terça-feira, 1 de outubro de 2024

O que está em jogo no governo Lula?

Fontes: Brasil de Fato [Imagem: Lula da Silva durante seu discurso de posse como presidente no Congresso Nacional em 1º de janeiro de 2023. Créditos: Valter Campanato/Agência Brasil]


Neste artigo o autor sustenta que o que está em disputa no apoio à esquerda ao governo Lula é o destino da luta contra a extrema direita, que não pode ser alcançada sem Lula e o PT.

«Duas luvas para a mão esquerda não fazem um par de luvas.
"Duas meias verdades não formam uma verdade."

Eduard Dekker, conhecido como Multatuli (1820/1887), Ideias .

O Brasil é um país fascinante, entre outras razões, por seus surpreendentes paradoxos. Paradoxos são contradições contra-intuitivas. Entre nós nada é óbvio. O país não tem dívida externa líquida, as reservas internacionais estão acima de dois anos de importações e estão aumentando, o Produto Interno Bruto (PIB) cresce desde 2022 em torno de 3% ao ano, a inflação está em torno de 4%, acima do centro, mas dentro dentro dos limites esperados, o desemprego vem diminuindo, mas ainda está acima de 5%, e o cenário externo tornou-se mais favorável com a sinalização de queda dos juros nos Estados Unidos, eliminando o perigo de desvalorização do real frente ao dólar . Mas o Banco Central acaba de aprovar, por unanimidade e, portanto, com a aprovação dos diretores indicados pelo governo Lula, um aumento de 0,25% na taxa Selic, que passou para 10,75%. Em 2023, foram gastos 614,550 milhões de reais com juros de títulos da dívida pública, ante 503,000 milhões de reais em 2022. Os juros devem consumir algo próximo de 8% do PIB nesta dinâmica.

Lula aceitou, após um ano de luta pública contra o presidente do Banco Central, a linha de “pisar no freio” sob pressão do mercado financeiro. Por outras palavras, embora o tecto da despesa tenha sido substituído pela estratégia do quadro fiscal, as três pernas da estrutura macroeconómica neoliberal permanecem intactas: taxa de câmbio flutuante, procura do défice zero e objetivos de inflação. Evidentemente, esta viragem está a alimentar uma considerável decepção e frustração na esquerda. Mas não basta chegar à conclusão de que a melhor tática seria uma virada da esquerda em direção à oposição ao governo Lula. Não é lúcido concluir que não há mais o que debater com o governo Lula.

Comecemos pelo início: em tudo o que existe existem contradições. Em qualquer governo que exista e porque existe, encontraremos conflitos internos. Mesmo no Vaticano, apesar do dogma católico de que o Papa seria infalível graças à iluminação vigilante do Espírito Santo, há disputas incessantes. A questão de analisar um governo, numa perspectiva marxista, começa com a caracterização da natureza de classe do governo. Nada é mais importante, porque a referência de classe é o rubicon, ou seja, entre todos os outros, é o factor qualitativo que orienta a posição dos socialistas. Mas não é a única regra. O carácter de classe não esgota a análise porque não é verdade que todos os governos burgueses sejam iguais. Pelo contrário, há muita variedade. Existem muitos tipos diferentes de governos burgueses apoiados por diferentes blocos sociais. É muito raro e circunstancial que um governo tenha o apoio consensual de todas as diferentes facções burguesas. O padrão é que seja suportado por algumas frações em detrimento de outras.

O governo Lula é um governo burguês. Um governo atípico ou mesmo uma anomalia para os critérios de dominação da classe dominante, mas burguês. É um governo anormal porque o principal partido da coligação que o apoia é o PT, e à sua frente está Lula, o maior líder popular dos últimos quarenta anos. A representação burguesa no interior não é decorativa. A facção que compõe o governo é muito representativa e poderosa.

Mas a situação é qualitativamente diferente daquela de vinte anos atrás. É muito pior, porque surgiu no mundo e no Brasil um movimento de extrema direita com liderança neofascista, que influencia metade do país e se baseia numa relação social de forças desfavorável aos trabalhadores. Estes factores explicam porque seria errado a esquerda radical aderir ao governo Lula. A disciplina governamental exigiria apoio incondicional, o que seria indefensável. Mas são também eles que explicam porque seria um erro opor-se ao governo. Uma posição na oposição imporia críticas intransigentes, o que seria imperdoável. Não há possibilidade de “superação” do governo Lula pela esquerda. À frente do governo, a extrema direita ocupa todo o espaço político.

A parte da esquerda que defende a participação no governo apresenta dois argumentos principais. A primeira é que o governo vem realizando reformas progressivas: aumentou o salário mínimo acima da inflação e conseguiu reduzir o desemprego; promoveu financiamento para acesso à casa própria por meio do Minha Casa, Minha Vida; ampliaram as políticas sociais compensatórias, como o Bolsa Família; respondeu ao desastre das enchentes no Rio Grande do Sul com um programa emergencial de reconstrução; reduz o desmatamento na Amazônia e defende uma autoridade climática; acesso garantido dos negros ao ensino superior através da política de cotas; promoveu a ampliação da Rede Federal de Ensino Superior por meio do Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), entre outros. A segunda é que não foi possível ir mais longe num ano e meio devido a uma relação de forças entre as classes desfavorável aos trabalhadores.

Estes dois argumentos são uma meia verdade e, portanto, uma meia mentira. Não é incomum que governos burgueses, quando pressionados pela mobilização dos trabalhadores e dos seus aliados, façam concessões. Os exemplos internacionais são inúmeros. Mesmo no Brasil, um país onde foi particularmente difícil arrancar à burguesia a conquista dos direitos sociais, encontraremos inúmeros exemplos. Getúlio Vargas cedeu, na década de 1950, à regulamentação do salário mínimo e à estabilidade no emprego e criou a Petrobrás, entre outras empresas estratégicas. Sarney foi forçado, na década de 1980, a negociar uma escala salarial móvel, na forma de um gatilho, primeiro semestralmente, depois trimestralmente e, finalmente, mensalmente. Eram governos em disputa? Eles mereciam o apoio da esquerda?

O segundo argumento baseia-se no senso comum de que Lula não fez mais até agora porque não podia. A relação de poder entre as classes oscila e flutua dependendo de muitos fatores, é verdade. Acontece que um desses fatores, aliás, um dos principais fatores para fomentar a capacidade de mobilização popular é a iniciativa do próprio governo. E a principal preocupação do governo Lula era outra. Foi e continua sendo a manutenção da concertação com a fração da classe dominante que garante a sua governabilidade no Congresso Nacional. Esta estratégia é insuficiente para derrotar o bolsonarismo, que é o principal desafio. O papel da esquerda combativa é criticar esta impotência. Se não for corrigido, será fatal para o próprio governo Lula.

A parte da esquerda radical que defende a viragem para a oposição apresenta dois argumentos centrais. A primeira é que o governo nem sequer ultrapassou os limites da estratégia neoliberal de ajuste fiscal, portanto, mesmo com a redução da pobreza, é herdeiro de Temer e até de Bolsonaro ao manter uma política econômica antioperária e popular que beneficia aos grandes capitalistas. A segunda é que não é possível lutar contra a extrema direita sem denunciar o governo Lula, responsável pela crise social que explicaria o aumento da audiência do bolsonarismo.

Ambos os argumentos têm uma “pitada” de verdade, mas são falsos. Não é verdade que não haja diferença entre o governo Lula 3 e os governos que tomaram o poder após o golpe institucional de 2016 que derrubou o governo de Dilma Rousseff. Não é honesto. Isso é um exagero, há muitas diferenças. Também não é justo concluir que não se pode combater Bolsonaro sem combater o governo Lula. Pelo contrário, o que a vida ensina é que não será possível vencer a luta contra a extrema direita sem o apoio do governo Lula.

“Sem Lula e o PT não é possível sequer pensar em derrotar os neofascistas”

Não se discute se Lula terá o seu “momento Fidel socialista”. Não está em debate se Lula terá o seu “momento de desenvolvimento nacional Chávez”. Nem sequer se questiona se Lula terá o seu “momento reformista Allende”. Afinal, o que está em jogo então? O que está em discussão é o destino da luta contra a extrema direita. Neste campo, a frente única de esquerda é uma tática indispensável para derrotar o bolsonarismo. Sem Lula e sem o PT não é possível sequer pensar em derrotar os neofascistas. Quem subestima esse perigo ainda não compreendeu a máxima gravidade da situação política no mundo e no Brasil.

Tradução: Resumo Latino-Americano, revisado por Alfredo Iglesias para Rebelión






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