
RAFAEL R. IORIS*
Eliminou-se todas as pretensões da promoção da suposta lógica democrática norte-americana ao redor do mundo
O nacionalismo depende de mitologias para poder existir. No caso dos EUA, seu mito fundador sempre foi o do seu excepcionalismo. Seriam eles a nação fundada no sonho da busca da liberdade e, posteriormente, da democracia; um país tão excepcional que, a fim de poder se preservar, obrigaria seus governantes ‘a promoção do seu modelo ao redor do mundo.
E assim, embora uma das teses fundamentais da política externa norte-americana seja o discuro de despedida de George Washington onde urge seus seguidores a se manterem distantes dos problemas do mundo, ao longo dos anos, os EUA assumiriam, de forma gradual, mas consistente, um projeto expansionista e interventor ao redor do mundo.
Se na sua expansão inicial ao longo do continente americano, os EUA se valeriam da lógica missionária do Destino Manifesto, de uma maneira geral, diferentemente das potências neocoloniais europeias do final do século XIX, onde uma superioridade cultural (ou civilizatória, no linguajar da época) era presumida, o imperialismo yanque para além da América do Norte, apresentava uma lógica mais decentralizada e um viés mais mercantil.
É evidente que em ambos os casos, as teses eugênicas sobre a superioridade racial branca foram também fundamentais. A expansão dos EUA, em primeiro lugar no Caribe e América Central, em seguida no resto do hemisfério, e depois, por todo o globo, tendia, contudo, a ocorrer mais por meios de empresários econômicos e religiosos (pastores e missionários), cuja presença, posteriormente, requereria que o poderoso estado norte-americano viesse em sua defesa, de forma mais ou menos explícita.
Seria, assim, que, na medida que o país se consolidava como grande potência industrial, a auto-proclamada “terra da liberdade” viria a constituir para si arranjos imperiais informais, seja na forma de protetorados ou no controle alfandegário da Diplomacia do Dolar por quase todo o Caribe e América Central nas primeiras décadas do século XX. Claro que por vezes o envolvimento direto da coordenação estatal seria mais evidente, como seria o caso de Porto Rico, Filipinas e Panamá.
Mas, em geral, o foco era o de apoio ‘as atividades internacionais de suas empresas, algo que, muitas vezes requeria o desembarque dos Marines, mas sem que a bandeira listrada e estrelada (Star Spangled Banner) viesse a substituir de vez símbolos nacionais locais.
Ao assumir a posição de maior potência militar e econômica global, no imediato pós-Segunda Guerra, o imperialismo norte-americano – envergonhado até então e sempre camuflado na tese de que, diferentemente do imperialismo europeu, as intervenções gringas era sempre transitórias e bem-intencionadas – desenvolveria novas formas, mais sofisticadas e complexas, de exercer sua hegemonia global. Indo além do que antes tinha proposto, mas não implementado, com a Liga das Nações, os EUA constituiriam uma nova forma de coordenar suas ações ao redor do mundo por meio de arranjos, em tese universais e igualitários – embora sempre desiguais e comprometidos pelas dinâmicas da Guerra Fria – que garantiriam (ou, pelo menos, pretenderiam garantir) que os desígnios do mundo, portanto relevantes a todos, necessitavam da participação (ainda que não equânime) de todos estados nacionais assim constituídos.
Mesmo que instrumento dos interesses norte-americanos, em especial da lógica econômica do seu capitalismo liberal, o que viria a ser conhecido como o Sistema ONU representava algo único, construído nos escombros do maior conflito de todos os tempos, por permitir que a noção da representação nacional com bases formalmente isonômicas se expandisse por todos os cantos do planeta.
Seria, assim, que, ao longo dos anos 1960 e 1970, atores do hoje chamado Sul Global conseguiria se articular de forma coordenada a fim de promover teses não previamente vislumbradas pelos seus criadores, como, por exemplo, a da cooperação para o desenvolvimento, transferência de tecnológica, e mesmo da busca da promoção de uma nova ordem econômica global.
E ainda que tais demandas nunca tenham se efetivado, o simples fato de que era possível que elas fossem incluídas na agenda representava algo novo e potencialmente transformador. E é exatamente isso que agora Donald Trump vai estruturalmente impedir, de forma violenta, se necessário.
De maneira concreta, eliminando recursos para a promoção de ações de diplomacia ao redor do mundo, prometendo recuperar antigas, ou adquirir novas, possessões coloniais, rompendo acordos e tratados e, especialmente, prometendo resolver problemas por meio da força e da coerção do mais forte, Donald Trump não só dá um cavalo de pau na forma de funcionamento da hegemonia norte-americana dos últimos 80 anos, como restabelece padrões diplomáticos imperiais do século XIX, onde, em bom português brasileiro, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Eliminam-se, assim, todas as pretensões da promoção da suposta lógica democrática norte-americana ao redor do mundo, e escancaram-se os traços mais explícitos da verdadeira face imperial yanque.
Tal desdobramento é duplamente trágico por diminuir os espaços de negociação e diálogo multilateral em um momento quando estes seriam mais que nunca necessários a fim de tentar dar conta da urgência da crise climática, assim como da desigualdade e polarização política crescentes.
Que Estados chave, como o Brasil, consigam coordenar esforços com pares democráticos do Sul a fim de conter a disseminação da lógica agressiva e prepotente explicitada pelo neo-fascismo norte-americano que nega de vez a tese do seu excepcionalismo civilizatório e diplomático.
*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).
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