo compra cereais de regiões com excedentes e os redistribui a preços subsidiados para regiões deficitárias. Esse conjunto de ações públicas assegurou que a Índia atingisse a autossuficiência em grãos já no início da década de 1980.
O colapso da União Soviética, até então um relevante parceiro comercial, e a elevação dos encargos com energia, após a Guerra do Golfo em 1991, desencadearam uma rápida deterioração na balança de pagamentos. Para enfrentar tal situação, a Índia buscou ajuda financeira do FMI. As condições impostas pelo Fundo conduziram à reestruturação das políticas econômicas, levando o governo a implementar, a partir de 1991, uma série de medidas de liberalização econômica. A orientação para o mercado teve um impacto rápido na agricultura indiana. Os rendimentos e a oferta de produtos comerciais cresceram significativamente. Entre 1991 e 2024, a produção de arroz aumentou 90% e a produção de trigo dobrou. Atualmente, a Índia é o maior exportador mundial de arroz! Esse sucesso agrícola, no entanto, foi acompanhado por um aumento nas desigualdades sociais, econômicas e regionais, já que os agricultores que se beneficiaram dessas reformas foram os mais capitalizados, aqueles com as maiores propriedades, que têm acesso aos canais de irrigação e são próximos às autoridades públicas.
A questão alimentar permanece, acima de tudo, porque embora a participação da agricultura no PIB tenha caído – de 27% em 1992 para 16% em 2018 (e 17% em 2021) -, o setor agrícola continua a empregar mais pessoas do que a indústria e os serviços. Constituído essencialmente por propriedades de dimensão extremamente reduzida — 86% delas abrangem menos de dois hectares — e, por essa razão, com dificuldades em aproveitar as oportunidades proporcionadas pelos mercados urbanos ou externos, o panorama agrícola e rural da Índia ainda enfrenta cenários de insegurança alimentar aguda. A pobreza rural se reflete nos principais dados de segurança alimentar: em 2020, 14% da população indiana sofria de desnutrição. Entre as crianças menores de 5 anos, a situação é ainda mais grave, com 33,4% apresentando atraso no crescimento e 27,4% nascendo com baixo peso, comprometendo seu desenvolvimento físico e cognitivo. A anemia, por sua vez, afetava mais da metade das mulheres em 2018.
Neste contexto, não é surpreendente que as tentativas de liberalização do sistema de preços agrícolas sejam causa de protestos massivos, como foi o caso em 2020-21. Os protestos dos agricultores indianos de 2020-2021 foram contra leis descritas como “leis anti-agricultores” por muitos sindicatos agrícolas, que consideravam que a liberalização dos preços daria demasiado poder de barganha às empresas. Os protestos exigiam a criação de uma lei de preço mínimo garantido, para impedir que as empresas controlassem os preços. Em novembro de 2021, após mais de um ano de conflito com os camponeses, o governo desistiu de sua reforma. A retomada das manifestações em 2024 mostra, no entanto, que a questão agrícola continua candente e a sua equação determinará em parte a estabilidade econômica e política do subcontinente indiano.
A Índia demonstrou no passado que pode enfrentar os seus principais desafios. Sua ambição global é legítima. É o país mais populoso do mundo, possui recursos valiosos, como uma população jovem, centros acadêmicos de excelência, uma grande diáspora e um setor empresarial dinâmico. Suas boas relações com os Estados Unidos e a Rússia são também uma vantagem no concerto das grandes potências mundiais. A China, seu poderoso vizinho, é certamente um rival com quem a Índia mantém relações conflituosas numa série de assuntos estratégicos. Mas o pragmatismo parece prevalecer e o conflito tende a ser administrável, como mostram recentes aproximações diplomáticas. No entanto, sua questão agrícola e alimentar permanece central e os desafios ambientais, como as secas, as inundações e os danos ecológicos da revolução verde – tais como degradação do solo, salinização e poluição das águas subterrâneas – são cada vez mais visíveis. Sem enfrentar a questão rural e sem implementar uma estratégia de desenvolvimento sustentável em grande escala, a ambição global da Índia corre o risco de ser prejudicada.
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