AMÉRICA LATINA - A ameaça mais mortal da América Latina é feita nos EUA

Polícia paraguaia com armas apreendidas durante operação conjunta com o Brasil e os EUA contra o tráfico de armas em Assunção em 2023.NORBERTO DUARTE/AFP via Getty Images

Os grupos do crime organizado da região obtêm grande parte de seu arsenal dos EUA, escreve um especialista.

RIO DE JANEIRO — No início deste mês, Juliette Dorson, uma fornecedora haitiana de 50 anos, foi baleada enquanto trabalhava em um evento em Porto Príncipe. Seu sócio, Luc, morreu no ataque. Ela sobreviveu, mas por pouco. Para os moradores da capital haitiana, esses horrores são tragicamente rotineiros. Gangues agora controlam quatro quintos da cidade, portando não apenas pistolas e rifles de assalto, mas também rifles de precisão e metralhadoras com alimentação por cinto. Poucas dessas armas são fabricadas localmente. A maioria é contrabandeada dos Estados Unidos.

O Haiti registra atualmente a maior taxa de homicídios do planeta. Mas a nação insular está longe de ser um caso isolado. A América Latina e o Caribe, que abrigam apenas 8% da população mundial, são responsáveis ​​por cerca de um terço dos assassinatos. Ao contrário de zonas de guerra como o Sudão ou a Ucrânia, o derramamento de sangue na região ocorre na ausência de conflito declarado. Em vez disso, é impulsionado pelo crime organizado — e pelas armas que tornam a violência mais letal.

Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, quase metade de todos os assassinatos nas Américas estão ligados a gangues, cartéis de drogas ou paramilitares. No resto do mundo, esse número se aproxima de um em cada cinco. E as armas de fogo são a arma preferida. Aproximadamente 67% dos assassinatos na região são cometidos com armas de fogo — muito acima da média global de 40%.

Das favelas de Porto Príncipe às favelas do Rio e às cidades fronteiriças do México, grupos criminosos estão fortemente armados. Armas de fogo são usadas para impor o tráfico de drogas, acertar contas, roubar civis e perpetrar violência doméstica. A "cultura das armas" na América Latina abrange tanto o público quanto o privado. As mulheres são vítimas desproporcionalmente maiores nesta última esfera, com as armas de fogo desempenhando um papel central em homicídios domésticos e feminicídios.

O “rio de ferro”

A região está inundada de armas americanas há muito tempo. Durante décadas, o chamado "rio de ferro" fluiu para o sul — legal e ilicitamente — ligando o maior mercado de armas do mundo à sua região mais violenta. O legado dos conflitos da Guerra Fria na América Central — guerras por procuração em El Salvador, Guatemala e Nicarágua — deixou para trás um excesso de armas. Embora programas de desarmamento tenham sido lançados na década de 1990, muitas armas desapareceram nos mercados negros, alimentando a ascensão de impérios criminosos do pós-guerra.

A Colômbia tornou-se um polo importante. Seu conflito civil, que durou meio século, potencializou as redes de tráfico, com guerrilheiros, paramilitares e cartéis trocando cocaína por fuzis Kalashnikov. Um acordo infame resultou na entrada de 10.000 fuzis AK-47 na Colômbia com um certificado de usuário final falsificado no Peru. Outro acordo expôs a Chiquita Brands International em 2021 por supostamente transportar armas em navios de carga.

Esse comércio prospera não apenas com base na oferta e na demanda, mas também com base na disfunção sistêmica. Em toda a região, armas são rotineiramente desviadas de mercados legais para ilícitos. Armas são "perdidas" em trânsito, "roubadas" de estoques policiais ou vazadas por agentes corruptos. No Brasil, a Polícia Federal descobriu um esquema em 2024 — o "Cilindro Express" — no qual armas de fogo eram escondidas dentro de cilindros hidráulicos industriais. Outro, apelidado de "Ficção ou Realidade", expôs como traficantes enviavam armas disfarçadas de equipamentos de filmagem por correio internacional.

De longe, o fornecedor mais importante são os Estados Unidos. Entre 2018 e 2023, quase três quartos das armas de fogo recuperadas no Caribe eram originárias de estados americanos como Flórida, Nova York e Virgínia. As armas geralmente começam sua jornada em uma loja ou feira de armas — vendidas legalmente a "compradores fantasmas" que as traficam para o sul. Em alguns países, armas fabricadas nos EUA estão envolvidas em até 90% dos homicídios.


Através das fronteiras do sul

O México é talvez a vítima mais flagrante. Em cidades como Tijuana, Juárez e Culiacán, cartéis rivais lutam com poder de fogo de nível militar. Tijuana foi classificada como a cidade mais assassina do mundo em 2018 e 2019; Ciudad Juárez conquistou esse título sombrio em 2009. Armas de fogo traficadas do norte alimentam disputas territoriais brutais entre o cartel de Sinaloa, o Cartel da Nova Geração de Jalisco (CJNG) e remanescentes do Los Zetas.

Mas o México não está sozinho. Em todo o Caribe, as taxas de homicídio atingiram níveis recordes na Jamaica, Santa Lúcia e Trinidad e Tobago. O Haiti, apesar do embargo de armas imposto pelas Nações Unidas desde 2022, continua inundado de armas americanas, frequentemente contrabandeadas pela República Dominicana ou escondidas em carregamentos de Miami. As redes da diáspora desempenham um papel fundamental, transportando armas escondidas em barris, carros e contêineres de carga aérea.

Mais ao sul, países antes considerados refúgios de relativa paz — como Chile e Equador — estão testemunhando um aumento nos crimes com armas de fogo. A expansão das rotas de cocaína para o Pacífico e através da Amazônia arrastou essas nações ainda mais para a órbita do crime transnacional. Cartéis brasileiros, colombianos e mexicanos agora operam ao lado das máfias balcânicas e italiana, auxiliados por autoridades locais em busca de suborno. Corredores na selva, antes usados ​​para transportar madeira e animais selvagens, agora são canais para cocaína e armas.

Grupos criminosos também estão inovando. Tecnologias emergentes — impressoras 3D, mensagens criptografadas, criptomoedas, drones e até submersíveis — estão remodelando a forma como as armas são produzidas, adquiridas e traficadas. Armas e seus componentes agora podem ser fabricados no país, complicando os esforços de aplicação da lei. O ciberespaço fortaleceu ainda mais os traficantes, oferecendo anonimato, logística criptografada e fácil acesso aos mercados negros globais.

Novas ameaças se avizinham. A guerra na Ucrânia, assim como conflitos passados, corre o risco de se alastrar. De acordo com redes da sociedade civil como a Iniciativa Global sobre o Crime Organizado Transnacional, armas de nível militar ucranianas já circulam pela Europa Oriental. Especialistas temem que algumas delas possam chegar à América Latina. Assim como aconteceu com a inundação pós-Guerra Fria, essas armas correm o risco de acabar em mãos criminosas longe do campo de batalha original.

Mecanismos de defesa

Embora a região produza poucas armas de fogo, importa-as em abundância — legalmente e por outros meios. A maioria dos países é signatária de tratados internacionais destinados a coibir a proliferação de armas, incluindo o Protocolo de Armas de Fogo da ONU, o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA) e a Convenção CIFTA da Organização dos Estados Americanos. No entanto, o cumprimento das normas é irregular e a fiscalização, frágil. A gestão de estoques é frequentemente precária, os sistemas de rastreamento são subfinanciados e a supervisão dos arsenais policiais e militares é inadequada. Em suma, a arquitetura existe, mas falta vontade política.

Grande parte da responsabilidade recai sobre os Estados Unidos. Programas como o Blue Lantern (administrado pelo Departamento de Estado) e o Golden Sentry (do Departamento de Defesa) visam rastrear os usuários finais de armas exportadas. No entanto, esses mecanismos são subfinanciados e reativos. O Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF), que supervisiona as vendas domésticas de armas, está paralisado por leis obsoletas — principalmente as Emendas Tiahrt de 2003, que limitam o compartilhamento de dados e a rastreabilidade.

Ainda assim, alguns países estão reagindo. O México está processando fabricantes de armas americanos por supostamente alimentarem a violência de cartéis — um caso histórico reavivado por um tribunal de apelações dos EUA em 2023. Governos caribenhos têm pressionado Washington a fazer mais para interceptar armas traficadas e endurecer as regulamentações sobre exportações. Alguns legisladores americanos estão começando a se dar conta, propondo reformas para fechar brechas nas leis de armas e reforçar a fiscalização do ATF.

Os governos da América Latina e do Caribe não estão isentos de autonomia. Eles precisam aprimorar a segurança dos estoques, modernizar os registros de armas e investir em tecnologias para rastrear armas de fogo com mais eficácia. Os esforços anticorrupção continuam cruciais. A colaboração regional também é essencial. Uma iniciativa promissora é um acordo de 2024 liderado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que reúne 18 países para fortalecer instituições, compartilhar inteligência e reforçar o policiamento transfronteiriço.

Mas o progresso será lento e desigual. Em uma região assolada por corrupção, governança precária e dificuldades econômicas, os incentivos para os traficantes muitas vezes superam os riscos. Sem uma cooperação internacional robusta e pressão real sobre os Estados Unidos para conter o fluxo de armas, o rio continuará correndo.

O Haiti oferece um alerta assustador. Anos de colapso do Estado, infiltração de gangues e impunidade permitiram que grupos armados superassem a polícia e subjugassem o governo. Porto Príncipe não é uma cidade em crise — é uma cidade em queda livre. No entanto, o que está acontecendo no Haiti não é único. É o ponto final lógico de um padrão regional: quando as instituições são frágeis e as armas continuam chegando, o resultado não é apenas violência, mas falência do Estado.

SOBRE OS AUTORES

Robert Muggah

Muggah é cofundador e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé , um importante think tank brasileiro. Ele também é cofundador do SecDev Group e da SecDev Foundation , grupos de segurança digital e análise de risco com alcance global. 

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Catarina Aguirre

guirre é pesquisador sênior do Instituto Igarapé .

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