domingo, 17 de novembro de 2024

CRISE HUMANITÁRIA - esmagados pela guerra brutal

Um centro de trânsito de emergência do Acnurem Renk, no Sudão do Sul, está recebendo deslocados do Sudão / Créditos: Acnur/Charlotte Hallqvist

O Sudão está fora da lista mundial de prioridade; foram esquecidos pela mídia, negligenciados pela vontade política e ignorados pela maioria das instituições humanitárias

Roger Flores Ceccon

O Sudão, terceiro maior país do continente africano e do mundo árabe, enfrentou inúmeras crises nos últimos anos e, atualmente, vivencia um conflito brutal que começou em 2023, já causou a morte de 14 mil pessoas e forçou dois milhões a abandonar suas casas. De acordo com relatórios das Nações Unidas, o país mergulhou em um caos após o início de um conflito intenso entre o exército e um poderoso grupo paramilitar, motivado pela disputa de poder.
O país ainda se depara, atualmente, com a fome e a maior crise de segurança alimentar do mundo, agravadas pelas enchentes e fortes chuvas que ocorreram em 2024. Surtos de cólera, especialmente em locais afetados pelas inundações, ameaçam comunidades vulneráveis, forçando pessoas a se deslocarem. O Sudão também registra casos de Mpox, entre outras epidemias e doenças sistematicamente negligenciadas.

O médico sudanês Mohamed Bashir, que trabalha com a equipe internacional de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em um projeto no Sudão do Sul, do outro lado da fronteira do país, aponta que embora esteja fisicamente longe, os efeitos da guerra na sua terra natal estão sempre presentes. “Cada atualização sobre o conflito me puxa de volta, enquanto comparo a devastação que ouço falar com as manchetes de notícias globais, que parecem mal notar o que está acontecendo”, afirma Bashir.

O Sudão e seu povo estão fora da lista mundial de prioridades – esquecidos pela mídia, negligenciados pela vontade política e ignorados pela maioria das instituições humanitárias, que deveriam colocar essa catástrofe em primeiro plano. Para Bashir, essa situação sempre gera uma pergunta: “O que posso fazer como indivíduo?” E a resposta é clara: ‘Continuarei apoiando aqueles esmagados por essa guerra brutal’”.

O médico está no condado de Twic, no Sudão do Sul, onde muitos de seus pacientes são pessoas repatriadas, que foram deslocadas duas vezes em cerca de uma década. E agora, milhares de refugiados sudaneses cruzaram a fronteira para o Sudão do Sul desde que a guerra eclodiu em abril de 2023. Eles estão espalhados por comunidades anfitriãs ou amontoados em campos de refugiados.

Olhando de perto essa comunidade, o profissional de MSF reconhece essa dor em si mesmo: ‘a dor da guerra que continua atormentando a população, separando famílias. Aqueles que fogem do Sudão compartilham as mesmas histórias, marcadas por perdas, incertezas e falta de esperança na paz’.

Assim como milhões de deslocados, a família de Bashir escapou de Cartum e foi obrigada a se deslocar várias vezes em apenas 18 meses. Eles deixaram tudo para trás, sem um caminho claro para a sobrevivência e com pouca atenção do mundo. E ainda estão sofrendo com o desaparecimento de um familiar, um civil retirado de sua casa por uma das partes em conflito há mais de 10 meses. Não há notícias sobre ele durante todo esse tempo, nem informações sobre sua saúde ou se ele será libertado algum dia.

Mesmo para aqueles que escapam da violência ou se reúnem após a separação, surgem novos desafios – inundações, surtos de doenças – sob um sistema de saúde em colapso. A maioria dos hospitais estão destruídos, e os que ainda funcionam estão isolados, sem medicamentos, pessoal ou recursos. Esta é uma privação deliberada, uma tática cruel de guerra.

Sobrevivendo com o mínimo, as pessoas têm sido deixadas à espera de um milagre, de deslocamentos e da morte. Apesar de tudo, os sudaneses compartilham estratégias de resistência. Como profissionais humanitários — médicos, logísticos e enfermeiros — as equipes da MSF, assim como Bashir, fazem o que podem para apoiar aqueles que precisam.

Nos últimos meses, em Twic, o sistema de saúde entrou em colapso, sobrecarregado pela malária, hepatite e desnutrição. O trabalho na região fornece uma janela para outra dimensão da guerra no Sudão. ‘Vejo em primeira mão as terríveis condições enfrentadas por aqueles que foram forçados a fugir. O que me surpreende ainda mais é o quão negligenciada essa crise permanece — há tão pouco conhecimento disseminado sobre o deslocamento do povo sudanês para o sul do país, Chade e outros países, apesar das necessidades esmagadoras das famílias que buscam refúgio’, avalia Bashir.

Em meio a tudo isso, o médico faz um chamado. “Não deixe a crise no Sudão ser esquecida. Às vezes, parece que ninguém se importa, como se o país tivesse sido deliberadamente despriorizado pelos tomadores de decisão globais, deixado de lado para outras crises. Por quanto tempo mais podemos tolerar essa inação?”

Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.



 

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