Fontes: Jacobinlat [Imagem: Apoiadores do ex-presidente brasileiro Lula da Silva colocaram faixas em frente ao Supremo Tribunal Federal em março de 2018. Créditos: Senado Federal/Flickr, retirado de Jacobinlat]
A derrota da esquerda brasileira tem raízes profundas que vão além da “guerra cultural” ou da política de “identidade”. A extrema direita capitalizou o desencanto e mobilizou forças, enquanto a esquerda permanece em silêncio ou capitula à pressão. Para mudar esta correlação de forças é fundamental aprender com a história, mobilizar-se socialmente e enfrentar os desafios subjacentes que deram poder ao bolsonarismo e ao seu projeto neofascista.
Um setor da esquerda mais moderada, depois da derrota eleitoral, afirma que estamos a perder a “guerra cultural” porque a esquerda se tornou “identitária”. Esta tese está errada. Também é perigoso. A verdade é que a maioria da esquerda abraçou tardiamente a defesa das reivindicações dos movimentos dos oprimidos. Não é a linguagem neutra que explica o peso do bolsonarismo. Estamos na defesa há oito anos, mas por outros motivos. A extrema direita influencia um terço da população. O seu núcleo “duro” radicalizado em posições neofascistas não é inferior a 15%, ou seja, aproximadamente metade do seu apoio eleitoral. As suas agendas são claras: denunciar que a esquerda é corrupta e quer roubar o poder; apoiam a violência policial impune, os massacres e as matanças - são mesmo contra câmaras uniformizadas - e defendem o encarceramento em massa; reivindicar o legado da ditadura militar; Negaram o perigo sanitário durante a pandemia, negam o aquecimento global, defendem a expansão da fronteira agrícola na Amazônia; Desprezam o combate ao racismo, ao sexismo, à homofobia, zombam dos direitos indígenas e defendem o marco temporal. Todas estas posições são bizarras, absurdas e irracionais. Mas não só têm peso de massa, como a extrema direita é o movimento mais militante e com maior capacidade de mobilização política do país. Esta ofensiva não se explica apenas porque têm maioria nas igrejas neopentecostais. Uma primeira pista é que nosso campo, a partir do governo Lula, não entra em disputas político-ideológicas: permanece calado e capitula, mesmo quando as oportunidades são favoráveis, como após a derrota da semi-insurreição de 8 de janeiro de 2023. Mas essa também não é a única razão. Porque?
O Brasil mudou muito nos últimos dez anos. As análises de inspiração marxista baseiam-se, em última análise, na interpretação do contexto econômico e social. O que tem que ser tem muita força. As pessoas se posicionam principalmente com base em seus interesses. Mas o marxismo não é fatalismo econômico. Não é possível compreender a realidade política que nos rodeia sem ter em conta que a esquerda está a perder a guerra cultural. O que é conhecido como “guerra cultural” é a luta pela hegemonia política. A luta pela hegemonia é uma luta que tem três dimensões diferentes: política, teórica e ideológica. É uma luta por critérios, valores, propostas, projetos e visões de mundo. Mas é inútil ter apenas os melhores argumentos, embora as ideias sejam importantes. Não faz sentido ter apenas as opiniões mais justas. Não adianta estar certo. Isso não é suficiente. O que define quem está na ofensiva e quem está na defensiva nesta área é a luta de classes. São posições de força. E posições de força são conquistadas lutando pela consciência social média. Isto não é possível sem contestar o “bom senso”. A ideia mais poderosa da esquerda, e também a mais simples, é que é possível mudar o mundo e acabar com a injustiça social. Mas colide com poderosas forças de inércia histórica. Este é o cerne da luta pela hegemonia. Quando avança uma onda de luta dos explorados e oprimidos, tudo parece mais possível.
Porém, aceitar que a disputa só ocorrerá no terreno do inimigo de classe já nos deixa numa posição desfavorável. O espaço institucional da democracia liberal reduz a luta política aos debates parlamentares. Em condições desfavoráveis, a esquerda não pode parar de lutar onde somos desafiados. Mas o principal instrumento na luta contra a extrema direita é o governo Lula. Existem outros instrumentos muito importantes, porque a esquerda lidera os principais movimentos sociais: sindical, estudantil, feminista, negro, ambientalista, indígena e LGBT. Mas o mais poderoso é o governo Lula. Desistir de usar o governo para conquistar a hegemonia confirma que não aprendemos a lição mais importante que o golpe do impeachment nos deixou. A pior derrota é a derrota sem luta.
A força se ganha com coragem, iniciativa e mobilização social. Isto traduz-se nas respectivas posições que os trabalhadores e seus aliados ocupam face aos seus inimigos, às diferentes fracções da classe dominante e à capacidade de cada campo arrastar partes dos setores médios, no cenário de conjunturas que se alternam em quadro da situação política. A medida é o estudo da correlação de forças sociais e políticas em permanente disputa. A história forneceu lições inspiradoras. Brizola usou o governo do Rio Grande do Sul em 1961 para garantir a posse de Jango: teve a coragem de ressaltar que estava disposto a ir até a guerra civil. Ele atrasou por três anos o golpe que finalmente ocorreu em 1964. Montoro usou o governo de São Paulo para se mobilizar a favor das Diretas Já em 1984. Ele iniciou uma campanha que levou milhões de pessoas às ruas. A luta pela hegemonia baseia-se na mobilização social. Estamos na defensiva porque a liderança de esquerda insiste em ignorar o perigo representado pela presença de uma extrema direita liderada pelo neofascista Bolsonaro. Não exige o envolvimento das massas populares.
Tudo começou a mudar qualitativamente depois dos protestos de junho de 2013, porque a esquerda perdeu a disputa sobre a direção desta explosão sem cabeça. Após os três primeiros anos do governo Dilma Rousseff, os indicadores econômicos e sociais eram preocupantes para a classe dominante. A situação era de pleno emprego, aumento dos custos de produção e queda das taxas de lucro. Os capitalistas estavam divididos. Uma facção apresentou um ultimato, exigindo um programa radical de austeridade e ajustamento fiscal. A pressão do mercado mundial sobre o capitalismo brasileiro foi devastadora. A recessão global estabeleceu os limites para um crescimento médio inferior a 3% ao ano. Após treze anos de governos liderados pelo PT, a estratégia de apoiar o projeto de pequenas reformas baseadas no crescimento econômico que dependia essencialmente da demanda externa das exportações do agronegócio e da mineração, o que gerou um acúmulo de reservas em dólares que continham pressões inflacionárias. O impacto da onda de choque externa, que veio da grande crise capitalista internacional de 2007/08, foi brutal. O que Junho de 2013 demonstrou, com milhões de pessoas a sair às ruas numa avalanche esmagadora, foi que uma proporção significativa de jovens assalariados, os mais instruídos da história do Brasil, tinha perdido a esperança de ter uma vida melhor do que a dos seus pais. As expectativas “reformistas” de que os governos do PT ainda seriam capazes de “mudar vidas” estavam começando a morrer.
Mas o mais terrível foi que, depois de uma vitória estreita no segundo turno em 2014, sob o lema “nem que a vaca tosse”, o governo de Dilma Rousseff cedeu à pressão burguesa. Ele tentou apagar o fogo com gasolina. Ignorou a frustração de milhões de jovens com melhor escolaridade, mas condenou-os a baixos salários e empregos precários. Foi o fermento de uma crescente agitação social que foi desencadeada pelas alegações de corrupção da Lava Jato: uma operação política subversiva que alimentou a mobilização da classe média, que ultrapassou os cinco milhões nas ruas, e proporcionou a oportunidade para o golpe institucional, de impeachment. A relação de forças inverteu-se em 2016 e desde então estamos numa situação reacionária e de “ladeira abaixo”. A hegemonia política mudou dramaticamente para a extrema direita. A questão é de importância estratégica porque, em 2024, o governo Lula 3 enfrenta um impasse semelhante ao do governo Dilma 2 cederá ou não à pressão cada vez mais forte do mercado, que exige cortes de gastos para garantir um déficit zero, que aumenta as garantias de redução da dívida pública? Haddad terá seu momento “Levy”?
Em perspectiva, a situação reacionária já consumiu os últimos oito anos. Como explicar uma situação defensiva tão longa? Em primeiro lugar, porque os erros são pagos. O Brasil de 2016 já não era o mesmo de 1979/80, quando começou a fase final da luta contra a ditadura. As taxas de mobilidade social absoluta e relativa diminuíram, se compararmos o período histórico 1988/2016 com o anterior, 1930/1980. Durante meio século, entre 1930 e 1980, o Brasil experimentou uma mobilidade social absoluta muito elevada em comparação com a situação atual em 2024. Esse processo foi possível graças à urbanização acelerada, que permitiu a absorção massiva da mão de obra rural pela indústria. Mesmo deslocadas do campo para as periferias urbanas e favelas, as massas melhoraram suas condições de vida. Esta dinâmica histórica entre os anos 1930 e 1980 é fundamental para compreender a crise atual, porque foi excepcional. Absolutamente excepcional.
O Brasil agrário era uma sociedade de lento desenvolvimento econômico, grande rigidez social e surpreendente inércia política. Durante muitas gerações, os ancestrais da grande maioria do povo brasileiro foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Aqueles nascidos de escravos tinham pouca esperança quanto ao seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros. Os filhos de médicos, engenheiros ou advogados, mesmo que não possuíssem propriedades, poderiam, no entanto, aspirar a ascender na burguesia.
O padrão histórico dominante na história do Brasil antes de 1930 foi outro: o legado da aberração histórica que foi a escravidão, que perpetuou uma desigualdade social anacrônica. E da década de 1990 até 2024, prevaleceu outro padrão. Embora a miséria tenha sido reduzida, porque os extremamente pobres beneficiaram de políticas de transferência de rendimentos, como a Segurança Social e o Bolsa Família, os trabalhadores de rendimento médio viram as suas condições de vida estagnarem ou piorarem. O bolsonarismo é um movimento burguês com base social na classe média rica, mas esta base social não é suficiente para lutar pelo poder num país como o Brasil. Os trabalhadores de rendimento médio são o “núcleo duro” que aumenta o impacto social da extrema direita.
Contudo, a memória histórica da mobilidade social que o período 1930/80 deixou como repertório cultural de experiência permanece viva na mentalidade da atual geração adulta. A inércia do bom senso baseia-se nesta memória, que tem sido largamente romantizada, especialmente entre a moderna classe média eurodescendente, que idealiza a saga da mobilidade ascendente dos seus avós e pais como um exemplo meritocrático. É compreensível, embora ingénuo, que a expectativa de que, mesmo dentro dos limites do capitalismo, sejam possíveis oportunidades de enriquecimento, continue poderosa. O discurso da extrema direita assenta nesta promessa. Simplesmente não é possível que o “elevador” social suba mais rapidamente porque, desde 1988, o regime democrático-eleitoral estendeu demasiados direitos aos mais pobres, e o custo desta rede de assistência e proteção é demasiado caro: o imposto sobre o rendimento (IRPF), previdência social, universalização da saúde pelo SUS, universalização do ensino público, cotas, universidades públicas gratuitas, etc. Este é o centro da disputa ideológica na luta pela hegemonia. Porque as reformas na distribuição de rendimentos não são possíveis sem conflitos sociais agudos. Mas esta não foi a aposta dos governos liderados pelo PT durante treze anos. Também não é a aposta de Lula para 2024. Mas esta linha prepara-se para uma derrota terrível em 2026. O problema estratégico para a esquerda radical é que estamos ameaçados pelo perigo de uma derrota histórica, pela ameaça de um “inverno siberiano”, mas as esperanças reformistas - a expectativa, inúmeras vezes frustrada mas renovada, de um acordo social que garanta o pleno emprego, a reforma agrária, o aumento da escolaridade com a expansão da rede pública, o aumento dos salários médio, etc – ainda estão vivos. A chave para a luta pela hegemonia reside na mobilização social acalorada.
Valério Arcary é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor de O Martelo da História. Ensaios sobre a urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016).
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