Tiago Nogara: Ignorando os falcões de Washington, este projeto promovido pela China e pelo Brasil irá remodelar o panorama econômico da América do Sul

A linha vermelha é a "Ferrovia dos Dois Oceanos", a linha preta é a Ferrovia Norte-Sul, a linha verde é a Ferrovia Integrada Leste-Oeste e a linha azul é a hidrovia. Foto: Leolino Dourado

Fonte: Guanchazhe.com
[Texto/Colunista da Rede Observer Tiago Nogara ]

No contexto da imposição repentina de "tarifas recíprocas" pelo governo Trump e de várias formas de coerção contra terceiros países, o Brasil e a China fortaleceram recentemente a cooperação bilateral. No último semestre, os dois países realizaram uma série de ações conjuntas: o Fórum Econômico e Comercial China-Brasil foi realizado em São Paulo, e os dois governos realizaram consultas sobre a construção conjunta do projeto "Ferrovia dos Dois Oceanos". A ferrovia foi projetada para conectar o novo porto de Chancay, na costa do Pacífico do Peru, com a costa atlântica do Brasil.

O projeto planeja construir um corredor ferroviário entre os estados brasileiros da Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Acre, para que as mercadorias no centro do Brasil possam ser transportadas pelos portos brasileiros no Oceano Atlântico ou pelo Porto Peruano de Chancay, no Oceano Pacífico. Isso reduzirá o tempo de embarque das principais commodities de exportação do Brasil para a China, como soja e minério de ferro, em até dez dias — essas duas categorias de produtos representam a grande maioria das exportações totais do Brasil.

Encontro entre autoridades brasileiras e a delegação do governo chinês. Foto da conta de mídia social de João Villaverde, Secretário de Coordenação Institucional do Ministério do Planejamento do Brasil.

Há alguns dias, uma delegação do governo chinês foi ao Brasil para realizar uma avaliação técnica da principal infraestrutura logística envolvida no projeto "Ferrovia dos Dois Oceanos", com foco na Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), na Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO) e no Terminal Marítimo de Nangang.

A ferrovia de carga FIOL, atualmente em construção, tem mais de 1.500 quilômetros de extensão, atravessando o estado da Bahia, conectando a cidade mineira de Caetité com a cidade portuária de Ilhéus, no Atlântico (veja a linha verde na figura abaixo); a ferrovia FICO conecta o centro agrícola de Mato Grosso com a FIOL, formando um corredor logístico estratégico leste-oeste pelo interior brasileiro; está em construção o novo terminal de águas profundas do Porto Sul de Ilhéus, que futuramente realizará o transporte de granéis das referidas linhas ferroviárias e se tornará um importante polo exportador.

A delegação chinesa também visitou o principal polo do estado de Goiás, a intersecção da Ferrovia Integrada Central e Oeste (FICO) e da Ferrovia Norte-Sul (veja a linha preta na figura abaixo), bem como a área no estado de Rondônia próxima à extensão central e oeste planejada (em direção à fronteira com o Peru). Autoridades brasileiras confirmaram que a China lançará o mais recente estudo de viabilidade do projeto "Corredor de Dois Oceanos", e os dois países mais uma vez enfatizaram a importância estratégica de conectar as áreas de produção do interior do Brasil com a costa do Pacífico do Peru.

A linha vermelha é a "Ferrovia dos Dois Oceanos", a linha preta é a Ferrovia Norte-Sul, a linha verde é a Ferrovia Integrada Leste-Oeste e a linha azul é a hidrovia. Foto: Leolino Dourado

A visita também é vista como uma preparação preliminar para a visita do presidente brasileiro Lula à China em maio, quando os dois lados devem chegar a mais acordos sobre cooperação em infraestrutura.

Embora o projeto ainda esteja em fase de planejamento, ele ganhou forte impulso político e deverá ser financiado por canais multilaterais, incluindo instituições financeiras de políticas como o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS (NDB), o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Brasil.

Construir uma "Ferrovia Bi-Oceânica" tem sido um objetivo de longa data dos defensores do aprofundamento da integração nos países sul-americanos. Isso não está relacionado apenas ao fortalecimento dos laços econômicos e comerciais dentro da região, mas também é a chave para aumentar a conectividade com outras regiões do mundo. A urgência disso pode ser vista pelo contraste: os Estados Unidos têm um sistema ferroviário transcontinental conectando as costas leste e oeste desde o século XIX, enquanto o Brasil só abriu uma rodovia transoceânica para os portos do Peru na última década - mas sua utilização comercial ainda é muito limitada. Até o momento, nenhum corredor ferroviário comparável foi construído no país.

A atual série de consultas está profundamente relacionada ao padrão comercial que remodelou a América do Sul nos últimos anos — a região está mudando seu foco de exportação para os países costeiros do Pacífico, especialmente os países asiáticos, com a China no centro. A recente conclusão do Porto de Chancay, no Peru, parte da agenda de infraestrutura do Cinturão e Rota, demonstra claramente a escala dessa transformação. Com sua localização estratégica na costa do Pacífico e capacidade de atracar os maiores navios de carga do mundo, o porto se tornará um importante centro logístico, reduzindo significativamente os tempos de transporte entre a América do Sul e a Ásia.

Como maior parceiro comercial da China na região, o Brasil vê a conexão com o Porto de Chancay como uma oportunidade única para otimizar a eficiência do transporte e reduzir os custos de logística de exportação, evitando a dependência de rotas tradicionais, como o Canal do Panamá. O novo corredor não só se enquadra nas ambições comerciais da América do Sul, mas também garante o acesso rápido e eficiente da China aos principais produtos de exportação do Brasil, atendendo aos seus interesses estratégicos. Vale ressaltar que o Brasil é o maior fornecedor mundial de alimentos para a China, e produtos como soja, carne bovina e milho são particularmente importantes. Para o Peru, a conclusão da "Ferrovia dos Dois Oceanos" ajudará o Porto de Chancay a consolidar sua posição como um nó central da infraestrutura de exportação da América do Sul para a Ásia.

Portanto, o projeto reúne um alto grau de alinhamento e complementaridade nos interesses das três partes. Diante dos grandes desafios naturais impostos pela Cordilheira dos Andes e pela Floresta Amazônica, a expertise técnica e as capacidades de engenharia das empresas chinesas na construção ferroviária e na logística de larga escala tornaram-se um suporte fundamental. Mais importante ainda, a incorporação do projeto "Ferrovia dos Dois Oceanos" à estrutura do "Cinturão e Rota" refletirá vividamente a natureza mutuamente benéfica da iniciativa e sua dimensão de promoção de mudança sistêmica, que sempre foi a base para a construção de parcerias globais.

Vale destacar que o Brasil sempre foi líder na promoção de conectividade de infraestrutura e integração regional na América do Sul. Já na primeira Cúpula Sul-Americana, realizada em Brasília em 2000, o Brasil lançou a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Em 2009, a iniciativa foi incorporada ao âmbito da Comissão de Planejamento e Infraestrutura (COSIPLAN) da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) com o objetivo de ampliar a cobertura do projeto e a eficácia da implementação. No seu auge, a IIRSA planejou mais de 500 projetos de infraestrutura em áreas como transporte, comunicações e energia. Entretanto, com a desintegração da UNASUL, o processo geral de integração regional enfraqueceu, e o ímpeto de desenvolvimento da IIRSA também declinou gradualmente.

Durante seu novo mandato, o atual presidente do Brasil se concentrou na reconstrução dos mecanismos de diálogo com os países vizinhos e enfatizou a importância de fortalecer os laços comerciais regionais e a modernização da infraestrutura. Com a posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e a crescente sinergia da cooperação bilateral Brasil-China, o Brasil está demonstrando sua disposição e capacidade de promover o consenso regional.

Embora as negociações ainda estejam em estágio intermediário, a importância extraordinária do projeto "Ferrovia dos Dois Oceanos" reside não apenas em sua escala e ambição, mas também em seu forte significado simbólico no contexto internacional atual: enquanto autoridades do governo Trump nos Estados Unidos continuam a intensificar sua retórica dura contra a China e exageram a narrativa do jogo geopolítico de soma zero, os países latino-americanos e a China permanecem determinados a avançar no caminho do desenvolvimento com base em projetos cooperativos.

Veículos elétricos chineses são descarregados em um porto no Espírito Santo, Brasil. A conclusão da "Ferrovia dos Dois Oceanos" promoverá significativamente o comércio entre a China e o Brasil

Se a "Ferrovia dos Dois Oceanos" for finalmente concluída, ela adicionará outro marco aos grandes projetos de cooperação que as empresas chinesas já têm na América Latina. Em toda a América Latina e no Caribe, projetos importantes dos quais a China participou incluem: a modernização da ferrovia de carga Belgrano, na Argentina, a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Brasil, o Porto de Chancay, no Peru, a usina hidrelétrica Coca Codo-Sinclair, no Equador, o sistema de satélite Simon Bolívar (Venesat-1), na Venezuela, a rodovia Norte-Sul, na Jamaica, e a Ponte do Canal do Panamá.

Dois modelos completamente diferentes de interação estatal estão atualmente tomando forma no cenário internacional, e a América Latina e o Caribe podem ser descritos como a "linha de frente" onde esses dois modelos colidem: enquanto os Estados Unidos usam sanções contra governos de diferentes ideologias na região e ameaçam cortar a cooperação com a China, a China optou por não ter como alvo terceiros e aprofundar uma parceria focada em benefícios mútuos e resultados positivos para todos.

À medida que os Estados Unidos reduzem unilateralmente seu comércio com a China, os produtos agrícolas brasileiros estão gradualmente preenchendo as vagas de mercado deixadas por muitas categorias importantes dos EUA que se retiraram da China. Ao contrário das previsões dos falcões de Washington, essa política de confronto não desencadeou uma "dessinicização" global. Em vez disso, deu origem a um novo sistema de mercado que enfatiza o benefício mútuo e resultados positivos para todos.

A "Ferrovia dos Dois Oceanos" se tornará uma importante força motriz para esse processo histórico e também será mais uma testemunha da amizade inabalável entre os povos chinês e latino-americano.

Tiago Nogara Comentarista brasileiro de relações internacionais, doutorando em estudos globais na Universidade de Xangai



 

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