Bruna Frascolla
A teologia da libertação trouxe o liberalismo para a Igreja. E toda organização social que o liberalismo toca desmorona.
No meu artigo anterior, vimos que o sociólogo e jornalista Bruno Paes Manso, em A fé e o fuzil , faz uma descrição desolada e precisa do Brasil moderno e urbano: um caos particularista, em que vence quem consegue servir sua clientela e impor um mínimo de ordem. Assim, vencem ao mesmo tempo o Centrão (ou seja, a miríade de partidos políticos disformes), as igrejas milagrosas e os cultos criminosos. As igrejas milagrosas, que ou são neopentecostais ou imitam seu modus operandi , pecam ao discutir apenas moralidade em vez de fazer política; os políticos do Centrão valorizam apenas interesses privados que nem sempre são lícitos; cultos como o PCC criam um código de ética que organiza o crime e doma jovens bandidos nas favelas.
Ao mesmo tempo em que o autor nos mostra a visão de mundo dos moradores de favelas evangélicas com quem conversou, ele revela a sua própria. E podemos dizer que é um retrato fiel da elite intelectual brasileira: um híbrido de cultura católica e modernização liberal. Ele não esconde sua simpatia pela teologia da libertação, que foi uma tentativa da esquerda católica de conciliar sua religião com o marxismo. Era uma mania na América Latina durante os anos 1970. Em 1984, no entanto, o cardeal Ratzinger, chefe da Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício), condenou a teologia da libertação e a removeu (ao menos formalmente) da Igreja.
Marina Silva, apontada pelo autor como exemplo de evangélica capaz de atuar positivamente na política, pretendia ser freira e se formou em teologia da libertação. Só se tornou evangélica quando já era senadora e tinha mais de quarenta anos.
Marina Silva contrastava, portanto, com a normalidade dos evangélicos na política, que consiste em politizar costumes e impor crenças. Cito a página 86: “Eu achava que as discussões morais que surgiam da Bíblia eram razoáveis. […] Nas últimas décadas, porém, essas crenças invadiram o debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, bloqueando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha de fazer um aborto não é trivial. Por outro lado, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa difícil escolha, política apoiada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já estava presente entre os católicos, mas com a popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado tornou-se lugar-comum, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando os adversários.”
Este parágrafo é um atestado de liberalismo político. No liberalismo político, que foi sistematizado antes do liberalismo econômico, ainda com Locke, a fé se torna uma questão privada e o Estado deve ser governado de forma neutra. Em suas origens, o liberalismo era anticatólico; Locke pregava a tolerância para com todos os cultos protestantes, mas não para com o catolicismo. Isso se deve ao fato de que a monarquia britânica só é legítima se considerarmos, ao contrário da Igreja Católica, que o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão foi nulo. Assim, com Locke, acredita-se que as razões de Estado estão acima de questões teológicas. O Estado liberal inglês não precisava da orientação moral da Igreja Anglicana; precisava apenas que a Igreja Católica ficasse fora do seu caminho. Em um sentido amplo, o Estado liberal precisa apenas que a Igreja (seja ela qual for) não interfira em seus planos. Mas quem dá esses planos?
A ideia profundamente liberal de que o Estado deve ser neutro em relação às religiões acabou legitimando a tecnocracia. Os liberais têm uma cegueira peculiar, pois acreditam que seus valores são neutros e científicos, quando na verdade são os valores de uma elite focada em dirigir o Estado. Por isso mesmo, são ateus ou agnósticos, já que a rejeição às crenças religiosas é a ação esperada daqueles que irão dirigir o Estado liberal.
No entanto, à medida que esse conjunto de crenças liberais se move em direção a posições cada vez mais bizarras e impopulares (agora a ciência nos diz para acreditar que as mulheres têm pênis...), o resultado inevitável é que a elite liberal se afasta do povo e se torna incapaz de pensar em uma comunidade com ele. Em vez disso, a elite fica com a pretensão de administrá-lo: na melhor das hipóteses, com humanitarismo; na pior, como um grupo de escravos. Nesta questão, a elite intelectual brasileira acha que o aborto deve ser legalizado e que as massas têm que aceitá-lo, mesmo que vivam nominalmente em uma democracia e votem em políticos que afirmam ser contra o aborto. É óbvio que o liberalismo é incompatível com a soberania popular.
Embora agnóstico, Paes Manso ecoa pelo menos dois católicos em sua posição sobre o aborto: Leonardo Boff (teólogo da libertação brasileiro) e Joe Biden. Esses dois católicos heterodoxos defendem o aborto a partir de uma perspectiva liberal: as religiões devem ficar confinadas à esfera privada e a política deve ser decidida de acordo com critérios técnicos. Então, para dizer que são contra o aborto, eles fazem uma série de ressalvas, alegando que fazer um aborto é uma decisão muito difícil para as mulheres; que o aborto deve ser extremamente raro, mesmo que o Estado não coloque nenhuma restrição a ele. Agora, após a decisão Dobbs em 2022, essa falácia deveria ter caído no esquecimento: vimos que as mulheres nos EUA usavam o aborto como um contraceptivo trivial, e vimos que é do interesse das grandes corporações financiar viagens de suas funcionárias grávidas para estados com aborto. É difícil, senão impossível, adotar o liberalismo político sem promover o liberalismo econômico.
A teologia da libertação finge que o liberalismo econômico não tem nada em comum com o liberalismo político. Assim, os teólogos da libertação abraçaram o último enquanto se apresentavam como lutadores contra o primeiro. Daí sua propensão a um esquerdismo difuso. No caso de Paes Manso, vemos que ele até aderiu ao mito do Comintern de que o Cangaço foi uma revolta popular contra os donos de latifúndios – um mito ultrapassado que nenhum historiador do Cangaço ousaria repetir. (Como vejo que o artigo da Wikipédia em inglês também repete o mito, usando uma bibliografia anglófona dos anos 1970, devo explicar aqui que os pobres também tinham medo desses bandidos, e que os proprietários de terras não se comportavam como uma classe, pois frequentemente tinham vingança uns contra os outros. Então, cada proprietário de terras podia apoiar um grupo diferente de bandidos.)
Lendo o livro, temos a impressão de que tudo está ultrapassado nessa visão de mundo da teologia da libertação. Paes Manso diz na página 154: “O lema da nova teologia [da libertação] era ‘ver, julgar e agir’, o que implicava inicialmente entender o contexto com uma crítica, usando ferramentas das ciências humanas e deixando de lado lendas e superstições. A nova perspectiva deveria usar métodos de disciplinas modernas, como sociologia, antropologia e psicanálise, para fornecer uma visão menos ingênua do mundo. Quais mecanismos sociais produziam a pobreza? Por que a sociedade era tão desigual? Para obter essas respostas, os teólogos da libertação usaram um conjunto de ferramentas marxistas, materialistas, históricas e dialéticas, que colocavam a luta de classes em primeiro plano, como mecanismo de mudança.” Em outras palavras: como bons liberais, os teólogos da libertação buscavam imitar a ciência e se atualizavam. Ao se manterem atualizados, eles adotaram verdadeiras modas passageiras que, na década de 1970, poderiam parecer muito inovadoras, mas que não resistiram ao teste do tempo e agora estão simplesmente ultrapassadas.
Paes Manso mostra que tem uma visão muito tendenciosa da história da Igreja, que talvez tenha sido disseminada pelos teólogos da libertação após seu banimento pelo Vaticano. A história é assim: a Igreja sempre defendeu o capitalismo e a conciliação de classes, até que, para deter o comunismo, precisou se preocupar com os pobres. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, ocorreu nessa conjuntura. Nesse ambiente atípico, surgiu a teologia da libertação, que incutiu consciência de classe nos pobres e os organizou para reivindicar serviços públicos. Em vez de abordar questões espirituais, os padres aconselharam os fiéis a se perguntarem por que estavam desempregados, dizendo-lhes que não era a vontade de Deus. Nas palavras de Paes Manso: “Em vez de abençoá-los ou rezar por eles, os religiosos falavam sobre suas condições de vida e usavam a Bíblia para encorajar o comprometimento com a luta coletiva”. Passada a ameaça comunista, o Vaticano jogou fora a teologia da libertação. Ao ver o pentecostalismo tomando seu lugar nas periferias, o Vaticano promoveu a Renovação Carismática, “que trouxe o poder do Espírito Santo para o centro da massa, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalia e muita música”. Em outras palavras, imitou os pentecostais para competir por seguidores.
Paes Manso está completamente equivocado ao pensar que a Igreja só começou a se opor ao capitalismo na década de 1960. Embora fale sobre a Ação Católica, ele ignora a Doutrina Social da Igreja, bem como as encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), dois documentos que visavam domar o poder do dinheiro. Além disso, o autor parece acreditar que, se não fosse o Vaticano (que atrapalhou a teologia da libertação) e os pentecostais (que não praticam a boa política), o Brasil viveria em um idílio de participação popular, com os pobres organizados para exigir um estado de bem-estar do governo. Sua crença é baseada na falta de compreensão da natureza humana. O homem não busca o sagrado para discutir desemprego; ele o busca porque quer bênçãos, milagres, etc. Se o relato de Paes Manso sobre a teologia da libertação estiver correto, podemos apenas supor que os televangelistas encontraram uma população carente não apenas de serviços públicos, mas também de serviços espirituais – e até mesmo de orientação para a vida familiar. Afinal, é mais fácil para um velho padre esquerdista alimentar viciados em crack do que encorajar os jovens a ficarem longe das drogas.
Se a prioridade do clero é fazer o que um assistente social de esquerda faz, então seu papel é melhor cumprido por burocratas ateus do Estado liberal. É assim que entendemos por que Bruno Paes Manso, que é quase inteiramente um teólogo da libertação, não é religioso: o próprio movimento direcionou seus alunos para o ateísmo. E como o padre disse aos fiéis que Deus não queria que eles ficassem desempregados, então só podemos supor que a teologia da libertação abriu caminho para os televangelistas, pois legitimou o desejo de uma solução divina para os problemas financeiros. O fato é que toda organização social humana precisa de sentido. Paes Manso não aprendeu isso com os católicos (pois suas fontes são da teologia da libertação), mas aprendeu com os evangélicos. Seu livro termina com uma tentativa de dar esse sentido coletivo por meio da adesão ao ambientalismo, a fim de salvar o planeta. A essa altura, o autor já deveria ter percebido que esse discurso não serve para fornecer nenhuma coesão social; caso contrário, a Alemanha verde seria o paraíso na Terra. (E mais: se investigarmos as origens dos Verdes Alemães, chegaremos facilmente ao nazismo!)
No fim das contas, a teologia da libertação trouxe o liberalismo para a Igreja. E toda organização social que o liberalismo toca se desintegra. As próprias igrejas pentecostais, que são criadas em garagens e se fragmentam a qualquer desentendimento, não passam de migalhas, incapazes de dar coesão a um corpo político maior que um punhado de fiéis. E como a elite intelectual brasileira era de origem católica, sofria dos mesmos males do liberalismo. Agora está aí, falando sozinha e reclamando que o povo é de extrema direita e anticientífico.
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